terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Mas é carnaval

Terminei hoje a transição canalha dos textos do antigo endereço deste blogue (http://julianomachado.blog.terra.com.br/). Tudo quanto vai aí para trás e que contém nas etiquetas a palavra arquivo, não é senão texto requentado da página anterior. Oquei, eu realmente queria que o endereço novo contivesse os textos antigos, primeiro porque denotam um pouco do que foi o idéia original de criação deste espaço (uma vez que ofuturoadeuspertence), segundo porque não tenho tantas coisas razoáveis o suficiente para serem publicadas, se abro mão das quinquilharias anteriores, fico sem pai e mãe.

Chamei de canalha a transição de textos porque ela foi mesmo canalha: lancei os postes da outra página mais ou menos um por dia, e mesmo assim com intervalos aos finais de semana. Isso me dava tempo de não produzir nada e manter o blogue porcamente atualizado (atualizado na data, para o incauto que lê lá o dia da semana seguido do mês e o ano).

A verdade é que não sei mais o que fazer com esta Bazófia. Ainda não quero desistir dela, tampouco sei como continuar. Aqui chegamos, então, no cerne desta explicação: acabaram-se os textos antigos, terei de escrever novos e não tenho tido paciência sequer para tomar banho, que dirá produzir.

Eu não tenho vergonha na cara. Então continuo com o blogue e peço uma licença, se os poucos leitores que sobraram (nem sei quantos são... a Veridiana, a Jú Pacheco?) me permitem: volto depois do carnaval, a sério, tentando manter o blogue vivo com novas tentativas de tentar dizer alguma coisa que preste.

Metáfora da Despedida Através da Escada

“Pois você sumiu no mundo sem me avisar
E agora eu era um louco a perguntar
O que é que a vida vai fazer de mim”
Chico Buarque in “João e Maria”


Fora sozinho e somente quando as luzes se acenderam ao final da récita foi que a vi, já no limiar do primeiro degrau, oscilando a fronte, passando as mãos no cabelo, satisfeita e lenta. Antes de principiar a subida virou-se uma vez para trás observando a turba e então me viu. Cortou o encontro visual com um aceno vertical de cabeça e precipitou-se na escadaria enorme. Fui ganhando espaço entre a multidão, Com licença, com licença, e quando consegui chegar ao primeiro degrau, ela devia estar mais ou menos no décimo, distância que se não era desprezível, não encerrava minha esperança. Falei-lhe, ainda assim pouco aumentando a intensidade da voz, Ei, espere um instante, poderíamos conversar, ela não se virou, não deixou de subir, mas respondeu, Sim, pode dizer, mesmo próximo, vacilei, Gostou do espetáculo, ela não respondeu, continuou, continuei, balbuciei, Achei incrível, há tempos não assistia a um assim. Silêncio. Passadas mais rápidas. Eu me tornara lento enquanto falava, percebi, com atraso, que não havia tempo para subterfúgios e insisti, Podemos conversar, espera um pouco, não se virou, apertou ainda o ritmo do movimento, e respondeu já com a voz se diluindo, Estou com pressa, preciso pegar o carro. A resposta era banal, todos precisávamos pegar o carro. Talvez fosse a hora de desistir, a distância havia crescido e aumentava, já que ela era lépida e jovem, e eu cansado e velho, não a poderia acompanhar. Não fiz caso, já quase a gritar, disse, Faz tanto tempo que não a vejo, e se conversássemos um pouco, numa reação que não compreendi bem, ela levantou o braço esquerdo e o abaixou em fração de segundo e depois disse, torcendo o rosto paralelo ao ombro direito, na intenção clara de que a voz lhe saísse mais forte, mais contundente, Eu realmente preciso ir.
