quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Enciclopédia Municipal do Esquecimento - Primeira parte

O olvido do nome
Ele repetia com tanta veemência que não se chamava Julio que era difícil não acreditar. Mesmo eu, amigo de muitos anos, titubeava ante a face crispada que bramia:
— Os documentos estão errados, ao diabo com eles, não me chamo Julio — virava-se para os lados, não propriamente agressivo, não propriamente irritado, mas com uma contundência de quem tinha certeza do que dizia, e dizia — Eu sei quem sou, sei o que faço, onde trabalho, o nome da minha namorada, o número da minha conta no banco, tudo está condizente com a realidade, mas, não me chamo Julio, não mesmo.
Aconteceu numa segunda-feira. Chegávamos então para o trabalho quando o cumprimentei perguntando do futebol de final de semana:
— Fala senhor Julio, será que agora o nosso time vai? Ao contrário do que era normal, sorriso largo e um comentário engraçado, o questionamento sério:
— Por que é que me chamou de Julio? Como não entendi a brincadeira, repeti em tom de galhofa a frase, alterando o tratamento para doutor, no que fui indagado, exatamente assim:
— Não entendi a brincadeira. Dei de ombros e me despedi, dizendo que precisava dar um telefonema e nem pensei muito no assunto até um pouco antes do horário do almoço, quando ouvi, na sala ao lado, um esbravejar mais alto:
— Meu nome não é Julio, não estou entendendo essa brincadeira desde manhã, alguém vai querer me explicar?
Saí da minha sala e fui ao encontro dele, um pouco apreensivo, se fosse brincadeira (ele não desgostava de uma boa troça) a coisa estava sendo muito bem encenada. Então disse, batendo de leve na porta, e me afastando um pouco para que o funcionário das correspondências planasse ligeiro dali:
— Posso entrar patrão, como quer que lhe chamemos agora?
A sala estava em perfeito estado de arrumação, naturalmente como haveria de ser em qualquer dia da semana. A atmosfera um pouco lúgubre era conseqüência do dia escuro e frio que fazia. Em princípio pensei que pudesse ser isso o que contaminava a expressão fechada no rosto dele, mas a tal ponto ele se entrevou, a um tal ponto se angustiou que pensei enfim ser a coisa mais séria, algo estranho estava acontecendo, e ele me disse, a voz muito baixa:
— Eu não sei o que está acontecendo, todo mundo me chama de Julio, mas tenho certeza de que não me chamo Julio.
Mesmo já tendo percebido que não era farra, ainda tentei, numa última chance para nós dois, mostrar indiferença:
— Deixa de brincadeira, Julio, me fala o que está havendo? A resposta veio tão forte e serena, que precisei me sentar:
— Eu não me chamo Julio!
Retomei o prumo, esperei um instante e o observei, aproveitando-me de que ele olhava para baixo, pensativo, mais cansado que assustado, com uma expressão agora de tristeza ao invés de indignação:
— Vou chamá-lo Julio, mas é pelo hábito, e porque não saberia como fazer de outra maneira, o que está acontecendo, por que diz não ser esse o seu nome?
— Eu não sei o que houve, simplesmente não me lembro do meu nome, mas sei que não me chamo Julio...
— Do que mais não se lembra?
— Aparentemente me lembro de tudo.
— Do meu nome?
— Claro que sim, seu nome é... E disse meu nome completo, com o detalhe da pronúncia de um sobrenome alemão.
— Está vendo, sei exatamente o seu nome e de todos os outros, o rapaz das correspondências chama-se... Foi então enfileirando uma série de nomes, da copeira até o diretor geral e só parou porque eu interviesse:
— Muito bem Julio...
— Não me chamo Julio!
— Certo, certo, enfim, já percebi que você se lembra do nome de todos, aliás, sempre se soube da sua boa memória, vamos devagar, isso deve ser alguma estafa.
— Pode ser o que seja, mas meu nome não é o que vocês estão dizendo, e não que isso tenha grande importância, apenas é um erro que precisa ser corrigido.
A conversa começou a me cansar um pouco, percebia que realmente não se tratava de uma brincadeira e ao mesmo tempo achava que também não era nada de grave, apenas alguma coisa relacionada ao estresse, de qualquer forma precisava chegar a um ponto para faze-lo refletir: — Vamos almoçar, já são horas, uma boa comida e um café talvez lhe façam bem.
— Farão, não tenho dúvidas, vamos.
Saímos os dois a passos lentos, procurei pousar a mão em seu ombro a dar amparo, ele sequer notou o gesto, e não disse uma única palavra, exceto um grunhido obsceno quando o porteiro do prédio desejou bom almoço a nós ambos, chamando-nos pelos nomes. Já estávamos sentados, havíamos feito os pedidos, as bebidas estavam sobre a mesa, um refrigerante dietético para mim, uma água mineral sem gás para ele, quando achei que era hora de romper o silêncio, tentear de leve o assunto:
— Pensou bem, ainda não soa familiar o seu nome?
— Não é familiar, Julio não é o meu nome, o meu nome, quando o ouvir, e é possível que não o reconheça de pronto, poderá soar familiar, mas, Julio, não sendo meu nome, não será familiar.
Mudei de assunto, ainda não era a hora e, de qualquer maneira, também não sabia como agir. Tornei a falar de futebol, mas ele não quis conversa. Esperei a comida chegar, não demorou muito e estávamos almoçando, ele lentamente, sem olhar para mim, nem para comida, vago, alheio, me pareceu que realmente não se chamava Julio, me pareceu que não tinha nome algum. Nenhum de nós levou mais de quinze minutos para terminar a carne e o arroz. Notei que a expressão dele não se alterara, e isso me pareceu um mau negócio, saciar a fome não tinha surtido efeito, mas era preciso falar alguma coisa:
— Sente-se melhor?
— Sinto-me bem, a despeito da falta de memória onomástica... Sorriu um sorriso ácido, mas julguei que haveria me enganado, a comida teria causado algum efeito positivo em seu espírito, continuei:
— Você se lembra do seu sobrenome? A pergunta era importante, e a fiz com gravidade, jubiloso de ter me adiantado em faze-la.
— Não me lembro.
— É Andochama.
— Julio Andochama?
— Exatamente, não se recorda?
— É um sobrenome estranho, mas, não é o meu...
— Não sei que dizer Julio...
— Já disse que...
— Eu sei, eu sei, mas não tenho como me referir a você senão pelo que estou habituado a fazer, como quer que lhe chame?
— Não sei, não me lembro do nome, quanto será preciso repeti-lo?
Os dois estávamos agora irritados, cada um por uma vertente. Mantive-me em silêncio, já me via sem argumentos, sem saber como sair daquele labirinto, e ele não parecia querer ajudar. Foi quando me lembrei dos documentos, “sim os documentos” balbuciei, eles me ajudariam como nada até agora:
— Pegue sua carteira, seu cartão de crédito com o qual vai pagar a conta...
— Eu vou pagar com os vales da empresa.
— Não importa, pegue, vamos, pegue sua carteira de motorista!
Eu estava excitado, era a prova derradeira, material. Mas tão maquinalmente ele retirou a carteira do bolso da calça, tão friamente procurou a carteira de motorista, sem nenhuma hesitação olhou o nome que estava lá pregado ao lado da foto, e ainda com absoluto desprezo lançou-a sobre a mesa após verificar o que, enfim, já sabia. Eu me apequenei no argumento que até então achara infalível e agora iria se mostrar absolutamente descartável, pois nós dois sabíamos o que estava escrito ali. Mesmo tendo de antemão perdido a batalha, alcei a voz com um evidente despeito de vencido:
— Pois bem, Julio Andochama, se não é você aqui nessa foto, apesar da barba!
— Disso já eu sabia, o que poderia vir escrito nos documentos, uma vez que tenho desde manhã percebido que todos me chamam de Julio? Não estaria aí escrito outro nome... que há um erro, disso já sei, o que não atino é como foi produzido.
— Mas que erro, como pode ser assim, olhe os outros cartões, a identidade, seu nome é Julio Andochama, é o que todos dizem, atestam, e com fotografias, pegue aí seu passaporte...
— Os documentos estão errados, ao diabo com eles, não me chamo Julio. Virava-se para os lados, não propriamente agressivo, não propriamente irritado, mas com uma contundência de quem tinha certeza do que dizia, e dizia — Eu sei quem sou, sei o que faço, onde trabalho, o nome de minha namorada, o número da minha conta no banco, tudo está condizente com a realidade, mas não me chamo Julio, não mesmo.
Calou-se, e a primeira corda de dúvida vibrou em mim, e gutural, recôndito em sei lá onde dentro um “será” me escapou. Pagamos a conta, voltamos ao escritório, deixei de vê-lo por algumas horas, mas, ao que parece, se sabia não se chamar Julio, talvez tolerara pelo bem do serviço. Fosse como fosse combinei de encontra-lo ao final do expediente e ver como andaria a situação. Não deu tempo. Passou pela minha sala quarenta minutos antes das dezenove horas: — Saio agora, não posso trabalhar num lugar em que me chamam pelo que eu não sou.
— Julio... desculpe-me... espere, o que houve? aonde vai?
— Conversei com o diretor, ele me disse para passar dois dias fora, tentei explicar o que estava acontecendo, mas você sabe, nem mesmo eu sei o que está acontecendo, de qualquer forma, não estou certo de querer ainda este emprego.
— Pelo amor de deus, cara, pense direito no que vai fazer, eu saio em quarenta minutos, onde podemos nos encontrar?
— No lugar de sempre, fico lá esperando.
— Certo, eu vou pra lá assim que puder. Ele acenou com a cabeça e virou-se lento, arrastando os pés deu dois passos incertos e oscilando a cabeça para trás disse, sem me encarar: — Por enquanto, me chame José, ou simplesmente Zé.
— Acha que pode ser o seu nome verdadeiro?
— Não sei, não faço idéia, mas fica assim.

Enciclopédia Municipal do Esquecimento - prólogo

Amigos leitores do blogue, seguirá nós próximos dias conto que escrevi há cerca de dois anos. Experiência gostosa e diferente para mim, pois foi o primeiro texto que deixei lessem antes de ter terminado, assim o concluindo depois do retorno de quem leu (no caso a minha leitora fiel e amiga e irmã Tatiana).

ENCICLOPÉDIA MUNICIPAL DO ESQUECIMENTO

A Julio Andochama
"Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos(...)"

Fernando Pessoa in "Tabacaria" de Poesias de Álvaro de Campos, 1928.

"Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo
mais vasto é o meu coração(...)"

Carlos Drummond de Andrade in "Poema de sete faces" de Alguma Poesia, 1930.

“Conheces o nome que te deram, não conheces o nome que tens”
Livro das Evidências. José Saramago in “Todos os nomes”,1997
"Her green plastic watering can for her fake chinese rubber plant
In the fake plastic earth
That she bought from a rubber man in a town full rubber plans
To get rid of itself (It) wears her out
She lives whit a broken man
A cracked polystyrene man who just crumbles and burns...
...If I could be who you wanted All the time"

Radiohead in "Fake Plastic Trees" de The Bends, 1998.

“Não tenho assinado meu nome no fim dos emeios porque não sei mais quem sou.”

