quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Bazófia

(Reproduzo a seguir uma crônica publicada no jornal "O Imparcial" de Araraquara há cerca de dois anos. Resolvi coloca-la aqui pelo número de pessoas que me perguntaram (preguiçosos) o significado da palavra bazófia. Bom, é preciso dizer que por ter mais de dois anos, algumas coisas mudaram. Outras não. A principal delas, na minha opinião, foi que o editor do caderno de cultura do jornal voltou a ter juízo).

Bazófia

"Vivemos para dizer quem somos"
José Saramago, em entrevista a Juan Arias para o livro "José Saramago: o amor possível".

Li alhures que pessoas que se metiam a escrever, no princípio (e depois se não lhes chega talento ou bom-senso), enfiam garganta abaixo do leitor tudo quanto é tipo de citação e referência aos livros e autores com os quais já travou contato. A argumentação era algo na linha de que poderia faltar ao escrevente confiança e capacidade para aventurar-se num texto sem o devido alicerce de uma recorrência aos clássicos, afinal de contas, se literatura é recontar, tanto melhor se se reconta o que já é consagrado. Nada mais preciso. E se não cito o autor da constatação de acima, é simplesmente porque a memória me deixou na mão. A verdade é que lemos uns quantos livros, conhecemos uns quantos autores, apenas um cisco numa miríade de nomes, títulos e línguas, e já andamos a achar que podemos escrever uma crônica, ter uma coluna, produzindo nela duas ou três idéias mais ou menos originais e imiscuindo uma torrente de citações dos nossos autores prediletos. Quando não plágios descarados travestidos aqui e ali de palavrinhas diferentes.

É o caso desta Bazófia. Após dois meses saindo toda terça-feira, imaginei que fossem horas de me apresentar, de dizer, Olá, cá sou eu quem está atrás das bobagens que os senhores vão por aí lendo. Menos explicações, mais citação. Como bem diz Nelson Archer, o colunista tem de abandonar o pudor, a vontade de esconder o eu, uma vez que a crônica é um exercício de escrita em que importa ao redator a imaginação de sua “audiência”, já que o público que vai se delineando na mente do cronista, por conta até de uma periodicidade que muitas vezes proporcionará a ambos que andem a tratar de assuntos inconclusos, “de processos em andamento”, é um público que se deixará conhecer.

A pessoalidade da coluna não tem que ver, em princípio, ou necessariamente com os caracteres vulgares do cronista, que tipo de comida gosta, qual a sua cor, altura, como se veste, se prefere futebol ou natação. A aproximação, que aí inverte o exercício de imaginação para o leitor, será feita a partir da montagem das várias leituras que se fará ao longo da existência da coluna (claro que isso se aplica aos bons cronistas que têm a competência de manter leitores amiúdes, e é bom que se diga, este em questão não se presume). Assim até mesmo então se poderá inferir para que time torce o dito cujo e a cor de gravata predileta do patriota. É por isso que aqui não vim dizer, Sou Juliano Machado, estudante do quinto ano de direito e de algum qualquer de letras, desempregado, vinte e seis anos, apreciador das cervejas mais encorpadas e de bom uísque.

A liberdade de se escrever num caderno de cultura possibilita também que os assuntos tratados sejam tantos quantos o cronista se julgue capaz de comentar. A proposta desta coluna, que ademais não tem qualquer espécie de proposta, era falar de literatura, e tudo quanto de alguma forma se relacionasse com ela. Sabendo o que enfim é o ego, e aproveitando conscientemente um espaço que não é simples nem corriqueiro de se obter, sempre que posso (e enquanto puder) venho metendo cá pequenas prosas, exíguos continhos, brincadeiras literárias cuja aventura decorre do prazer das leituras, dos quantos — e ainda bem poucos — livros citados acima. Afinal de contas, é pelo interesse em comunicar, e sempre em busca do leitor, que se escreve. Ou seja, escreve-se para poder ser lido. Aquilo de diários escondidos em recônditos perdidos, poesias em gavetas de chaves esquecidas, romances em armários com teias de aranhas será muito romântico, quando forem descobertos. Eu quero ser lido, e em conseqüência criticado, e em conseqüência evoluir, ou então descobrir quem enfim ainda posso servir para alguma outra coisa, se isso não der certo. Afinal de contas a Bazófia já no signo leva a presunção.

Aliás, o que mais teria valido a pena ter dito para explicar e quem sabe justificar a coluna é que diabos enfim significa a palavra bazófia. Diz-nos o Dicionário Houaiss da língua portuguesa:

bazófia s.f. 1 vaidade exacerbada e infundada; vanglória, presunção 2 m. q. fanfarrice 3 CULI ensopado feito com sobras de comida. ETIM it bazzofia ´ministrone, conjunto confuso de elementos díspares´ [etc].

Será então bem assim esta coluna: presunção de alguém que pensa que pode escrever qualquer coisa sobre algumas coisas, com uma vaidade, ainda que não exageradamente exacerbada, bastante infundada, e além disso um texto que bem poderia ter o nome de fanfarrão, e que no final das contas é uma mistura absolutamente confusa de restos de comida que sobejam de uma viagem sem qualquer método pelo delicioso mundo da literatura, viagem de escaler que há nem dois quartos de hora deixou um porto pequenino, num rio que ainda tem de navegar muita água antes de ir ter com o mar.

Muito prazer, Juliano. E até terça-feira que vem, não nos venha a cair o mundo em cima da cabeça, ou simplesmente o editor do caderno, aliás a quem agradeço o espaço, volte a ter juízo.
(este texto foi publicado originalmente no dia 12 de março de 2007)