A escadaria era imensa, não a poderia vencer de um fôlego só na velocidade em que eu estava, mas cri que houvesse um último sopro e continuei no encalço, que de encalço fora só uma figura, pois ela se afastava de mim, muito mais solta, como que adejando os degraus luzidios do mármore. Afrouxei a gravata, estava quase vencido, gritei para cima ainda contendo um desespero misturado num cansaço arfante, Espera, por favor, me deixa falar alguma coisa. Então ela parou. Lentamente mexeu nos cabelos, e olhando em princípio para o chão e depois, ainda calma, mirando em mim os lindos olhos verdes, disse, absolutamente ciente de que mesmo demorando-se alguns segundos ali, eu não a poderia alcançar, Olha, eu realmente preciso ir embora, não acho que tenha nada mais a ser dito, adeus. Enquanto ela falava, também estivera parado, ganhando fôlego inconscientemente, mas não podia precisar as palavras que se haviam reduzido ao adeus de uns olhos brilhantes, de uma testa que se franziu para cima num lamento de consternação, quem sabe se compaixão, porque eu não queria e não poderia suportar que fosse pena.
Tornou a ficar lépida, chacoalhou a minúscula bolsa negra pela alça e o vestido longo, liso, sóbrio, também negro atrasou-se em relação ao movimento das pernas, precipitou-se exagerado para o lado da rotação do corpo marcando ainda mais a silhueta esguia e insinuante, deixando ver por conta disso um pouco mais das pernas claras e imaculadas. O cabelo loiro, não houvesse sido cortado ao ombro, teria feito o mesmo movimento, e embora eu pudesse adivinhar de soslaio todas as danças do vestido, foram elas como que substituições das danças do cabelo que, este sim, por minha culpa, não estava mais ali. Festinando chegou ao cimo da escada, e tive a impressão de que uma vez mais olhou para baixo, mas posso ter me enganado, a luz em cima era frouxa, a distância já muito maior do que a minha competência em enxerga-la, e então desapareceu no escuro. Continuei subindo, agora sem qualquer visão, apenas buscando a boca do lobo que iria me tragar, o coruto da escada por onde poderia me lançar ao fim.
Chovia — sempre chove — e o pátio estava vazio de pessoas, repleto de coisas, nenhum traste. Cheguei em tempo de ver um carro saindo, o carro que eu conhecia, as luzes fugidias se afastando como uma lanterna na popa, e eu o mar sulcado, o rastro de barco que se perde na água que deixa de se ouvir. Não havia um precipício, então me sentei no último degrau — ou seria o primeiro. Por isto pensei em Bacon, depois tentei confortar o espírito lembrando felicitar-me, ridiculamente, de ainda vê-la assistindo a uma récita, tentei crer que o mundo não girasse em torno a mim, débil, ainda tentei acreditar que talvez tivesse mesmo pressa, mas o poema de Bandeira me assaltou, o verso fatídico, Adeus! amor, tu fazes bem, a mocidade quer a mocidade. Era inútil me enganar. Levantei-me, fui andar ao largo, passos muito quietos para sorver a bátega que aumentara. Eu estava ali, aquela cidade não era a minha, e sozinho pensava em voltar, mas já não havia para onde voltar. Menino ingênuo chapinhei numa poça d´água como fosse um pedido ritual, desejando que ela voltasse. Ela não voltou. Eu ainda esperei por o tempo em que as primeiras pessoas assomaram ao pátio, e parti para lugar algum, sem olvidar o tamanho da escada que ainda precisaria descer.
(este texto foi originalmente publicado em 26 de abril de 2007)