Juliano Machado in “Retalhos do dia-a-dia”, sem data


Prólogo
Os fatos que pretendo narrar aconteceram numa segunda-feira, na metade do mês de julho, um mês de julho muito frio, quase sempre chuvoso, extremamente taciturno. Na altura não soube entender o que aconteceu, e talvez não entenda até hoje, passados que são alguns anos. É por isso resolvi contar esta história, ao meu jeito, evidentemente sujeito aos vícios e distorções que minha visão — muito próxima do sucedido — pode mostrar ou ocultar no relato. Minha memória se deteriorou depois do acontecido, não em relação a tudo, mas há alguns detalhes da época. Por certo a memória se embaciará ainda mais com o passar do tempo, portanto talvez seja hora de contá-la, afim de que pareça verossímil.
É evidente que admitindo isso arrisco, justamente, pôr em descrédito a veracidade dos episódios e das impressões, mas é imprescindível que fique claro o caráter real dos acontecimentos, apesar de existirem — como aliás é natural — lacunas de memória. É preciso considerar ainda que outras pessoas foram testemunhas do que ocorreu naquela segunda-feira, embora não creio estejam elas aptas a contar em pormenores tudo quanto houve, porquanto não estivessem o tempo todo próximas como eu estive do homem que é a personagem principal destes relatos. Sobretudo, a memória não me traiu na percepção e lembrança daquilo que julgo ser a passagem decisiva, factualmente decisiva para o desfecho dos acontecimentos, e repito, neste momento crucial, somente eu estava perto e presente, ainda que não o suficiente para modifica-la.
De qualquer forma, isso poderia muito bem passar como uma simples história, ficção resolvida a ser escrita para flertar com a técnica, brincar com o ofício da prosa. O que não me preocupa em absoluto. Inclusive dei título e separei em partes para que fique mais fácil a quem quiser esquecer-se de que tudo aconteceu numa segunda-feira de alguns anos atrás, e tente simplesmente lê-lo como um exercício mais ou menos restrito, apenas na terceira esfera administrativa, conto de página amarela em gaveta de madeira sem tranca, verbete de alguma enciclopédia inventada para passar o tempo.
(este texto foi originalmente publicado em 09 de abril de 2007)

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

O orelhão e a TV

A cidadezinha que se chama Poço das Ovelhas deve ser um reduto do diabo. E verificar isso é simples quando se olha para este chão calcinado, para estas plantas sem ramas, aquela pastagem seca, a horta sem verde. Um quadro estéril pintado por uma mão cansada que só chegou para rabiscar esqueletos e carcaças de bichos mortos pela sede e pela fome. Os animais vivos são todos magros, cambaleantes, e escarafuncham a chã a ver se encontram na terra algo que o céu não mandou. Magros e cambaleantes são os homens e mulheres e crianças que aqui vivem, também têm fome, também têm sede e da mesma maneira olham para a terra a ver, neste caso, se há um reflexo do que o céu deveria lhes dar. Muito embora lhes pese a cabeça, lhes doa o estômago e a alma, ainda mantém, sabeládeus a que custo, a propalada altivez humana, como se o fato de saberem-se vivos e humildes, os fizessem soerguer mais os corpos do que um cabrito famélico poderia fazer. Os sorrisos muito raramente assomam na face destas pessoas, a risada aberta, nunca. Ademais, o cenário não leva que o comum das caatingas, das terras secas, da paisagem árida e caramelada, tantas vezes cantada em versos, em prosa, novamente em versos e finalmente em prosa.
Mas a estes confins de nordeste seco, como aliás a todo o resto do país imenso, a televisão chegou porque houve eletricidade. Olhando-se as casas de pau-a-pique e cercas de madeira mal cortada, também se podem ver os fios da energia elétrica saindo dos postinhos — de mesma mal talhada árvore — e indo ter para dentro dos casebres. Acesa fica uma luz, um rádio toca, muito raramente uma geladeira gela, sendo o comum alumiar-se a escuridão com as imagens clarividentes dos aparelhos de televisão. Do mesmo modo vêem-se os fios brancos, encapadinhos, fugirem do interior das casinhas e caminharem para os tetos a se ligarem nuns pedaços de alumínio, numas espinhas de peixe de metal. O que há também nesta cidade é o advento interessante da união de tecnologias. A capital fica a uma porção de quilômetros afastada, e como toda capital, guarda os sonhos úmidos dos sertanejos. De cada família que em Poço das Ovelhas vive, não há sequer uma que não tenha ao menos um ente querido morando para outras bandas, caçando os sonhos e tentando fazer com que a vida lhe acene com mais carinho. Ora, que suprema ventura foi quando colocaram na frente do único Armazém da cidadela um orelhão para as exortações do dia-a-dia e o desafogo das saudades de toda a gente. Pois que agora além de assistir às novelas, de quando em quando ir ter notícias dos parentes que estão para longe, saber como lhes corre a vida, se está precisando de uma reza, de um conselho, dinheiro é difícil, se calhar, mandar um beijo, as vezes poucas palavras, estar em silêncio apenas, e ao fundo, o som inconfundível de uma lágrima de amor ou de condescendência. Mas, sempre pouco tempo de prosa, já as tarifas não estão para casos muito compridos, veja-se que lá para lá das Minas Gerais qualquer bocadinho de minuto é uma fortuna. Assim, a vida não melhorou, mas ficou mais tragável, e não há quem negue que saber do mundão pela TV e saber do mundinho pelo telefone fez desabrochar sorrisos, mesmo que fugazes, nas faces povo.
Foi quando aconteceu o sucedido. Sem que ninguém desse pelo motivo, os moradores de Poço das Ovelhas começaram a captar as conversas do orelhão público pelo aparelho de televisão, fato este inusitado, mas que não chega a ser fantástico, mormente quando se sabe que no final das contas estas todas ondas eletromagnéticas são da mesma origem e família. Quem descobriu o estranho sucesso foi uma mocinha noveleira que, nos intervalos da programação, ficava passeando pelos canais. Imediatamente após o achado, contou à mãe que contou à vizinha que sintonizou o canal e passou o número à sogra que assim o fez à nora, e sendo parco o terreno, todo o povo já sabia onde ir ouvir as notícias particulares deles próprios. Foi a diversão geral, bastava que se ouvisse o trim, trim, trim da campainha do telefone ou se avistasse pelas janelinhas alguém caminhando em direção ao orelhão azul e os moradores corriam para frente das caixinhas de TV. Era simples, apertava-se o botão para ir subindo os canais e pronto, lá pela altura do número 27 surgia uma imagem difusa, chuviscada que, atentamente olhada, era reflexo desconexo da transmissora da capital, e emitia as interessantes conversas de quem se utilizava do telefone público. Contrariamente à imagem, o som era nítido, absolutamente audível o que concorreu sobremaneira para que se tornasse muito divertido o novo entretenimento da cidade. Como deixar de falar no orelhão não se podia, e proibir que se escutassem as conversas aos aparelhos menos ainda, ficou-se assim a saber de quem houvera casado, separado, se empregado, se desempregado, da grávida, do pai da criança, da infecção de bexiga da tia e até dos cornos de um alguém, caso este que bem poderia ter virado sangue, não fossem as palavras sempre meras palavras e passíveis de reconsiderações e de provas materiais contrárias a elas, quando não um facão ao pé da jugular declinando todo e qualquer comentário maledicente.
Num lugar assim como Poço das Ovelhas e com um povo assim, como o de Poço das Ovelhas, ainda agora com essa atribuição tecnológica de espionagem, pode-se imaginar que o diabo trabalha à vontade. Já vimos que calcina o chão, emagrece os bezerros, faz as crianças chorarem da fome e das picadas dos insetos. Deixa os homens sem trabalho porque bloqueia a chuva, e usa a televisão para contar e mostrar estórias e imagens de uma vida e de um país que será para o futuro, o futuro dele, entenda-se. Sendo o homem homem e a curiosidade atributo inerente, que mal não faria um povo a si mesmo tendo em conta todos os segredos uns dos outros, ainda mais quando o demo fica por detrás cutucando de vara curta. E era isso que andava a suceder na cidadela, como visto, houve até um quase caso de morte por fuxico sobre a vida íntima dum casal. De qualquer maneira, e embora as intrigas e comentários maldosos causassem algum desconforto, não era motivo de grandes preocupações. O diabo lá brincava com uns e com outros, provocava daqui, atiçava de lá, mas nada de muito, nada de grave, nada que valesse tirar o sorriso tão caro dos sertanejos. Ocorre que Deus, que não anda para brincadeiras e nestas alturas estava sem nada para fazer, por acaso espiou estas paragens e se apercebeu do que acontecia em Poço das Ovelhas. Em Sua sabedoria imensa, não poderia deixar de tomar uma atitude corretiva àquelas tentações do demônio. Assim estabeleceu uma proposta de ação. Como o diabo, embora ficasse endiabrando todo o povo, não havia tomado as rédeas do público telefone (não precisava ele diabo de interferir nas conversas e nas falas, bastava-lhe soprar as fagulhas riscadas pelo orelhão) assumiu o controle das emissões sonoras que saiam do aparelho de telefone e iam para o aparelho televisor, de maneira que agora podia ditar o conteúdo da programação. A Celestial medida cumpria duas funções, uma primeira e imediata que era desarticular o pobre diabo, não permitindo que ele ficasse abanando as tais fagulhas das conversas alheias a ver se arranjava um incêndio, e uma segunda e de longo prazo, que era difundir a tão malhada palavra Divina pelos confins desse mundo de meudeus. Houve no princípio um estranhamento geral na cidade, buscou-se outros canais, procurou-se posicionar as antenas para captar novamente as conversas dos outros, e somente quando se notou que o caso não era de nitidez e sim de conteúdo, o povo deixou-se ater pelos novos ruídos, a saber enfim de que se tratava. Deus, que já se considerava a si próprio um gênio, meteu nas transmissões passagens bíblicas, conversas entre pastores, os diálogos dos apóstolos, o Sermão da Montanha e tudo quanto de santo e de belo havia na palavra Dele. Mas logo o populacho pensou que eram interferências de um programa Evangélico na interferência do telefone público, e novas e insistentes mudanças foram tentadas para se voltar a escutar as antigas conversas da vida alheia, isso com palhas de aço, com espinhas maiores de peixes de metal, e até um improvisado guarda-chuvas virado ao contrário, todo de arame, com umas placas de alumínio (estranho instrumento) foi utilizado. Debalde. Ninguém desconhece que o pobre e fraco homem nada pode contra a Indelével e Onipotente vontade Divina, motivo pelo qual, desde a primeira emissão das palavras do Senhor, ninguém nunca mais veio a saber um pio sequer da privacidade dos convivas, o que, num primeiro momento, causou um arrefecimento da animosidade entre alguns moradores, mas que depois veio a despejar a cidade num profundo e insondável silêncio, retirado assim como o fora entretenimento tão largo. O diabo, quando viu enfiar-se Deus na sua empresa, deixou-se ir atarefar com seu afazeres comuns de diabo, não logrou voltar à cena, uma vez que não possuía recursos tecnológicos suficientes para fazer captarem os moradores de Poço das Ovelhas umas ondas piratas, piratas e satânicas, deixando a cidadela à mercê da programação Divina.
Os fugazes sorrisos sumiram-se do povo e Deus, que não costumava utilizar-se de pesquisas de audiência, não se apercebeu quando retiraram, algum tempo depois, o telefone público, que público havia tornado-se das traças, mantendo a Sua reta palavra no canal 27. Não sobra dúvida de que a maledicência na cidade diminuiu, os casos de brigas e desavenças são o comum das cidades comuns. Pode-se dizer também para o lado de Deus que, na verdade, o telefone nem muita falta anda fazendo, e isso prova que a intervenção Divina veio trazer paz ao vilarejo, e finalmente meter o diabo no seu devido lugar, calcinando a terra e secando as folhas e emagrecendo os animais, que aliás, de barriga vazia e sem sorriso no rosto, se esturricam como nunca antes.
(este texto foi originalmente publicado a seis de abril de dois mil e sete)