O Bilhete

Porque ele tinha achado o termo que considerava perfeito. Porque tinha decidido o palco e preparado o cenário. Hamlet contemporâneo, personagem de sim mesmo, sincero acima de tudo por seu fito justificar o meio. Era a mulher de sua vida e não poderia haver problema ético ou moral em se preparar, em estudar, em pensar nos pormenores que concorreriam para que voltassem a ficar juntos. Ele a amava, muito. Indescritivelmente. E qualquer uma sua ação não poderia causar protesto.
Escolheu o melhor ipê da cidade. Marcou um horário ameno, ao entardecer. Quisera fosse outro o dia da semana, mas a premência das coisas não permitia vacilo. Não se arrumou muito, não exagerou no perfume. Diretor calejado, sabia que os exageros agora só poderiam furtar atenção à cena principal. O que interessava era o texto. O texto que tão bem soubera encontrar dentro de suas entranhas. "Mentira", ele pensava: resultado de labor, de exame de consciência, de razão. “O amor tenho-no enorme, e é ele quem me impele a colocar a inteligência a formular os motivos que me poderão trazer de volta a razão única desse mesmo amor”.
Resolvera, no limiar do encontro marcado, que não bastaria apenas dizer tudo que há para dizer, e que podia se permitir. Por mais que sua capacidade oratória estivesse treinada para o momento, nada venceria a força assaz persuasiva de sua escrita. E não que se considerasse o maior escritor do mundo, mas todo o crescimento de sua relação com ela se dera permeado pela palavra escrita. Então escreveu um bilhete. Nesse bilhete sintetizou o argumento que considerava fundamental para que ficassem juntos. Foi trabalho hábil, talhado com suor e revisão.
Embaixo do ipê, no costado do jardim da praça do coreto, se abraçaram demoradamente. Ele falou primeiro:
— Eu te amo, te amo muito, não é possível que não vamos ficar juntos...
— Eu também te amo...
Seguiu-se um silêncio arfante e as sanvitálias, que em princípio queriam que eles dali saíssem para aproveitarem a última réstia do sol, ficaram mudas de um ventinho miúdo que trouxe uma poalha de despedida. Ela falou:
— Nós já sabemos que não dá mais... Por mais amor que ainda...
— Ainda existe! Eu não sei como dizer isso, não sei que palavras usar... Eu só queria estar do seu lado, cuidar de você. Nós somos muito parecidos, somos melancólicos e estranhos, mas ao mesmo tempo ninguém consegue se divertir como nós conseguimos quando estamos juntos...
— De que adianta tudo isso? Tudo isso já foi dito e repetido. Só vim entregar seu livro e suas coisas.
— É isso mesmo, eu não sei dizer quando tenho que dizer. Por isso escrevi um bilhete, era pra você ler agora, eu ficaria aqui quietinho esperando. Mas não está neste livro aqui, coloquei em outro, me confundi, ficou em casa.
— Adeus, suas coisas estão aqui. Eu preciso ir.
— Posso mandar o bilhete para o seu endereço?
— De que vai adiantar? Eu estou indo embora.
Ela estava sentada em minha frente, mas não me olhava. Reparava somente na capa do livro, e eu não queria incomodar o seu pensamento, mas precisava partir. Falei com tristeza e doçura, recuando a mão antes de completar o movimento de tocar a mão dela:
— Ele me contou essa história desse jeitinho, dois ou três dias antes daquela quinta-feira terrível. Eu não posso dizer que ele sabia o que iria acontecer, mas estava tão triste e entregue que eu adivinhava algum movimento muito difícil.
— Foi essa a primeira vez que ele falou do bilhete?
— Foi a primeira vez. Esse livro ficou em minha biblioteca por quatro anos, intocado, e mesmo depois de tudo quanto ele me disse, só ontem tive condições de vir aqui abri-lo, porque sabia que precisava entregá-lo a você.
— Ele não me disse que o livro em que tinha colocado o bilhete era seu, mas naquela altura eu também não dei nenhuma atenção.
— Agora mais nada importa. Eu só queria que você ficasse com o bilhete, e se não for pedir muito, com o livro também...
Ela pegou o livro de cima da mesa, leu em voz alta o título “Os sermões, Padre Antônio Vieira”. Alisou a capa dura e azul, um livro antigo mas bem cuidado, de impressão agradável aos olhos, um pouco ofuscados que estavam pela claridade da manhã. Abriu-o e encontrou o bilhete, desdobrou sua única dobra e tencionou ler em voz alta, ao que eu protestei:
— Isso não me diz respeito, é de vocês. Ela continuou sem se importar com o que eu houvera dito:
— “Às vezes tenta-se dizer coisas indizíveis como eu tentei agora há pouco. E tudo se confunde, porque não dá para precisar em palavras o encantamento da alma de quem quer, como eu quero, simplesmente, delicadamente, estar ao seu lado. Estar ao seu lado para qualquer coisa, cuidar de você como quem se roja aos pés de algum santo. É certo que não sou o mais forte do mundo, e nem incondicionalmente posso prometer ficar aqui, mas é contigo que quero ficar. Somos estranhos, diferentes, melancólicos, tristes. Ao mesmo tempo somos alegres, engraçados, e ninguém mais ri como nós rimos quando estamos um com o outro. Sabe o que eu acho? Que a nossa estranheza, nossa melancolia e nossa tristeza só podem ser vencidas quando aproximadas uma das outras, porque nem eu nem você queremos ser uns palhaços rindo à toa da vida, como todo mundo ri, não queremos ser felizes por nada. Pelo contrário, acho que nós queremos ser felizes com bons motivos, e queremos aproveitar e destilar nossa tristeza quando ela tiver de ser destilada. É por isso que acho que a gente se encaixa tão bem, pois talvez saibamos como rir quando o riso é válido e sofrer quando só podemos sofrer. Por isso, vamos sofrer juntos, porque a gente tem a capacidade de rir e de sermos felizes juntos.
Quando ela terminou de ler e olhou para mim, encontrou os meus olhos fixados nela. Parecia estar comovida, mas também poderia estar resignada. Permaneceu por brevíssimo instante me olhando e como eu não dissesse nada, falou com a voz firme, mas forçando um sorriso nos lábios:
— É lindo. Me vejo e vejo a ele aqui. Essa sensibilidade que ele tinha para nos perceber e para me mostrar essa percepção foi uma entre tantas coisas que fizeram me apaixonar. Gostaria de ter lido isso na época, mas mesmo se tivesse lido, eu não teria ficado.
Meu avião sairia em duas horas. Não havia mais tempo para estar ali. A ele jamais poderia voltar a ver e foi a última vez que a vi. Não ficou com o livro mas dobrou o bilhete na mesma única dobra, e guardou dentro de sua bolsa.
(este texto foi originalmente publicado em 04 de outubro de 2007)