É a mulher quem constrói o homem

Hoje estou com Lídia. Mas, há pouco tempo, dois meses atrás, estava com Ana. E, no começo do ano, a paixão foi Joana. A questão não é ser volúvel, mas, como essa troca constante de parceiras pode descontruir o homem, ou então faze-lo arremedo de prédio, daquelas construções que foram sendo reformadas épocas e épocas sem respeito à arquitetura original. Sou submisso, e este é o ponto. Se a mulher que amo pede, faço na hora e ainda abano o rabo. Haverá homens que se mantêm absolutamente fiéis aos seus gostos, suas preferências estilísticas, claro. Não é o meu caso. Lídia me comprou um sapato de bico muito largo, parecem uns pés-de-pato. Horríveis. Não obstante uso-os com um sorriso largo do mesmo naipe que o pisante. Tenho um amigo que odeia cebola, mas, mesmo assim, faz questão de come-las com júbilo quando o seu benzinho prepara algo com esta espécie de aliácea. Do exemplo contrário não vou falar, que todos nós sabemos e em verdade a maioria dos homens é assim: faz o que deseja e do seu jeito. O futebol é um caso clássico. Os homens não abrem mão deste espetáculo, sobretudo aos domingos — que consideram sagrados —, e os programas esportivos posteriores também. Gosto muito de futebol, mas se a Lídia (que pra falar a verdade até gosta do esporte, quem não gostava era a Virgínia, meudeusdocéu, não podia sequer ligar a televisão em dia de jogo. E minha índole funcionava perfeitamente. Corinthianíssimo que sou, fui passear de mãos-dadas numa praça no domingo da final de 1999, tomando picolé, enquanto o meu Timão era Bi-campeão Brasileiro. Ela me disse que seria uma prova de amor, nem precisava, não sei dizer não à mulher que amo), enfim, ia dizer que se a Lídia me pedisse para não ver o jogo da final, não veria. Exceto Copa do Mundo com o Brasil, aí até eu que sou molenga, endureço. Dizem que mulher não gosta de homem submisso, vai ver que é por isso que meus relacionamentos duram pouco. Se bem que, por incrível que pareça, quem dá a declaração de fim do romance sou sempre eu. Talvez a mulher se compadeça do bonzinho que sou e, incapaz de me fazer sofrer, se vai fechando em si mesma e se tornando propositadamente insossa ao meu gosto. Aí, por que não vejo mais graça, termino e nem me dou conta de que quem terminou foi ela. É, creio que é isso. Aliás, há uma história curiosa, exemplo de como uma pessoa pode enganar-se a si própria, no caso corrente, eu mesmo. Namorava uma jovem linda chamada Inês de Castro que execrava bebidas alcoólicas. Bom, eu sempre fui chegado num uísque, numa cerveja, num bom vinho, naquela caipirinha de pinga. Acontece que não havia meios de conciliar as coisas, a Inês odiava beber, e pior, não suportava o cheiro. Para não brigar, e novamente incapaz de dizer não, parei de beber completamente, sequei. Ora, evidente que não poderia dar certo. Ao cabo de uns quantos meses considerei que me tinha tornado uma pessoa mais azeda e mais triste sem o álcool, e deixei Inês. Não podia beber na presença dela, mas ela não estando, não precisava contrariá-la. O Bar da Esquina de Sábado me recebeu de braços abertos, nota Dez. Digo que não sei dizer não às mulheres e minto. Ficou provado que a esta senhora bebida eu sei dizer basta, nem que seja por período curto de tempo. Mas a culpa foi da Inês, a vida não precisa de radicalismos.
O que estava querendo dizer no princípio e me perdi, é que o problema não é ser submisso, tão pouco volúvel. O problema é ser as duas coisas ao mesmo tempo, esta triste sina minha. Se se passa tempo longo com alguém se deixando moldar pelos seus gostos, tudo bem. Passando pouco tempo a coisa se complica, as combinações tornam-se difíceis. Temos uma namorada que gosta de roupas clássicas e além dos nos presentear nesse quesito nos faz comprar peças dessa linha, a próxima — dois meses depois, três — faz o gênero esporte e nos compra bermudas, camisetas de jogador de tênis, sandalhas chamadas de papetes com grande tendência à afetação. Para não falar musicalmente, uma gosta de MPB, a outra de pagode, uma ainda de Eletrônica, e eu me debruçando em todos os ritmos. Vira uma zona, e ainda por cima ouvimos enxovalhos. Logo que o relacionamento com Joana acabou, no começo do ano, estava em uma festa com Ana (a imediatamente anterior à Lídia, pensando bem, não sou assim tão voltívolo). Por pura coincidência meu aniversário fora duas semanas depois de ter conhecido a Ana — faço aniversário em 21 de fevereiro — e ela me presenteou com uma bela camisa. Fui, então, à tal festa trajando o estimado presente. Vesti uma calça qualquer, calcei um sapato qualquer, ignorante de que os tais sapatos houvera sido presente da Joana, e mais ignorante ainda de que a própria estaria na festa. Pois estava e no único ensejo que lhe ofereci de estar sozinho, se aproximou e disse, “Cretino, estes sapatos fui eu quem dei, por acaso as cuecas são presente da magrela?”. Joana, por certo tempo depois de termos terminado, insistia em chamar Ana de a Magrela, muito provavelmente por algum despeito inconsciente, sabendo-se sólida, bem composta. As mulheres têm disso também, apesar de ser linda e muito saborosa, Joana provavelmente se comparava à esbeltez de Ana, verdadeira la flaca. Curioso é que Joana deve ter achado bela a camisa que estava usando e ainda gabado-se imaginando que eu tinha ao menos aproveitado um pouco do seu bom gosto e comprado aquele fino, desconhecendo ser presente de Ana. Mas isso até que não me causou tanto problema, Joana e Ana têm gostos muito parecidos.
Sei que podem pensar que sou um pau mandado. Na verdade não o nego, vivo bem e sou feliz assim, oferecendo-me como instrumento para o deleite das vontades femininas. Acho, aliás, que isto até me ajuda na conquista, na aproximação, porque é impossível que eu não seja dócil e atencioso com as palavras e necessidades das mulheres, uma vez que, querendo ou não, concentro-me em lhes fazer as vontades todas. Quando conheci Lídia, minha atual, passou-se algo assim, assim como um demonstrar instantâneo de que sou atencioso ao extremo (e também frívolo, embora ela não saiba). Conheci Lídia no intervalo do primeiro Ato de Aída do Verdi. Tendo amigos em comum, ouvi-a confidenciar a um desses que estava com uma enxaqueca terrível e que precisava ir embora, conquanto não lhe apetecesse pegar um taxi. Prontamente, metendo-me na conversa ofereci-me para leva-la à sua casa, “Eu te levo, agora”, “De jeito algum, não quero que perca a apresentação”, então respondi calmamente mas resoluto, “Não tem problema, não é a primeira e não será a última experiência minha com Verdi”. Desta maneira, mesmo sabendo que não aconteceria nada — como não aconteceu — levei-a até em casa perdendo a ópera maravilhosa e 250 reais da entrada do Municipal, além dos outros 250 do convite de Ana que eu havia comprado antecipadamente, sem saber que teríamos uma briga séria na véspera do evento. Claro que valeu a pena, no dia seguinte não foi difícil descobrir o telefone e ligar perguntando se a cefaléia havia passado.
Mesmo assim é uma complicação. Vivo chamando a Lídia de Ana, assim como chamava Ana de Joana, Joana de Inês, Inês de Úrsula, Úrsula de Carlota, Carlota de Lígia, Lígia de Cecília, porque, em menos de dois anos, estas todas foram minhas namoradas firmes e fixas, na medida em que era quase fixo o tempo em que as substituía. No dia 06 de janeiro, na festa de aniversário de um amigo, um outro amigo — ah, o que não gosta de cebola — me disse que não era tão mau assim, que a única coisa que eu deveria fazer era parar de ser tão voluntarioso à vontade das minhas amantes, “Fica assim resolvido o seu problema”, seguia dizendo este amigo, “Pois, tratando-as um pouco mal, elas não vão ficar no seu pé quando o romance acaba”. Acho que ele tem razão, enfim. Tanto que prometi mudar de atitude daqui para frente, sob pena de mudar meu nome e não me chamar mais João Zuckerman. Coitada, quem vai sofrer as conseqüências disso é a Lídia, que apesar de alguns pesares, andávamos caminhando bem, já há um mês e meio. Mesmo com uma calça e uma camisa, vários cds de jazz, além, é claro, dos sapatos de pato, não será possível mantermo-nos juntos. Se vou começar a estrear uma nova filosofia de relacionamentos, preciso começar com tudo novo. Ah, Hilda, mesmo que eu chame você de Lídia algumas vezes e aceite, quem sabe, uns óculos ou um perfume, ou mesmo uma pegar uma rave, garanto que nunca mais deixo de assistir ao futebol aos domingos pra que tudo corra bem entre nós.
(este conto foi originalmente publicado em 02 de abril de 2007)

Terça-feira

O Carlos Heitor Cony me disse, por esses dias, que a má vontade que dedicamos à segunda-feira, ele estica para o resto da semana. Ora, tomo-lhe a expressão ou antes o sentimento, para dizer que o sorriso da terça-feira me enfastia.
A segunda mal existiu, tão obscenamente foram suprimidos exercícios de pensamento, físico, social. Passou na modorra da manhã, da tarde, da noite. O jornal não foi lido. Ingênua decisão saltar assim a segunda, supondo começar na terça a semana. Martes tornou-se lunes pero no mucho, mal resolvida, que no ocaso de uma alma também indecisa, aguou, e o mesmo promete o resto dos cinco dias.
Irônico, o tempo surgiu lindo, blasfemo, cheio de sol. Os felizes e sadios esbaldam-se, passada a segunda-feira sonolenta e estando esta terça tão gorda, ainda que o calendário marque já tantos dias adiante da quarta-feira de cinzas.

Haja sorrisos, piadinhas, clichês... Não há mais guerras? Não há mais fome? O aquecimento global agora é esfriamento? Os bancos estão a dar dinheiro a qualquer um? Cientistas sintetizaram o orgasmo em pílula? Arre, pessoas todas felizes por viver, esperançosas por nada, otimistas por convicção, ao diabo!... Vou dormir, pois amanhã é quarta, talvez chova até ao dilúvio, ou bem caia um meteoro no meio da América do Sul.
(este texto foi originalmente publicado em 03 de março de 2007, uma terça-feira)

terça-feira, 25 de dezembro de 2007

A síndrome de Zuckerman

A Síndrome de Zuckerman é um mal que ataca os leitores, e os faz pensar que aquilo que vai na boca dos personagens é aquilo que o autor pensa; o que o personagem faz, o que o autor fez ou gostaria de fazer; que as histórias que narra, foram vividas pelo autor. A ficção é ficção. Claro que quando o autor escreve, não se despe por completo de sua personalidade nem de suas experiências de vida, e as usa para contar sua história. Mas, usa a sua experiência, usa a experiência que observou, usa a experiência que ouviu falar, usa a que leu e por aí adiante... Como não sou escritor, sinto ainda ao de leve os efeitos dessa síndrome, mas, como se observa em comentário sobre o texto “Utilidade Pública”, também não escapo por completo dela. Menos mal que agora a explico, porque o próximo texto que virá, “É a mulher quem constrói o homem”, ao menos terá essa recomendação do ministério da saúde dos escribas. De minha parte, me incomoda pouco pensem que sou o personagem que na história vai, ou que vivi o que a história conta. Mas, no caso de paus e das pedras, realmente torço para não chegarem a tanto.
Abaixo segue a explicação de Rubem Fonseca, em seu romance “Diário de um Fescenino”, sobre a Síndrome de Zuckerman. Vale lembrar, ainda que isso me aporrinhe: o excerto abaixo é retirado de um romance, ficção portanto:
“(...) Vila-Matas, o espanhol, fala da síndrome de Bartleby, um sintoma mórbido de inspiração melvilliana que paralisa os escritores, fazendo-os renunciar à literatura. Eu não me incomodaria de sofrer dessa doença que acomete tanto de meus colegas, fazendo-os desistir de escrever. Se sofresse tal enfermidade não seria vítima de uma síndrome ainda pior, que ataca os leitores: a de Zuckerman. É horrível sofrer os efeitos de uma doença que está no organismo dos outros. Fui o primeiro a dar um título a esse mal, que sempre atormentou os escribas.
Zuckerman é um personagem de Philip Roth que decide escrever um livro. Quando o livro é publicado, o inferno de Zuckerman começa. Os leitores, ao se encontrarem com ele, fazem-lhe as piores acusações: Zuckerman, como você foi dizer aquela coisa horrível da sua santa mãe, Zuckerman, você é um homem mau, chamar o seu melhor amigo de ladrão; Zuckerman, você é um nojento, nunca pensei que fosse capaz de fazer aquelas coisas... Os leitores acreditavam que o personagem do livro era o alter ego do autor e que tudo que ele dizia no seu livro se aplicava a ele e aos seus amigos e parentes, era o seu universo. (Roth descreveu a doença mas, na verdade, sempre demonstrou que estava cagando para os que acreditavam ser ele o alter ego de seus personagens. Porém, são raros os escritores que pensam assim.) Todo leitor padece desse mal, mesmo aquele que tem como profissão a crítica literária. Alguns escritores fortalecem essa concepção, como Joseph Brodsky ao afirmar que a biografia de um escritor está nos seus livros, ou Hermann Hesse em seu delírio onfalópsico, ou Goethe com sua teses de que os livros são fragmentos de uma grande confissão. Se a minha biografia está apenas nos meus livros, considerados, como disse um crítico, um repertório imundo de depravações, perversões, degradações, imoralidades repugnantes, serei muito mal interpretado. A biografia de um escritor pode estar nos livros, mas não conforme a visão simplista dos zuckermanianos. Fernando Pessoa disse: o que eu sou é terem vendido a casa Isso é parte importante da biografia completa de Pessoa, terem vendido a casa. Ele era poeta, os poetas, esses grandes filósofos, falam verdades. Nós, ficcionistas, falamos verossimilhanças.
Escrevo sempre na primeira pessoa, o que facilita a visão zuckermaniana que fazem de mim. Os autores sempre procuraram maneiras de se esconder. Bakhtin fez essa demonstração no início do século XX, ao propor uma distinção entre textos monológicos, denominados pela voz mais ou menos oculta do autor, e textos dialógicos, diante dos quais o autor não toma partido. Muitos romancistas, principalmente os ficcionistas dos séculos XVIII e XIX, escreviam sempre na terceira pessoa e, quando queriam contar algo com personagens e situações “estranhas”, usavam truques como abrir o livro descrevendo uma reunião em determinado lugar, um clube, uma estalagem, um restaurante, uma casa, e nesse lugar um personagem, quase sempre identificado com uma inicial apenas, pede a palavra e relata a história. Ou seja, nem mesmo como narrador onisciente clássico o escritor queria estabelecer um vínculo entre ele e o personagem malcomportado. Passava a bola para outro personagem, que mesmo assim não falava na primeira pessoa, usava um derradeiro testa-de-ferro para contar a história. Choderlos de Laclos, ao publicar “Ligações Perigosas” (1782), deixara um alto posto no Exército francês para trabalhar com o poderoso duque de Orléans, o homem mais rico da França, primeiro príncipe de sangue, um liberal conhecido como “Felipe-Igualdade”. Porém Laclos, não obstante tivesse as costas quentes, cercou-se de cuidados. Seu livro — que ele esperava “fizesse escândalo e fosse comentado depois de sua morte” — começa com uma pseudo-advertência do editor: “Acreditamos que o autor, embora pareça haver procurado a verossimilhança, tenha-a destruído ele próprio, estouvadamente, pela época em que situou os acontecimentos a que deu publicidade. Efetivamente, muitos dos personagens que pôs em cena têm tão maus costumes que é improvável supor hajam vivido em nosso século, neste século de filosofia, em que as luzes por toda parte espalhadas, tornaram, como todos sabem, tão honestos os homens e tão modestas e reservadas as mulheres”. Laclos, não satisfeito em defender o texto desse romance epistolar, preserva-se também pessoalmente e acrescenta, agora num “prefácio do redator”: “Encarregado de organizar a correspondência, só pedi como paga a permissão para podar tudo o que me parecesse perfeitamente inútil; e procurei, com efeito, conservar tão-somente as cartas que se me afiguravam necessárias, tanto à inteligência dos acontecimentos como ao desenvolvimento dos personagens”. Essa, Laclos insiste em dizer, foi toda sua participação na obra. “Minha missão não ia além”. Ou seja, ele se distanciava do livro, os leitores chocados acreditariam que ele nada tinha a ver pessoalmente com o que fora dito.
Flaubert, em pleno século XIX, sabendo que o discurso indireto livre que usava para distanciar o autor das plavras e dos pensamentos do personagem não era suficiente — os especialistas afirmam, por exemplo, que a voz do Sénécal, de “Educação sentimental”, é a voz de Flaubert, inferência que ele não queria que fosse estabelecida —, criou este raciocínio astuto: “Madame Bovary c´est moi”; ele era aquela mulher adúltera e sonhadora da província, forçando-nos a estabelecer a conclusão lógica de que o seu personagem, como todos os outros, era uma criação da imaginação do autor, i.e., era o autor, não o seu alter ego, o seu substituto perfeito. Kierkegaard, que aliás assinou a maioria dos seus livros com pseudônimos, diz na abertura do “Diário de um sedutor” que aquele livro foi encontrado por acaso numa gaveta. Os leitores, assim, não suporiam que ele, Kierkegaard, que tanto prezava a pureza da sua alma, era o Johannes que escrevia aquelas cartas apaixonadas para Cordélia. Eu poderia dar dezenas de exemplos, mas não, esta elucubração já está longa demais. (...)”
Diário de um fescenino de Rubem Fonseca. Companhia das Letras, mais ou menos 40 reais.

Utilidade Pública

Citadinos (deste e de outros Estados, por ventura),

Há um ser desprezível e vil que se julga o centro do universo e crê que salvará a humanidade. Porque alguém lhe dissesse, então é diferente, e estando tudo errado, é ele o certo. É uma pessoa que imagina merecer muito mais do que tem e sempre espera a cobrar do mundo desconcertado os benefícios que não logrou êxito. Inteligência sutil, maior, mais limpo, mais belo, mais alto, exemplo explícito do que melhor pode haver, assim crendo, quase se engana ou até: investe em arrancar elogios julgando merecê-los, retira-os aos mais ingênuos. Sobeja-lhe um certo lábio desenvolto e, então, o que deveria ser espontâneo e o não é, por não poder ser, assoma, e regozija-se, e pede mais agrados, assim por uns ou outros crédulos consegue-lhes a inverdade, quando não dinheiro.

Mas é a precisão de que necessita este torpe homem: “és belo, és sábio, és incompreendido, és o melhor, te não dão o valor que mereces, quando te descobrirem..., és tão bom que és humilde...” Há o exagero em seu pensamento, que nem impingindo conseguiu arrancar. Mas, Ah! Basta-lhe! precisa de ouvir tudo isso! E ainda acha que enxerga, e crê que observa, e presume que encadeia, pensa que pensa, mais, mais e mais. Assume as farsas que criou: escreve, joga, estuda, compõe, cria, dedica, revela, ensina, demonstra, ajuda, perdoa, compreende, cobra, recobra, se indigna... e anda a fazer isso com tanta verdade que, pasmem, julga! Então, é pior, porque sai a julgar a tudo e a todos e se sente melhor ou se sente acima, no pedestal de mentira que ele mesmo erigiu. Não polpa ninguém, nem mesmo a si: quanta vileza, quanto asco me causa, pois se pode julgar a si próprio, passa à vista e sabe o que é e não toma em conta.

Assusto-me ao pensar que sabendo quem seja de verdade, e o quanto de mal está a causar a tanta gente, não se importe qualquer pouco que fosse. Meus colegas de cidade, causa-me pena e torço pelo contrário, imaginar que um dia, por azar outorgado do destino, algum de vocês cruzou com tão torpe e vil e reles pessoa em suas vidas. Estejam atentos, denunciem, saiam correndo aos gritos. Não descartem, inclusive, o uso de pedras e paus.

p.s. - eu tinha vontade, mas só pude escrever isso a pedido de Zuckerman, claro.

(na foto, Djinn de El Khaimah)
(este texto foi originalmente publicado em 30 de março de 2007)

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Feliz Natal

“detesto este cheiro de natal”
Veridiana in “Veridianices”(http://www.veridianices.blogspot.com/)


Ao contrário do que seria presumível com o passar dos anos meu enfado natalino é p.g. latente. Nelson Ascher sempre gosta de cutucar com a evidencia de que a sociedade tecnológica contemporânea oferece-nos melhores possibilidades de desfrutar e proteger a vida. Isso seria extensível a datas comemorativas tão arraigadas e contundentes como o Natal (sobretudo no país cristão, enorme, mas, opinião do ateu aqui, difuso, algo como um cristianismo laico? Haverá quem me dê a excomunhão, os laicos, provavelmente.)? Não sei dizer, mas, para mim, cada dia piora, e piora.

O Natal é tão triste (e agora para lá de idéias teológicas ou existencialistas), e a resignação pela solidão chega tão densa quanto um peru desses pré-cozidos que seria até possível tirar-lhe um naco suculento e metê-lo no prato (Papai-noel vestirá ocre no próximo Natal).

Só é bom que se diga que verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo e a percepção geral do nascimento do menino causa um baita regozijo estridente. Sobretudo em tempos de economia superaquecida e esquecida da inflação de 2008. Feliz Natal.