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

O colecionador de ipê-rosa

Na metade do mês de junho os ipês-rosa começam a florir. Como disse algum o jornalista Marcelo Leite, citando por sua vez um cientista de cujo nome não me lembro, o Ipê deveria ser considerado a árvore símbolo do Brasil. Ipês nascem do Acre até ao Rio Grande Sul, possuem uma capacidade adaptativa a terrenos e variações climáticas enorme, são duros, como o José que não morre. Parece-me serem cerca de nove as espécies de árvores que abrangem a categoria, sendo que não há sítio do país em que não se possa encontrar alguma delas. Os ipês florescem em amarelo, rosa, roxo e branco (até onde sei) e proporcionam um espetáculo tão bonito de se ver, que não é necessário ser muito mais sensível do que um besouro para quedar-se ao pé dum. Ouvi dizer que a madeira é das boas, mas, cara-de-pau-de-ipê que sou, nunca pesquisei.
Normalmente quando gostamos de algo, procuramos ler sobre, conhecer-lhe os meandros, os sinônimos onomásticos (se é que essa construção existe) e por aí adiante. Mas o ipê me traz um prazer visual e táctil tão profundos que não perdi tempo pesquisando sobre ele. Já está lá no manual prático de olhar e ver que eles são lindos e farfalham como poucas árvores. No mesmo manual percebe-se no pé da página da rua tal esquina com tal e qual que eles variam muito de tamanho, não sendo raro encontrar troncos enormes que resultam em copas enormes, e ali adiante, na porteira do fim da estrada de terra, um miúdo. Ocorreu-me agora que a variação de tamanho pode ser por conta da idade, e não somente pela espécie. Mas não ligo. Como disse, jamais estudei.
Exceto o Tabebuia avellanedae, que não é senão o ipê-rosa do início, flos desta história. Aqui na minha cidade há ipês para todos os lados. Desconfio de que os amarelos sejam mais numerosos em relação aos outros, mas o que ocorre com o rosa é uma apropriação das prerrogativas dos planetas e estrelas: quando floresce, o ipê-rosa eclipsa as demais árvores. E arrisco dizer, o que mais houver ao redor. Mania de aparecer, talvez; essas árvores resolvem dar as cores à luz num momento translacional em que a própria luz é tímida e, por isso mesmo, as matizes ficam escondidinhas, a ver no que dá. Dá no inverno árvores cor-de-rosa surgindo para acariciar com beleza um frio que tanto faz se é frio.
A cidade tem muitos ipês-rosa, e eu os coleciono. Coleciono o cor-de-rosa e não os de pigmentação vária por dois motivos básicos: a) porque no inverno estou mais propenso à introspecção que o tempo (que se não é o frio desejado, ao menos dá mostras) predispõe; b) porque sim. No inverno é bom sair pela rua a observar as coisas com olhos de ver. E as árvores, habitualmente exibidinhas que são à tal introspecção (introspecção só ao desatento parecerá contraditória com o ato de observar), dão em ipê exibidão no meio delas todas opacas. Ocorre também de o olhar ser um pouco mais que introspectivo no inverno, tornando a palavra (ou sua derivação - citada neste parágrafo quatro vezes) num eufemismo. Não sei se a beleza é mais bela quando afaga uma tristeza qualquer, mas a tristeza é sem dúvida mais límpida quando afagada por alguma beleza.
Tal qual a minha coleção de miniaturas de santos católicos, que embora eu já possua, ainda não adquiri o primeiro exemplar, assim se dá a coleção de ipês-rosa. Não só não os catalogo, como não guardo registros fotográficos ou de outra natureza deles (parece óbvio que escaparia às minhas forças resgata-los de onde estivessem e planta-los num ipezário ao pé da janela do meu quarto). No princípio das câmeras digitais, saia a fotografa-los e depois organizava seus endereços, latitudes e longitudes numa pastinha do windows chamada ipês-rosa araraquara que foi deletada. A rentabilidade colecionadora sem dúvida demonstrava enormes ganhos, mas o déficit sentimental logo se mostrou impossível de arcar.