Minha consciência

(O texto que vai abaixo foi escrito por mim a quando de meus vinte anos. Mas, até que gosto dele, ganhou uma vez um concursinho de crônicas num jornaleco do nordeste).
Minha Consciência
Dias para trás estava conversando com minha consciência, conversando é expressão eufêmica para o diálogo, estávamos brigando mesmo, discutindo no mínimo. A certa altura ela me disse, Você merece se ferrar na vida, ao que tentei rematar, Se mereço me ferrar ou não pouco vale, diante do fato de que vou acabar me ferrando de que qualquer modo. Não lhe bastou, de maneira que ficou ainda muito me dizendo e apregoando o que eu deveria ser e não era, o que deveria fazer e não fazia, e o que feito, não deveria ter sido... blablablá. Enquanto a danada espezinhava, observando-a, cheguei a um modelo para defini-la que me parece bom. Eis que pensei ser minha consciência uma lata de água, dessas de cinco litros, que originalmente serviam às tintas, tal como as lavadeiras dos rios de antigamente carregavam à cabeça. “Lata d’água na cabeça, lá vai Maria...”, isso. Como toda lata de material ordinário, opaca, pouco espessa, a altura superando não em muito a largura e o comprimento, estes últimos, iguais. Com princípio de ferrugem nas bordas devido ao uso excessivo e desgastada pelo tempo que nos últimos tempos não tem parado. Parece-me ser a imagem citada romântica, na verdade não me lembro dessa lata d’água na cabeça de Maria, creio que nunca a vi em uso pleno, mas de outro modo me recorda, outro personagem em história diferente (mas não menos sofrida), o Pedro Pedreiro defronte a casa em que morava, nos tempos de eu menino (me redima Manuel Carneiro de Souza), levando a dita cheia de água que se juntaria à areia, às pedras e cal, virando o cimento nada poético que colava os tijolos.
Esmiuçada sua aparência e forma, ela funciona da seguinte maneira. A consciência fica lá guardada na cabeça e uma torneira intermitente pinga. Porque a lata é opaca, não sei o quanto de água possui, não a vejo encher, vai-se somando gota por gota, coisa daqui, coisa de lá, e não dou pela quantidade até o momento em que o líquido supostamente inodoro incolor insípido atinge a borda (com tais caracteres, que bom beber da consciência, não?), quando então o vejo. Mas não é o suficiente, é na próxima gota — muitos diriam a célebre “essa foi a última gota”, gente ardil que não sabe que depois de uma gota vem outra, quando não a enxurrada — que vai transbordar a lata, e aí vem a água, caindo e molhando e ensopando e fazendo trilha por onde vai escorrendo, vazou a consciência, seu limite, sua borda, agora não cabe mais líquido algum. Então ela incomoda, deixando tudo úmido, causando um frio suave e suficiente, quando até o barulho mínimo da água escorrendo perturba: agora são horas de tomar providências.
Assim como as Marias dos rios ou o Pedro pedreiro penseiro, suspendo ao alto a minha lata, claro que não à altura da cabeça, esforço desnecessário, supérflua retórica romântica, e carrego-a pelo caminho que mais rápido houver até o local apropriado para esvaziá-la e, de uma só feita, sem receios, sem escrúpulos, deixo escorrer. Fica vazia minha consciência e, agora sim, levo à cabeça, posiciono-a embaixo da torneira, e me parece tão maneirinha, que calculo algum buraquinho miúdo no fundo que faz com que demore tanto a encher novamente.
Escusado dizer que o diálogo do princípio é raro e se dá no breve caminho entre erguer a lata e levá-la ao local para esvaziar-me dos pecados.
(este texto foi publicado originalmente em 20 de março de 2007)

O esboroante destino dos livros de poesia

“(...)livros são papéis pintados com tinta(...)”
Fernando Pessoa in “Liberdade”, de “Cancioneiro”.

Quem gosta de livros, e não apenas de lê-los, tem um zelo todo maternal com o dia-a-dia e o manuseio. Não permite que eles fiquem empilhados, que se lhes coloquem coisas em cima, que estejam próximos de água, comida, animaizinhos de estimação ou crianças pequenas. A biblioteca tem sempre que ser espanada, não gosta demarquem as páginas com as orelhas, muito menos que se rasure o tomo. Aliás, é de bom agouro colocar saquinhos plásticos transparentes nos mais raros e queridos, e quem sabe mesmo dizer agô quando colocar os pés no templo onde eles repousam.

Eu cuido assim dos meus livros. Emprestá-los é um exercício contraditório interessante, na medida em que a vontade de divulgar leitura, alcançar mais gentes na maravilha da literatura esbarram numa paixão egoísta de posse e cuidado com o objeto. Que prazer oferecer o meu “O Coronel e o Lobisomem” com prefácio gráfico do autor, ilustrações do Potty, comentários da Rachel de Queiroz numa bela edição esgotada da José Olímpyo de 1986... Mas, e o medo de que se me não volte o livro arrumadinho e bem cuidado como ele foi entregue? Normalmente o egoísmo não triunfa, mas o coração bate miudinho nos dias de empréstimo.

Sempre que leio um livro ou torno a ele, preservo-o muito, evitando deslocamentos desnecessários, idas e vindas que podem ser evitadas. E assim se vão conservando, por mais que os tomemos a reler, ou os emprestemos a mãos incautas. Embora muito emprestados e relidos, os meus Saramagos continuam bonitos, exceto o “Evangelho Segundo Jesus Cristo”, que sofreu um acidente lamentável, chapinhando involuntariamente numa poça d´água (involuntário o dono, que o livro, vai-se a saber se não queria imitar o menino Jesus do Alberto Caeiro).

Mas há os livros de poesia. Por exemplo, confesso que estou na minha terceira edição das obras completas do Manuel Bandeira, aquela da Nova Fronteira, azul, que tem uma rosa-dos-ventos dourada na capa e atende pelo nome de “Estrela da vida inteira”. Não dá pra ficar sem o Manuel Bandeira por perto. Escola, carro, viagem, “no vento, na cachoeira, no eclipse”, a poesia urge ser lida e não indaga de lugar ou tempo. Aquele momento de recorrer a um verso esquecido de “Momento num Café” é premente, não marca hora, não espera. É um correr e abrir, procurar a página, vira-la, revira-la, e isto também é uma concorrência efetiva para o desgaste prematuro do livro, tão distinto da leveza que dedicamos ao trocar de folha num “Crime e Castigo”.

O livro de poesia, tem de passar de mão em mão, tem que ir ao colo de todos. Minha obra completa da poesia do Fernando Pessoa está assim toda judiada porque precisou de comunicar. Tido sempre a tira-colo ele é lido em voz alta, mas depois, emprestado a que cada um da roda leia por si só o poema, veja o símbolo, sinta a página. Conversava com uma amiga estes dias sobre a subjetividade da poesia e notei a ela que apesar de tudo, há no poema uma coisa que é física, material, que é a visão da letra escrita, da forma, da fonte, da impressão. Ela é entendida nas engenharias químicas e talvez me compreenda agora melhor na química que existe entre um livro e seu dono.

O livro de poesia tem uma ânsia de comunicar, ser lido e tocado que transcende os outros livros. A vida é mais curta, mais perigosa, mais incendiária, porque doar-se de mão em mão é o caminho mais fácil para o atrito que esboroa o impresso, as páginas, a capa. Tem que ver com intensidade, sem dúvida. Os livros podem ser então como um projeto de vida. Se reclusos e calmos, tácitos e contemplativos, duram tantos anos que se fazem passar por gerações apresentando o “D. Quixote”. Contudo, se imprudentes, arriscados, inconseqüentes, são lume vivaz, fogo-fátuo, brasa que queima firme para apagar-se em pouco tempo, é uma “Libertinagem”, uma “ Rosa do Povo”, e passam em tantas mãos, em tantos calores, por tantas paixões que não têm outro remédio senão desfazerem-se, irem abandonando as plumas ao vento, existindo tão intensamente como as palavras que carregam, e talvez como elas, deixando com fugacidade a vida, como o som de um poema encontra o silêncio depois de declamado.
(este texto foi originalmente publicado em 18 de março de 2007, data, aliás, do aniversário de meu grande amigo Miguel Enrique, que atualmente mora nos Estados Unidos)

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Gamelo

(o texto que segue abaixo me agrada. Nunca despertou algum interesse nos leitores do blogue, suscitando simplesmente nenhum comentário, muito menos de outros a quem o mostrei impresso. Claro, a forma é ruim, a maneira de contar não ajuda. Mas gosto particularmente da idéia e a despeito de o vocabulário parecer - e talvez seja mesmo - pedante, houve uma intenção muito específica para usá-lo (e pesquisa, inclusive). Quem quiser, agora, ainda pode pensar no Padre Capio e no São Francisco, da maneira livre que se queira, claro esteja).
a meu amigo Renato Smirne, que me ofereceu a idéia, e sempre está do meu lado nas dificuldades.
“A gente colhe o que a gente planta”
ditado popular

O homem errava ao encontro do rio. Ia no sentido da jusante, convicto, com apenas um gamelo em mãos. Quando chegou à margem pensou que haveria, por óbvio, uma terceira como algures havia lido. Mas fosse caso para outras reflexões, pois a de agora era esvaziar este rio com o gamelo que trazia consigo. Apressou-se na faina, era lá lide de horas, dias, quiçá século. Empertigado no limiar, o homem baixava o gamelo, enchia-o da água diáfana do rio e entornava o recipiente cerca de três metros para frente numa reta normal com a margem direita. Ia adiantado no serviço quando, sol esmorecido quase de todo, o caminhante se aproxima, põe-se de cócoras, dá dois piparotes num alforje que traz consigo chamando atenção para sua presença e diz:
— Boa tarde, pretendes esvaziar o rio?
— É o que tenciono.
— Pelo visto não vais a contento...
— Havendo força e tempo não faltando...
— Sim, tens razão, mas esqueceste de algo.
— Quê?
— Onde andas a despejar a água que vens retirando?
— Ali, pouco adiante.
— Vejo.
— De que me esqueci?
— De que ali só há uma cova, e mesmo que vás cavar outras, não poderiam elas ser suficientes a toda água do rio...
— Não alcanço, e lembro-te de que havendo força e tempo não faltando...
— Sim, mas se conseguires cavar tão fundo e largo, apenas estarás a transpor o rio, e aí, de que te valeu?

O homem pousou o gamelo no chão, secou com os punhos um suor qualquer da testa e não fitou o caminhante. Havia sido pego num dilema, havia-se-lhe escorregado o sentido de seu trabalho. Soerguendo um pouco mais o corpo afim de aparentar dignidade humilde, perguntou:
— O que é que me sugeres?
— Planta e rega com o gamelo. O homem então apontou o dedo e respondeu:
— Ali ao pé da gameleira andei colhendo tudo quanto plantei e mais muito que nem havia sido eu o semeador.
— A gente aqui colhe o que planta, e a gente aqui colhe mesmo o mato ruim que não plantou.
— Aí é que tens, por conta de vir pegado ou se misturar na barriga da terra com o que era nosso, pelo mal que aramos arrancamos do chão muitos mais males que os nossos próprios.
O homem rematou com essas palavras a conversa, e como sabia que do caminhante não viria por ora senão o silêncio, pôde olha-lo de frente, já nessa altura com um sentimento de cumplicidade. Homem e caminhante haviam se entendido, mas no silêncio mútuo ficava a aresta ardida do que ainda faltava dizer.

O caminhante levantou-se e disse:
— Vá lavrar a leira, não é por semeares uma vez mal e arrancares os teus e outros males que não podes mais mexer na terra.
— Não tenho comigo sementes.
— Ali na beirada do rio deixei umas que encontras à mão.
— E então?
— Usa a cova que já cavaste de rego.
— Ficou muito funda...
— Cava um rego do outro lado e tapa com a terra que vais tirando da segunda, a fundura da primeira.

O homem abaixou-se a apanhar o gamelo, olhou na direção do caminhante que havia reclinado a cabeça num movimento de quem ia abrir o alforje mas desistisse no caminho. O homem caminhou em direção ao ponto indicado da margem e encontrou as sementes, depositou muitas delas no gamelo, depois fez concha com as palmas da mão e sorveu um tanto de água do rio. Ao erguer-se, deu com o caminhante ao seu lado e afirmou:
— São boas as sementes.
— Vai lá trata-las na terra.
— E se eu tornar a plantar mal?
— Pode ser que assim seja.
— E se, plantando bem, nascer raiz ruim pegada com as boas?
— É muito provável, até.
— Então de que me serve?
O caminhante não respondeu, esperou que o homem fosse lento chegar-se à leira e só quando este se agachou para novamente transformar a mão em concha e cavar, falou na voz alta:
— Serve-te para saberes que sempre haverá semente e terra!
— Disso já eu sabia, me faltava encontrar novamente uma e outra.
— Então toma por léria minhas palavras?
— Não, não tomo, porque sei o que carregas no teu alforje.
Antes de tirar a segunda porção de terra do segundo rego, o homem observou o caminhante ao lado da margem do rio, a imagem se misturava com o pôr-do-sol, e o caminhante agora abrira o alforje e tirando algo de dentro gritou ao homem:
—Também eu precisava lembrar-me de que há sempre o rio e sua água!
O homem nada respondeu, baixou na terra para retirar agora o terceiro lote do segundo rego e viu o caminhante descer o gamelo até a água, enche-lo até a borda e ir depositar o conteúdo numa cova que ainda não começara, enfim, a cavar.
(este texto foi publicado originalmente em 16 de março de 2007)

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

NOME; SOBRENOME

Julinho

Na década de 60 o Santos foi para São José do Rio Preto fazer um jogo pelo campeonato paulista. O time que tinha Dorval, Pepe entre outros, além é claro do Pelé, era já imbatível à época. Acontece que naquele dia, o América, time local, venceu a equipe praiana por 3 x 2, com uma atuação brilhante de um zagueiro chamado Julinho, que simplesmente, dizem os comentaristas, anulou o Rei. Na mesma noite, após colher os louros da vitória, dar entrevistas no rádio e tudo o mais, o Julinho foi encontrar a namorada num bairro de Rio Preto. Ao que consta nos ditos populares, o pai da mocinha não era lá muito fã do jogador, desaprovando o namoro, e tendo mesmo proibido a filha e ameaçado o namorado. Julinho levou a moça para um botequim das cercanias, e num adergo maior que o estádio do Teixeirão, houve uma discussão entre um torcedor fanático do Santos e outro fiel ao América. Bom, demorou pouco para perceberem que o genial zagueiro que anulara Pelé estava ali, e então a confusão aumentou. Julinho, para não entrar na disputa, disse que não era Julinho, mas na continuidade do calhar que o ajudava apareceu o pai da namorada, vindo por escutar a gritaria em torno de “algum” Julinho. Ao vê-lo agarradinho com a filha, num momento de histeria, sacou de uma pistola, e antes de disparar duas vezes, teria dito: “Ah, Julinho, é você mesmo, é você mesmo, Julinho, eu te avisei...”. Parece que o santista que deu azo à confusão confabulou baixinho aos colegas americanos: “Era o Julinho mesmo, mas não era pra tanto matar o rapaz. Esse aí é mais santista do que eu”.
(na foto, minha irmã Tatiana, qunado ainda era um tiquinho de gente)
Boamorte
Agora a minha otorrinolaringologista, de posse de um exame de polissonografia, asseverou-me que preciso de fazer uma cirurgiazinha na garganta, ou amídala, ou lá o que seja para desobstruir a passagem de ar. Calcula ela que eu vá poder dormir melhor, ou dormir um pouco, coisa que me seria uma benção visto que há muito não passo uma noite de sono a que chamamos reconfortante. A doutora é velha conhecida e amiga da família, inclusive já fez este mesmo procedimento cirúrgico na minha irmã Tatiana, e isso quando ela era só um tiquinho de gente. O que é divertido na doutora é o seu sobrenome: Boamorte. Isso não me incomoda de maneira alguma (parece que assustou um pouco minha mãe nos idos da cirurgia da Tatiana), até porque, a Dra. Rosângela é um exemplo de competência, conhecimento e atenção minuciosa aos pacientes. Mas, não deixa de ser curioso que a Boamorte passe sua vida tentando fazer da vida alheia uma Boavida e que, se por acaso for a hora de ir desta encontrar o Julinho, seja pelos afagos de uma boa morte, nem que seja a nossa senhora que o Manuel Bandeira costumava invocar em suas preparações para a visita da “dama negra de muita distinção” (é bom que se diga que no caso dele a tal senhora demorou 82 anos para lhe sorrir).
Ciência Divertida
Em 1948, participando dos debates que discutiam os modelos de big bang na evolução do universo, o cientista George Gamow assinou junto com seu orientando, Ralph Alpher, um artigo famoso por representar os estágios primitivos do cosmo, fazendo a previsão de que a radiação, na forma de fótons, vinda do início do big bang, ainda deveria estar espalhada por aí (e por aqui, em 2007, também), embora com temperatura reduzida a apenas uns poucos graus acima do zero absoluto (o que é um frio de doer o osso). Quando foi publicar seu artigo, Gamow convidou um colega cientista nuclear (e que nada tinha que ver com as pesquisas sobre os fótons) para emprestar o seu nome na assinatura da publicação. Hans Bethe topou a brincadeira e o artigo sobre o nascimento e origem do universo saiu assinado por Alpher, Bethe e Gamow, as três primeiras letras do alfabeto grego. Difícil imaginar que o Julinho estivesse escapado da fúria do pai homicida se se chamasse Boamorte (manchete: “beque central Boamorte acaba com Pelé em Rio Preto), como também não acho que melhor será a minha cirurgia do mês que vem se for com a Dra. Rosângela Gamow. Mas, Julinho Gamow Boamorte assinando um artigo sobre as temperaturas do universo no instante imediato ao big bang seria convincente até demais. E a Julieta disse ao vento (sem saber que Romeu a escutava): “(...)What's in a name? that which we call a rose/ By any other name would smell as sweet (...)”.
(este texto foi originalmente publicado em 12 de março de 2007)

Bazófia

(Reproduzo a seguir uma crônica publicada no jornal "O Imparcial" de Araraquara há cerca de dois anos. Resolvi coloca-la aqui pelo número de pessoas que me perguntaram (preguiçosos) o significado da palavra bazófia. Bom, é preciso dizer que por ter mais de dois anos, algumas coisas mudaram. Outras não. A principal delas, na minha opinião, foi que o editor do caderno de cultura do jornal voltou a ter juízo).

Bazófia

"Vivemos para dizer quem somos"
José Saramago, em entrevista a Juan Arias para o livro "José Saramago: o amor possível".

Li alhures que pessoas que se metiam a escrever, no princípio (e depois se não lhes chega talento ou bom-senso), enfiam garganta abaixo do leitor tudo quanto é tipo de citação e referência aos livros e autores com os quais já travou contato. A argumentação era algo na linha de que poderia faltar ao escrevente confiança e capacidade para aventurar-se num texto sem o devido alicerce de uma recorrência aos clássicos, afinal de contas, se literatura é recontar, tanto melhor se se reconta o que já é consagrado. Nada mais preciso. E se não cito o autor da constatação de acima, é simplesmente porque a memória me deixou na mão. A verdade é que lemos uns quantos livros, conhecemos uns quantos autores, apenas um cisco numa miríade de nomes, títulos e línguas, e já andamos a achar que podemos escrever uma crônica, ter uma coluna, produzindo nela duas ou três idéias mais ou menos originais e imiscuindo uma torrente de citações dos nossos autores prediletos. Quando não plágios descarados travestidos aqui e ali de palavrinhas diferentes.

É o caso desta Bazófia. Após dois meses saindo toda terça-feira, imaginei que fossem horas de me apresentar, de dizer, Olá, cá sou eu quem está atrás das bobagens que os senhores vão por aí lendo. Menos explicações, mais citação. Como bem diz Nelson Archer, o colunista tem de abandonar o pudor, a vontade de esconder o eu, uma vez que a crônica é um exercício de escrita em que importa ao redator a imaginação de sua “audiência”, já que o público que vai se delineando na mente do cronista, por conta até de uma periodicidade que muitas vezes proporcionará a ambos que andem a tratar de assuntos inconclusos, “de processos em andamento”, é um público que se deixará conhecer.

A pessoalidade da coluna não tem que ver, em princípio, ou necessariamente com os caracteres vulgares do cronista, que tipo de comida gosta, qual a sua cor, altura, como se veste, se prefere futebol ou natação. A aproximação, que aí inverte o exercício de imaginação para o leitor, será feita a partir da montagem das várias leituras que se fará ao longo da existência da coluna (claro que isso se aplica aos bons cronistas que têm a competência de manter leitores amiúdes, e é bom que se diga, este em questão não se presume). Assim até mesmo então se poderá inferir para que time torce o dito cujo e a cor de gravata predileta do patriota. É por isso que aqui não vim dizer, Sou Juliano Machado, estudante do quinto ano de direito e de algum qualquer de letras, desempregado, vinte e seis anos, apreciador das cervejas mais encorpadas e de bom uísque.

A liberdade de se escrever num caderno de cultura possibilita também que os assuntos tratados sejam tantos quantos o cronista se julgue capaz de comentar. A proposta desta coluna, que ademais não tem qualquer espécie de proposta, era falar de literatura, e tudo quanto de alguma forma se relacionasse com ela. Sabendo o que enfim é o ego, e aproveitando conscientemente um espaço que não é simples nem corriqueiro de se obter, sempre que posso (e enquanto puder) venho metendo cá pequenas prosas, exíguos continhos, brincadeiras literárias cuja aventura decorre do prazer das leituras, dos quantos — e ainda bem poucos — livros citados acima. Afinal de contas, é pelo interesse em comunicar, e sempre em busca do leitor, que se escreve. Ou seja, escreve-se para poder ser lido. Aquilo de diários escondidos em recônditos perdidos, poesias em gavetas de chaves esquecidas, romances em armários com teias de aranhas será muito romântico, quando forem descobertos. Eu quero ser lido, e em conseqüência criticado, e em conseqüência evoluir, ou então descobrir quem enfim ainda posso servir para alguma outra coisa, se isso não der certo. Afinal de contas a Bazófia já no signo leva a presunção.

Aliás, o que mais teria valido a pena ter dito para explicar e quem sabe justificar a coluna é que diabos enfim significa a palavra bazófia. Diz-nos o Dicionário Houaiss da língua portuguesa:

bazófia s.f. 1 vaidade exacerbada e infundada; vanglória, presunção 2 m. q. fanfarrice 3 CULI ensopado feito com sobras de comida. ETIM it bazzofia ´ministrone, conjunto confuso de elementos díspares´ [etc].