Não é mais nem menos bonito ver um ipê-rosa quando se está triste, como também não é melhor ou pior vê-lo quando se está feliz. Pegar uma câmera e sair a pé pela cidade fotografando árvores é trabalho gostoso, demorado e sem sentido. Por maior que seja a cidade, e esta não é, os ipês acabam-se e há locais em que não se quererá ir, por isto ou aquilo outro, e então sobram duas soluções: a) pegar a câmera, o carro e ir para as cercanias ou bairros mais afastados caçar a malditas árvores; b) fotografar sempre as mesmas, que estão, por assim dizer, ao alcance das pernas. Como eu já argumentei, do ponto de vista volumétrico o carro serviria excelentemente ao desenvolvimento da coleção, mas, como também já argumentei, a perda sentimental não vale a pena. Isso porque a coleção de ipês tem de ser como a coleção de santos católicos: as possuo, mas não tenho nenhum elemento individual que as possam comprovar. Parece complicado, mas é na verdade muito simples. É triste que gosto de ver ipês. É triste que posso caminhar devagar pelas ruas que me levarão a alguns deles, é triste que os posso colecionar juntinho de mim. E é por isso, sobretudo, que não faz sentido possuir fotografias deles, ou eles próprios, fosse isso possível.
Há o ipê-rosa da Faculdade de Ciências e Letras, ao lado do ponto de ônibus do campus. Há o ipê-rosa das costas do Senai, à rua Alto Garças. Também há, pertinhos, o da esquina da rua Itália com a avenida Portugal, ao lado do coreto da praça Pedro de Toledo, junto ao seu vizinho da mesma avenida Portugal com a rua Carlos Gomes, número 700, fundos. Há o da esquina da rua Padre Duarte com a avenida Duque de Caxias, dentro dos muros do colégio Progresso, e ainda o defronte à Faculdade de Farmácia, que aliás, é o primeiro da cidade a perder as flores todas, vários dias antes dos outros todos. E há, finalmente, porque muitos ainda há, o da avenida Hipólito José da Costa, tão pertinho do colecionador que serve muito bem quando a tristeza é pequenina, pequenina, ou tão grande que só dá pra chegar até a janela.
Hoje fui colecionar o ipê-rosa do colégio Progresso (sito ao endereço acima citado). Fiquei pensando que os ipês-rosa, embora dividam o nome com todos os outros ipês-rosa são sempre únicos, inconfundíveis, porque estão. Estão e de onde estão não podem sair. Por pior que isto seja, jamais serão estrangeiros aqui, como em toda a parte. Demorei-me olhando para o ipê-rosa e me aproximei para ficar bem debaixo de sua fronde: eu não contei a ninguém, mas o farfalhar dos ipês-rosa produz neve cor-de-rosa. As flores caem muito tranquilhas, como se a árvore estivesse chorando de mansinho. Chorando sem soluço um chorinho de criança feito uma poalha. Se a gente se deixa estar em baixo da árvore, recebe de encontro as flores que mal tocam o corpo, e assim parece um abraço mandado à distância, prometido na outra estação e que nunca se chegou a receber. É claro que sempre se pode abaixar, tomar uma flor cor-de-rosa da calçada e, já que se agachou, ficar no rés-do-chão deitado, olhando de outra perspectiva o esboroamento das formas reprodutivas do ipê-rosa. A tristeza então é tão bela, que nem é preciso fechar os olhos para escutar os galhos da árvore executarem em dó menor o adagio cantabile da Sonata número 8, Opus 13 do Beethoven. Pathetique.
(por óbvio, não há foto de um ipê-rosa).
(este texto foi originalmente publicado em 13 de julho de 2007)