Será então bem assim esta coluna: presunção de alguém que pensa que pode escrever qualquer coisa sobre algumas coisas, com uma vaidade, ainda que não exageradamente exacerbada, bastante infundada, e além disso um texto que bem poderia ter o nome de fanfarrão, e que no final das contas é uma mistura absolutamente confusa de restos de comida que sobejam de uma viagem sem qualquer método pelo delicioso mundo da literatura, viagem de escaler que há nem dois quartos de hora deixou um porto pequenino, num rio que ainda tem de navegar muita água antes de ir ter com o mar.

Muito prazer, Juliano. E até terça-feira que vem, não nos venha a cair o mundo em cima da cabeça, ou simplesmente o editor do caderno, aliás a quem agradeço o espaço, volte a ter juízo.
(este texto foi publicado originalmente no dia 12 de março de 2007)

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Enquete

Nova enquete: o que é pior, um intelectual ou um ambientalista?

Jean Baudrillard

Comecei há alguns dias ler "As transparências do mal", de Jean Baudrillard. Estou gostando do livro, me parece uma abordagem filosófica original no que tange o homem contemporâneo. Mais ainda não sei explicar nada, nunca li nada dele, nem sequer umas indicações de uns poucos textos na minha época de faculdade.


Como nunca o havia lido, nunca o havia citado em textos. Como faz pouco que passei a lê-lo, motivo ainda não tinha para escrever sobre ele. Aconteceu que hoje aconteceu de eu deixar de ler o livro do homem para me meter numa faina que afinal acabou dando num texto que está na sessão "Escatológico". Pois é, pela primeira vez na minha vida citei um livro de Jean Baudrillard, num poste que foi ao ar ali pelas 17h.


Jean Baudrillard morreu hoje, em Paris. Li essa notícia no sítio do uol (que raramente entro, fui lá procurar o resultado da partida entre Liverpool e Barcelona, que o Terra, portal que eu mais uso, não informava), uma notinha publicada às 16h11min. Uma coincidência boba, mas que me tocou (embora a notinha tenha sido publicada antes de eu terminar o texto, só a li depois de ter postado o "Capinar").


Quando o Drummond morreu, em 17 de agosto de 1987, eu estava para completar nove anos. Eu conhecia "Quadrilha" e já tinha de alguma forma me afeiçoado infantilmente ao magrelo poeta. Não senti sua morte com força, mas percebi que alguém especial havia partido. Anos depois, não muitos, me deparei com um poeta maior, e senti enfim sua morte.


João Cabral de Melo Neto morreu a 09 de outubro de 1999. Eu estava viajando para o sul do país nessa data. Quando cheguei em casa, na segunda-feira, 11 de outubro, vi o jornal de sábado, a Folha Ilustrada em cima do piano com os dizeres "Morre João Cabral". Na praia, com amigos, alienado do mundo, não ficara sabendo do falecimento do poeta. Senti uma ausência funda, eu a conversar com os parentes e ali no fundo, em cima de um piano calado a notícia de um grande poeta que agora se calara também.


A morte. Surda como no poema de Larkin. Vou terminar de ler o livro do Baudrillard, quererei provavelmente ler outros, mas agora ele está calado. No meu capinar de hoje, desenterrando insetos e sujidades, não precisei de nenhum Yorik para me entregar o crânio, e nenhum Hamlet para dizer que se não sabemos nada daquilo que aqui deixamos o que nos importa deixa-lo antes. Alguns nos deixam antes, parece-me que é a vida.


Estou que no fim, o meu casinho nem tão curioso de citação póstuma sem o saber ficou de homenagem involuntária a um pensador. Sincera homenagem.


p.s. - o texto começou ser escrito quinze minutos antes da meia noite, portanto, dia 06. Ficará com a data do término, meia-noite e pouquinho do dia sete.


(texto originalmente publicado em 06 de março de 2007 no endereço: http://julianomachado.blog.terra.com.br/?m=200703&&page=3 )
(na foto, Jean Baudrillard, falecido em 06 de março de 2006, em Paris)

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Capinar

Quando a necessidade nos empurra a capinar é que a coisa já não vai bem, não sendo esse o nosso ofício de comum. Ou são férias. Mas a coisa ainda não vai bem, porque além dos montes há a praia, quase sempre. O caso é que fui capinar a calçada da casa em que moro (há uma distinção tão fundamental entre "a casa em que moro" e "a minha casa" que este parêntese é tolo). Dizia que fui capinar a calçada da casa em que moro com o sol das onze ardendo na cabeça. Claro, escolhi o sol a pino para me dar o sofrimento cúmplice do que então imaginava ser pegar na picareta e na enxada. Calção velho, chinelos havaianas, sem camiseta, e o mais ridículo: o celular no bolso (junto ao controle do portão elétrico).
A calçada não é pequena para o meu gosto. A frente da casa terá qualquer coisa como 25x10m, e o calçamento não foi terminado, estando no cimento, com os recortes delimitados no que seria, imagino, a futura cobertura acabada. Ou então deixou-se assim para tornar num jardim rupestre, o que até não desagradaria, a despeito de ser absolutamente óbvio, pela quantidade de ervas daninhas que me esperavam, que de rupestre ali planta alguma poderia ser chamada. O muro tem hera em cima de si, o que se não faz diferença na faina de capinar, soma-se com peso grande na hora de limpar, já que as folhas verdes e as folhas secas caem num choro de criança desautorizada no doce: devagar e sempre, soluçando. Curioso como uma simples calçada inacabada pode servir de espelho do que vai ficando por terminar nas construções humanas (escusado dizer que não só as de alvenaria, há calçada para tanto gosto e paladar da terra até ao céu das nossas filosofias).
Os buracos que a chuva vai esculpindo no piso, junto à depressão do terreno e à força das raízes das ervas daninhas, que é bom que se diga há algumas parrudas, são muito cheios. Então eu meti a picareta com a ponta mais aguda no primeiro que vi pela frente e fui cavoucando pra ver o quanto saia. Terra, mato, mato, terra, caramujo, formigas, outros insetos que não identifiquei, uma sujeira que não sei bem o que seja, farelo de folhas secas, restos de penas etc. Pode até ser que o Manoel de Barro encontre beleza nessas coisas miúdas e outros ciscos, mas, pondo a mão na massa, não é tão edificante assim, ou desedificante, como queria o poeta.
A atividade não chega a variar muito de escarafunchar a terra com a picareta, arrancar o mato com as mãos, varrer para a sarjeta os detritos despojados do buraco. O que acontece, entretanto, é que bastantes buracos não passam de nesgas, frinchas onde a gente tem que meter a mão e uma chave de fenda (não sou profissional da coisa, se há equipamento apropriado, e imagino que haja, não sei qual é) na fendinha e ir puxando a porcariada. Que merda. Merda mesmo. As plantinhas menores normalmente estão assentadas na fissura com bosta de animal (suponho que cachorro e gato, mas a gente sabe que os muros e calçadas com muito verde são os preferidos para a evacuação de mendigos e bêbados). E essa bosta, em alguns casos quase petrificada, não deixa de feder e de ser desagradável ao tato. Curioso como meter a mão nos buracos das calçadas que ficaram por construir e achar nela merda não deixa de ter o seu paralelo num olhar paras as nesgas do nosso passado, e o que nele muitas vezes encontramos de sujidade.
Como não dá pra ficar lavando a mão de buraquinho em buraquinho, a sujeira que se vai acumulando nas mãos e no corpo (com a ajuda do suor que o sol do meio-dia, treze horas, quatorze horas) torna-se preta e uniforme, e depois de um tempo o nariz se acostumou ao fedorzinho. E se tem porventura coco debaixo das unhas, não se poderia identificar sem um exame químico, porquanto a gente prefira nesse caso ver barro escuro onde merda há. Planta e terra são trecos que coçam e se espalham, motivo pelo qual da cabeça aos pés há pó de detritos, além de uns pontinhos vermelhos e muito irritantes de alguma alergia que não se saberá ao certo.
Saldo da brincadeira: 1)uma calçada limpa de ervas daninhas; 2) uma sarjeta com montinhos de ervas daninhas, terra, areia, ciscos, insetos e merdinhas juntados geometricamente a cada metro, pois a preguiça se esgotou a quando de colocar no saco de lixo; 3) uma vassoura quebrada pela inépcia do condutor; 4) um cidadão que parou de ler "As transparências do mal" porque pensou que seria mais útil colhendo erva daninha, de dedos com bolhas, sujo até a cabeça de barro e caganitas, além de estar com o lombo torrado do sol e cansado como se muito houvesse trabalhado; 5) e o pior, é que como não tem paciência de ir, agora, cuidar da hera do muro, vai tomar banho e reler todos os textos da celeuma envolvendo o Renato Janine Ribeiro a ver se tem algo forjadamente criativo para escrever, num texto que postará em seu blog, afim de que o vejam inserido no debate intelectual do Brasil que não capina merda nenhuma.
p.s. - o "saldo da brincadeira" enumerou-se para que eu pudesse avacalhar-me em terceira pessoa sem exacerbado dramatismo.
(texto publicado originalmente em 06 de março de 2007, no endereço: http://julianomachado.blog.terra.com.br/?m=200703&page=4 )

Urinar no jardim

Meu amigo Júlio gosta mesmo é de mijar no jardim de sua casa. Ele explica: "Não é que não uso os banheiros para fazer xixi, uso sim. Mas é que mijar é bom mesmo no jardim, porra".
Eu pergunto sobre a higiene, ele não parece ligar: "Primeiro que se eu não mijo, o gato mija, o passarinho caga. E outra coisa, eu sempre deixo uma mangueira à mão e dou uma molhadinha nas plantas por cima da minha molhadinha". Ele ri.
Eu insisto com ele, Júlio, e as mãos? "Veja você, na verdade não é sempre que eu volto para lavar, não. Quem inventou as bactérias foram os microscópios. E outra, mijar no jardim é a coisa selvagem, o vento no pinto, depois balangar os respingos e passar as mãos nas calças".
Julio me convidou para almoçar esses dias, serviu belo prato à base de um tempero de ervas. Perguntei alarmado, você não planta suas próprias ervas, né? "Descansa amigo, só uns miosotis, e mesmo assim jamais colhi nenhum".
(texto originalmente publicado em 01 de março de 2007 no endereço: http://julianomachdo.blog.terra.com/?m=200703&page=4 )

Matisse


(Odalísca, Matisse)

Hoje soube pelo Bernardo Carvalho de que, em 1940, Henry Matisse esteve para vir ao Brasil. A França ocupada pelos nazistas estava arrasada, e ele já tinha o visto no passaporte para desembarcar no Rio de Janeiro. Parece que mudou de idéia em cima da hora, porque, segundo o próprio pintor, "não poderia desertar de seu país diante de tamanhã destruição".
Sempre gostei muito de Matisse, mas não conhecia esse dado biográfico. Fiquei pensando o que não poderia ter saído do gênio, aos setenta anos que tinha então, vendo a nossa cidade
Maravilhosa (que se saiba que não acho ela tão maravilhosa assim).
Para além da importância de Matisse nas tintas, me deu uma vontade de escrever uma historinha do tipo "e se Matisse tivesse vindo ao Brasil". Ora, a quem engano? Não vou pesquisar o Rio da década de 40 e não tenho cá comigo nenhuma boa idéia para inventar uma ficção. Isso é mais com o Jô. E seria engraçado.