As flores de plástico

"As flores de plástico não morrem..."

Há modalidades de flores de plástico. Mais comuns são, evidentemente, àquelas destinadas aos mausoléus, ataúdes e sepulturas. O trajeto dessas flores plásticas é claustrofóbico, porque saem da fábrica em caminhões que as transportam a distribuidores que as revendem às floriculturas que ladeiam os cemitérios. Carregam consigo sempre alguma poeira, que se vai amealhando logo mesmo na planta de produção, passando pelo já citado veículo até chegar ao depósito onde, enfim, alojam-se. Nas floriculturas sobram-lhes as câmaras traseiras escuras, pois é certo que à vista as flores vivas (ainda vivas. A maioria já foi desligada da terra) têm preferência de mostrar seu colorido. Contudo, uma outra espécie existe. São essas as flores de plástico decorativas. Fabricos usados em ornamentação do que se chama ambiente. Banheiros, salas, saletas, garagens, algumas sacadas, cozinhas e sobretudo nas áreas de convívio das chácaras, onde, aliás, elas são depositadas e ajeitadinhas, normalmente, juntas de flores e plantas de verdade, isto é, aquelas que possuem seiva a lhes correr.
É certo que ambas as modalidades não necessitam de água e não morrem com facilidade, visto que na maioria das vezes são realmente feitas de plástico, material este que leva, dizem-nos sempre os ecologistas, mais de 150 mil anos para se desintegrar. Embora elas tenham a mesma composição e método de manufatura, somente a um observador bastante desatento seria dado imaginar que não há diferenças entre umas e outras, apesar do jaez em comum.
As flores de plástico de cemitério têm matizes frias, tendentes sempre ao azul e ao preto na escala de valor. Daí se preferirem as madrepérolas, as geisas, as violetas, e sobretudo a boa-morte. Quando chegam aos jazigos, são depositadas com calma, e as lágrimas, quando as há, a despeito de salgadas, só servem para fazer limpar um pouco o pó supracitado, num efeito paliativo, ou antes, enganador: a superfície que se molhou com a gota será tanto mais convidativa para o acúmulo de outras mais sujidades a que estão sujeitos os cemitérios. Depois, são lá esquecidas, e só visitadas aniversariamente. À mercê do tempo e do clima, das bátegas diluvianas, do sol acachapante, do vento, da poalha de inverno, são desgastadas e corroídas pela força assaz persuasiva do tempo, tendo seu material compositivo sobejados motivos de se esboroar. Não nos esquecendo de que as cores escuras maior quantidade de luz absorvem, o que acelera o processo.
De maneira diferente, a outra modalidade de flores de plástico são de cores quentes da alegria, da diversão, do sangue, da vida. Por isso mesmo representações de rosas, dálias, copos-de-leite, sanvitálias, miosótis, quando não girassóis mesmo. Maneirinhas ao lado das flores de verdade em jardineiras e outros demais lugares mencionados, apanham o sol fracionado por janelas de vidros e outras proteções urbanísticas, mas se estão ao ar livre, primas espaciais das verdadeiras, nunca tomam o sol na fronte todo o dia, e não se esturricam. Também o pó não lhes bafeja, uma vez que dado o ambiente salubre em que vivem seja sempre higienizado, e ainda por vezes lhes sobram umas gotículas animadas do que é aspergido às suas companheiras reais.
Ante o exposto, seria de se esperar que as flores de plástico da primeira categoria — quais sejam as atávicas da celebração da morte, ou sua memória — deveriam durar bastante menos que suas irmãs festivas, pouco degeneradas no seu dia-a-dia contente, ao lado, não só de flores vivas, mas também de pessoas vivas. Entretanto, a verdade comprovada cientificamente nos manuais práticos de olhar e ver é que o lapso temporal de existência e durabilidade das flores plásticas dos cemitérios é maior, de modo que suas irmãs enfeitadoras de banheiros, copas, salas e jardineiras são trocadas amiúdes e substituídas muito mais rápido do que o seriam as outras, caso houvesse interesse premente na ação.
Por um mecanismo já bastante conhecido do evolucionismo, lograram as flores de plástico de cemitério uma adaptação, talvez por mimetismo, às condições hostis do ambiente em que vivem (e dos esqueletos que reverenciam), sobretudo do ponto de vista metafísico, quando puderam notar de que não se pode perder muito de um líquido que cai gota a gota. Da percepção prostrada do caráter transitório da vida, do desapego mecânico com que puderam ao longo dos anos comprovar que nem mesmo a memória resiste à morte, adaptaram-se fisiologicamente a viver sem nenhuma espécie de sorriso ou esperança — e por isso sem movimento, o que é largamente conhecido como uma eficiente maneira de economizar energia. Suas irmãs risonhas, flores de plástico de jardineiras e decorativas de ambientes, pelo mesmo processo destilado acima, amolgaram-se pelo modos vivendi de suas companheiras vivas, atentas a todo instante aos movimentos, cores e sons da festiva existência humana. Os homens duram pouco, e as flores que os homens plantam, duram menos ainda. Na tentativa de aproximação de seus pares, as flores de plástico dessa categoria passaram a viver bastante menos (ainda que imarcescíveis), o que se tornou num dos fatores da redução categórica de sua produção, por conta de terem correspondido com ineficiência na margem do lucro. Em contrapartida, pôde-se observar um aumento na luminosidade dessas flores de plástico, já que com as companheiras vivas aprenderam que aquilo que rápido se extingue mais brilho oferece. Essa tendência evolutiva das flores de plástico felizes vem se tornando num paradoxo da teoria, uma vez que o caminho natural é a aniquilação da espécie. Não obstante isso, parece ao final concorreu-se para que haja aí um primeiro e último gene de contato com as suas irmãs flores de plástico de cemitério, qual seja a percepção arrastada ao longo dos séculos de que afinal, à morte, ninguém pode fazer esperar eternamente, corroborando com isso o príncipe hamlet, que muito anteriormente havia dito que se não sabemos nada daquilo que aqui deixamos, que nos importa deixa-lo antes?
(este texto foi originalmente publicado em 17 de maio de 2007)

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Outra histórinha de criança

Silvinho e a democracia dos árabes
Sílvio Cardoso tinha cinco anos e estava muito preocupado com a guerra no Oriente. Não que ele soubesse o que era oriente ou ocidente, mas escutara sobre a guerra no país longínquo. Soube pelas televisões que por causa de uns aviões que pessoas más jogaram em cima de dois lindos prédios nos Estados Unidos, matando milhares de pessoas (também não tinha noção muito exata do que seriam milhares, andou dizendo a coleguinhas de escola que os mortos foram milhões), os homens bons desta grande nação estavam agora caçando o malvado que havia matado tanta gente, a troco de nada. Perguntou ao seu avô, Estevam Alves, quem eram os tais bandidos, ao que este respondeu:
— São os árabes islâmicos, o pessoal do Saddan Hussein, os mesmos que invadiram e conquistaram a terra de onde viemos, meu neto, são os mouros. Agora eles têm um novo líder, chama-se Osama Abin Labem, que quer destruir a democracia do mundo ocidental.
— O que é democracia, vovô? — perguntou o menino.
— Silvinho querido, a democracia é o modo de vida que nós levamos. Temos direito de torcer para o Corinthians, de acreditar em Jesus, e não em Maomé, somos livres, podemos trabalhar e viver de acordo com o que pensamos.
— Quem é Maomé? — É um árabe muçulmano — respondeu já irritadiço o avô.
— O que é um árabe muçulmano?
— Já disse, Sílvio, é aquele pessoal que joga bombas na gente, e eles inventaram o kibe, a esfirra, essas coisas.
— Mas vô...
— Ora, menino vá brincar!
Ficou assim Silvinho sabendo com apenas cinco primaveras que os árabes jogavam bombas na democracia Corintiana e comiam kibe, o que só fez aumentar a raiva que sentia por gente que matava milhões de pessoas como ele só por que não torciam para Jesus. Então Silvinho convidou Nonô para ir à sua casa ao final da escola. Na perua do caminho de volta, Sílvio Cardoso explicava a Fernando Scabello a história da guerra:
— Nonô, você sabia que os árabes romanos gostam de matar milhões de pessoas só por que não comem kibe e acreditam em Jesus?.
— Mas eles matam qualquer um que não acredite em Jesus? — perguntou assustado Nonô.
— Todos! Inclusive as crianças que não comem kibe e não usam democracia na vida.
— O que é democracia?
— Democracia é a gente, os que torcem para o Corinthians, mas também quem não torce para o Corinthians, mais todo mundo que acredita em Jesus e não no Mané — disse calmamente Silvinho, demonstrando seus conhecimentos.
— Então eu gosto da democracia, mas gosto de kibe também, tem algum problema?
— Ah, isso tem sim, vai ter que parar de comer, se não vai ser um deles e vai ter que pilotar os aviões que trombam nos prédios — asseverou com firmeza o Silvinho.
— Que avião, que prédio? — Nonô estava assustado.
— Então você não vê a televisão? Os árabes mouros jogam aviões com bombas nos prédios de pessoas boas que se reúnem para acreditar em Jesus.
— E morrem todos?
—Todos, mais de milhares, milhões. É por isso que precisamos ajudar a democracia. Vamos fazer estilingues que depois a gente empresta para acertar os árabes africanos.
Então Sílvio e Nonô passaram a tarde toda construindo estilingues, e realmente fizeram muitos, coisa de milhões. Pretendiam usar todos eles na guerra contra os árabes e foram dormir exaustos naquela noite, mas contentes pela ajuda que dariam à democracia de Jesus. Aconteceu de na manhã seguinte, enquanto Sílvio e Fernando estavam na escola, Mateus Estrella, pai de Sílvio, professor universitário federal de física, passar pelo quarto do moleque antes de ir para a manifestação do dia, que seria na inauguração de uma creche, onde estaria o ministro Carlos Roberto. Ao ver os estilingues, não titubeou “Ah, tomates podres! Nos enchemos deles e vamos acertar o filho da mãe”. Dito e feito, carregou os dez estilingues feitos pelo filho e o coleguinha e foi para a manifestação acertar tomates no ministro. A coisa não saiu tão bem como o esperado, pois os professores não eram lá muito bons de mira, e no final das contas ninguém conseguiu acertar o ministro, ainda que Mateus tenha chegado perto, mas o alvo realmente atingido foi um secretário de educação municipal, um tal Rodrigo de Carvalho. Mesmo assim ele pensou que não estava flagrantemente mal como os Estados Unidos, afinal, sede da Cruz Vermelha e base inimiga são realmente diferentes, secretário de educação e ministro da educação, farinha do mesmo saco. Ocorreu de por azar, justamente quando acertou o secretário, a polícia abafar com os cassetes, aliás, muito mais precisos que os estilingues, e Mateus foi preso por desacato, perturbação, tomatada etc. Passaria a noite no xilindró, dando uns depoimentos.
Quando chegou em casa, Silvinho foi direto ao quarto procurar os estilingues, mas não os encontrou, evidentemente. Correu atrás da mamãe, dona Marlene Waideman, a perguntar o que tinha acontecido e ela, chorosa, disse que não sabia dos estilingues mas precisava de dizer uma coisa importante ao filho, e então contou que o pai estava preso num prédio grande e demoraria um pouco a voltar. Sílvio chorou bastante pela ausência do pai e também por saber que este estava preso num prédio. Foi procurar o avô Estevam:
— Vô, o senhor viu meus estilingues?
— Meu neto querido, acho que o papai precisou levá-los.
— Para quê, vovô?
— Ah, meu neto, eu avisei seu pai para não ir atrás de confusão, mas ele resolveu se meter com sindicato, com greve...
— O que é greve, vô?
— Greve é um pessoal que faz baderna, confusão, e acaba desafiando a democracia, lembra da democracia que contei pra você?
— Claro que lembro, vovô. Então papai usou os meus estilingues na democracia?
— Na verdade papai usou os estilingues contra a democracia, por isso está na cadeia.
— O que é cadeia, vô?
— É um prédio grande onde eles colocam quem desafia a lei e a democracia.
— Vô, o papai vai voltar logo? — perguntou carente o menino.
— Não sei meu filho, vamos torcer para que volte.
— Vô, se o papai usou meus estilingues contra a democracia, será que a gente podia pedir para os árabes jogarem aviões no prédio onde papai está, para ele poder sair?
— Não meu filho, claro que não! Olhe, vá brincar que papai estará aqui logo.
Silvinho ficou quieto o dia inteiro, esperando o papai chegar. Na escola combinou com Nonô de irem a casa deste fazer estilingues para atacar a democracia e ajudar a soltar o papai daquele. Convenceu facilmente o amigo, afinal, Nonô e Silvinho não iam lá muito com a cara da democracia, pois, apesar de torcerem para Jesus e o Corinthians, gostavam muito de kibe, sobretudo com coalhada.