Sem mais

Como não tenho absolutamente nada para dizer ultimamente e também pouca paciência me sobra para fingir - escrevendo - que teria algo a contar, penso em ir colocando alguns dos textos antigos (do endereço antigo) desta Bazófia.

Cumprirá essa ação duas tarefas duplamente inúteis: servirá para não deixar a página às moscas e também para que afinal haja algum arquivo do que foi escrito anteriormente (para algum novo leitor incauto?).

Maus escritores assim o fazem, já dizia o Rubem Fonseca: criam meia dúzia de novelhos e ficam lambendo as crias (já adultas) quando não dão mais no coro.
p.s. - escusado dizer que não sou mau muito menos bom escritor, simplesmente não sou.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

A morte do pica-pau

(clicando-se no título deste post, chega-se à "As flores de plástico")
Existe época de aves? Digo, assim como época de morango, florada de azaléia e assim por diante? Eu prometo que não sei, mas poderia bater o pé e fazer preces de que estamos na época dos pica-paus. Só assim eu poderia conceber que tenha visto tantos deles por aí, numa profusão que transcende em muito o comum de olhar e ver pica-paus.

Mesmo agora quando saí para a corridinha do fim de tarde foram três! Note bem, estou falando de três pica-paus! Em área urbana, ainda que bastante arborizada. Supondo que dois formavam o casal, quem era o terceiro? O filho? Muito crescido para ainda ter com os pais. O amante? Bom, não sou ornitólogo e desconheço os costumes sexuais dessas aves.

Fiquei percebendo que a primeira idéia, meio platônica por assim dizer, que me surge à mente quando penso em pica-pau é o da Universal Estúdios, criado pelo Walter Lantz na década de quarenta. Bem, nada mais diferente do que o nosso pica-pau tupiniquim, que muitas vezes tem um ventre amarelo de plumagens que vão até ao pescoço, envolvendo-lhe pelo dorso que tromba, por fim, no indefectível topete vermelho, este sim, inconfundível. O pica-pau do desenho animado todo mundo sabe como é, e pica-pau azul claro todo mundo também sabe que não existe (para não falar do bico ama

Este texto queda-se aqui. Isto não é Kafka e nem pretende, mas vou arriscar, como se estivesse frente a frente com quem me lê, em conversa grave. Não vejo mais sentido agora em falar de pica-paus. Acabo de saber da morte de duas irmãs gêmeas, em acidente na estrada que liga Bueno de Andrade à minha Araraquara. Vinte e um anos. Parece-me perderam o controle do veículo. Eu não sei exatamente o que pensar sobre isso, mas me chocou. Chocaria a qualquer um? Morreram oito pessoas no acidente com o Learjet em São Paulo, são mortes menos chocantes? Há como valorar isso? Eu não conhecia as meninas que morreram, mas será que a proximidade geográfica, o fato de eu mesmo passar com alguma freqüência pela estrada em questão são ingredientes para me comover mais? Repito, eu não sei.

O que sei é que Sêneca tem razão, que Hamlet tem razão e que Larkin tem razão. Manuel Bandeira tem razão, pois a vida é uma agitação feroz e sem finalidade. Muitos outros ainda têm razão. Quem não tem razão sou eu: minha única sorte é não acreditar em deus e não ter que me revoltar com ele, não acreditar em destino e não ter que com ele me preocupar. A estupidez da vida é algo tão latente que não consigo sequer pensar em filosofias. Seria culpa de ter uma percepção demasiado acentuada do caráter transitório da vida? Seria problema com neurotransmissores? Seria fingimento de quem não tem opinião, e tem medo? Eu não sei. Sei apenas que a morte, surda, caminha ao lado. Afinal, como notaram as minhas flores de plástico: "(...) a percepção arrastada ao longo dos séculos de que afinal, à morte, ninguém pode fazer esperar eternamente, corroborando com isso o príncipe hamlet, que muito anteriormente havia dito que se não sabemos nada daquilo que aqui deixamos, que nos importa deixa-lo antes?

p.s. – escusado dizer que o título do texto não seria este, e que o texto, mesmo, também não seria. Mas absolutamente perdi o fio da meada e não consegui retomar o argumento das aves de topete vermelho. Deu no que deu, só posso pedir desculpas, ainda que melhor seria não tê-lo publicado.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Enquete da semana

Há cerca de seis anos atrás eu inventei de enviar para a minha lista de emeios uma “enquete da semana”. A diabinha era simples: sete perguntas correspondentes aos sete dias da semana (ainda que não houvesse necessária relação da pergunta com o dia, era só uma espécie de delimitação). Toda segunda-feira saia a enquête para minha listinha e suas sete perguntas transitavam entre diversos assuntos (claro que eram perguntas arbitrárias, eu as escolhia de acordo com o que eu queria provocar. Por mais que tentasse ser plural — lá o que isso signifique — não podia abraçar o mundo e nem deixar de partir de mim, pois afinal não era senão eu quem perguntava) suscitando, por sua vez, respostas variadas e deliciosas.

A enquête tinha até uma epígrafe, que a minha amiga Claudia me mostrou quando respondeu à primeira rodada de perguntas. É do Ferreira Gullar:
"Quando a gente sente o nosso corpo, é porque está doente. Normal, parece que a gente não tem coração, estômago, intestino, nada. Viver também é assim: quando a gente começa a fazer muita pergunta é sinal de que está doente... Quem pergunta demais, vira poeta, filósofo, pirado ou místico. Por que estou aqui? O que é o mundo? Para onde vou? ..."

A primeira temporada da enquête durou cerca de um ano: por incrível que pareça a audiência foi muito boa. Muitos respondiam abertamente, outros o faziam só para o perguntador, mas o caso é que eu sempre fiquei satisfeito com o retorno dos amigos (amigos, conhecidos, conhecidos de conhecidos). Não havia regras, exceto uma: eu mesmo nunca respondia as perguntas. O que não causou problemas, primeiro porque a minha intenção não era que os outros descobrissem o que eu pensava das minha próprias questões (em muitos casos eu não pensava nada, queria era aprender a respeito), segundo porque a provocação a que me propus causou o efeito que desejei: as pessoas queriam mesmo era mostrar o que elas pensavam a respeito (a respeito de qualquer coisa, aliás). Depois disso, ali por meados de 2006, tornei a fazer o bendito questionário, mas dessa vez não tive muita adesão, e durou pouco a nova temporada.


Quando mudei agora de casa (endereço de blogue), apareceu a possibilidade de publicar uma enquête, ali embaixo da página, e não perdi tempo. Ainda não sei qual o alcance e nem a forma que pretendo dar à brincadeira aqui na Bazófia, mas uma coisa é certa: eu gosto do ar provocativo das enquetes. Como não sei ao certo o que farei com o espaço, ao menos uma coisa eu vou mudar da original “enquête da semana”. Vou declarar meu voto.


Nessa primeira, eu votei na Camila Pitanga por um motivo simples: já nunca fui fã de Deus (vez que sequer acredito em sua existência), daí que para eleger um e degustá-lo, ora, entre as opções, aquela morena de pele nédia e precisa nas curvas me parece bastante mais palatável.


p.s. – segue abaixo a primeira lista de perguntas, de março de 2001. E depois, a primeira lista da segunda temporada, algo como setembro de 2006.
Enquete de março de 2001
1.) O que você acha do novo salário mínimo?
2.) Qual a nota atual do presidente Fernando Henrique Cardoso? (de 0 a 10)
3.) Você esteve na Festa do Jair?
4.) Se chegarmos à Alca poderemos ir à Disney com passaportes do Hopi-Hare?
5.)Qual deveria ser a atitude do Presidente do Senado, Jader Barbalho, em vista das novas acusações de envolvimentos com os desvios de dinheiro público na SUDAN?
6.) O Rubinho Barrichelo teve culpa no acidente?
7.) Comente a frase: “É geneticamente impossível engravidar em um baile funk.”
Enquete de novembro de 2006:
1) O que você acha da condenação de Saddam Hussein à forca?
2) Sabe do que se trata a teoria das supercordas?
3) Qual a sua religião?
4) Qual a última vez em que você riu sozinho?
5) O que pensa a respeito da reeleição do presidente Lula?
6) Que livro você está lendo no momento?
7) Graças a Deus?

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

A casa dos sonâmbulos

A porta apenas encostada destaca-se na penumbra numa somente tonalidade de ocre. Um fio escorreito que é menos escuridão e sequer luz distingue-se porque cresce, lento, indeciso, e vai se tornando num triângulo isósceles que aumenta o ângulo de seu vértice. Da porta o vulto é da mãe. Ninguém lhe observa, ninguém a adivinha e a percepção do filho é somente, quem sabe, uma sensação táctil de um ar que tremula, diferença de pressão impossível de ser aferida. Ele mesmo sentado a um canto, e um pouco mais iluminado por uma réstia de sol que agora invade, fagueira e moleca as espessas cortinas (se outro fosse o tempo caberia melhor a colgadura), não se deixa notar. Se a luminosidade ora lhe é mais bondosa, a ausência absoluta de movimento equipara as duas figuras.
Cruzam-se. Movimentando-se em relação ao filho, a mãe passa. A luz vê movimento no repouso da mãe, o filho ultrapassa-lhe. Não há repouso absoluto, e por isso mesmo, qualquer vislumbre de confluência que apaziguasse o olhar. Não se percebe quem abriu as janelas e agora a luz escorreria abundante se deus não tivesse programado dias chuvosos. Entretanto os objetos saíram da penumbra. Um prato é um prato, uma xícara é bem uma xícara e cumprem suas funções de xícara e prato. Mas não estão. Nem a mãe, nem o filho, nem a louça estão. Adejam o soalho, adejam o mármore da pia, adejam os móveis todos da casa. Físicos, sabem que o tempo não é absoluto, imateriais, não se percebe cientificamente como deixaram de deslocar ar à sua passagem. O relógio do filho marca as horas que nem algarismos correspondentes possui o relógio da mãe. Ainda assim, escurece novamente antes da conveniência invernal.

As sombras retornam. Já não se sabe se xícara ou prato, se mãe ou filho. A casa é silêncio de trastes imperscrutáveis. Os relógios dissonantes concordam que é tempo de apenas encostar novamente as portas (sem agentes do movimento o ar farfalha e, suavemente, dança). A casa finalmente respira. E cuida por si mesma de tapar as frestas, vedar as nesgas, garantir o sono de mãe e filho, que lhe retribuirão não acordando de fato.

A porta apenas encostada destaca-se na penumbra numa somente tonalidade de ocre. Um fio escorreito que é menos escuridão e sequer luz distingue-se porque cresce, lento, indeciso, e vai se tornando num triângulo isósceles que aumenta o ângulo de seu vértice. Da porta o vulto é de alguém. Ninguém lhe observa. Ninguém pôde supor que o relógio acertou o compasso porque se tornou único, mas não sabe qual. Uma tesoura cortará o Anel de Moebius na largura, depois de tantas vezes tê-lo cortado no comprimento, esgarçado a um tal ponto sua única face só dupla que agora para recriá-lo em nova existência, apenas leve pressão será necessária, e a lâmina tão desgastada, não precisará de meio fio para o modificar.

A casa finalmente respira. Destapou as nesgas, abriu os interstícios todos, e parece que a luz agora entrará para colocar cada coisa em seu lugar, deixando as xícaras serem xícaras, os pratos serem pratos, a louça ser louça em sua variedade.