Uma histórinha de criança

(este texto foi originalmente publicado em 26 de junho de 2007)
A pulguinha e o cão de Deus
A Pulguinha estava quieta em seu cantinho e naquele momento não tinha vontade sequer de morder o dorso quente e nédio do animal sob ela. Estava tristonha, bastante frustrada com sua vida de pulga e decepcionada com o rumo dos acontecimentos no seu planeta.
Há tempo vivia à mingua. O cão onde morava era um vira-lata velhinho, vencido pela idade e maus tratos. Seus pêlos ralos mal cobriam as feridas que ela própria e sua comunidade de pulgas impingiam ao degenerado animal. Nem a seiva vital vermelha (de importância sem mesura para ambos) era lá grande coisa. A comunidade crescia e crescia. Havia pulgas para todos os lados e extremidades do cachorro e a Pulguinha não entendia como ele suportava tamanha provação.
Tão decepcionada com sua vida estava que chegava ao ponto de se fazer várias indagações existenciais e até teológicas. Então se perguntava com amargura:
— Que Deus é esse? Como posso acreditar num Deus tão injusto? Eu aqui vivo neste animal sujo, desnutrido, sempre à sorte do tempo! Enquanto isso existem pulgas que vivem em cães limpinhos, bem alimentados, e por serem tão bem tratadinhos esses animais, as pulgas que neles vivem não tem o problema da super população, da escassez de alimento, da falta de higiene e tratamento médico, que recebendo o cachorro, elas desfrutam também. O único trabalho necessário é esconderem-se nas unhas quando são aplicados os shampus anti-sépticos... Quanta desigualdade.
Sem dúvida, para a Pulguinha não podia haver um Deus que a tudo isso olhasse e que tamanha injustiça permitisse. Também se espantava muito com a devoção e exaspero da crença de suas companheiras pulgas, conformadas, resignadas com o que a vida lhes oferecera e sempre apregoando o “Deus bom que criara o universo”, “o Deus justo que um dia virá buscar os puros de espírito”. Chateada, até mesmo irritada, resolvera dar uma volta pelo cão, talvez ir até a cabeça proa a observar o rumo que o navio de sua vida tomava. No caminho encontrou uma sua companheira que lhe indagou aonde ia:
— Aonde você vai tão cabisbaixa? Sus! Não aprofundes o teu tédio! A vida é bela!
— Pro inferno! Que vida bela, a vida é uma porcaria! — respondeu-lhe a Pulguinha com nenhuma paciência.
–– Não fale assim criatura! Deus tudo ouve!
–– Ao diabo com seu Deus injusto! pérfido! Que se existe, é um grande gozador.
— Blasfêmia! Cuidado minha amiga com o que esta dizendo. O senhor é onipresente e onipotente!
A Pulguinha saiu sem nada dizer, ainda mais aborrecida com seu mau fado. Foi em direção à orelha esquerda do cachorro e subindo num ponto onde nem pêlos mais havia, posicionou-se de forma a ver o caminho em sua frente... Bibbbi! Vrummmm!... Mal teve tempo de se ajeitar na orelha do cachorro e já estava rolando para trás, graças aos bruscos movimentos do animal canino. O cão, caminhando distraído, quase foi atropelado por um carro que vinha rápido. Antes que a Pulguinha conseguisse recompor-se do susto, ouviu a voz grave de seu inquilino, que olhava para o céu:
— Graças ao bom Deus! Deus realmente existe e me acompanha! Foi por um focinho...
Ora! era a gota d’água. Não podia acreditar que este cachorro mal tratado, sujo e miserável também pudesse creditar a um hipotético Deus “tamanha glória!” Aproximou-se mais um pouco da orelha do animal e não se conteve e pronunciou:
–– Ora cão, como você pode acreditar tão devotadamente em Deus. Um Deus injusto que não olha por sua criação? — perguntou-lhe exasperada.
–– O que você esta dizendo, minha cara Pulguinha? Isso é um absurdo! Nosso Deus é bom e é justo, sim. Deus dá o alimento conforme a fome e zela por todos nós e a todos nós acompanha! E virá buscar-nos, os puros de espírito! — respondeu-lhe o cão, querendo denotar tranqüilidade e experiência. A Pulguinha que já havia ouvido as mesmas palavras, estava inconsolável:
–– Mas não é possível, é sempre a mesma história. Será que você não pode ver o tamanho das injustiças que existem pelo nosso mundo! Como um Deus pode ser bom com suas criaturas se permite desigualdades? Simplesmente, então, Ele criou-nos e deu-nos as costas!
— Mas quem não enxerga é você — respondeu secamente o cão –— Deus dá a cada um o que merece e a seu tempo, Ele dá o frio consoante o cobertor. Olhe a maior prova que acabamos de acompanhar aqui: eu estava caminhado tranqüilamente pela rua, tão absorto em meus pensamentos que não percebi o carro. Por que acha que me salvei? Pela mão de Deus é claro...
–– Perdoe-me cão, mas você se salvou porque o motorista estava atento ao trânsito e conseguiu desviar em tempo. E o que você fez de tão errado para merecer a sorte que tem? Desde que nasceu tem levado uma vida miserável, sem alimento, sem diversão e sem possibilidade de melhora. Nem seus pais você conheceu, conheceu? claro que não... enfim, você vive sem ter onde morar, à deriva, sem saúde, sem alguém que ao menos zele por seu bem estar. Que fez você de mal a Deus? Ou melhor, o que fizeram a imensa maioria dos cães que vivem assim como você, na penúltima desgraça? Muito justo esse seu Deus que dá a poucos cachorros de raça o privilégio de ter boa alimentação, bom tratamento médico, educação em escolinhas especiais para cachorros e enquanto você mal tem o que comer, eles sobram a comida do almoço... Voltou a cabeça para o céu e perguntou a si mesma: cadê Você?
O cão que a tudo ouvira com atenção leda, agora balançava a cabeça e tencionou falar:
— Ora minha Pulguinha, você precisa deixar Deus entrar em seu coração. Você esta amargurada e justamente porque não encontrou a palavra Dele. O Senhor escreve certo por linhas tortas e bem sabe o que cada um deve passar para conseguir o paraíso ao Seu lado.
— Mas isso tudo, toda essa fé vem de que? De onde lhe parece tão clara a existência de um ser supino? — indagou com gravidade quase angustiada a Pulguinha.
–– Basta abrir os olhos, verificar o que esta à sua volta. Os pássaros, as árvores, a natureza de um modo geral. O amor, os sentimentos belos, são demonstrações latentes da existência do Nosso Pai. As nossas próprias vidas? o que dizer desta maravilha que é a vida! Uma criança que nasce, um filhotinho que vem à luz. Isso é Deus! A luz do sol...
A Pulguinha, que estava quase resignada com as palavras do Cão, olhou para frente e pode ver uma imensa igreja, símbolo máximo da devoção e da fé. Viu também um carro que vinha pela avenida defronte à catedral bem na direção do seu cão hospedeiro.
— Cão, cuidado! –– gritou a Pulga.
Mas ele estava tão entretido em suas elucidações sobre a existência do Senhor que não pode ouvir a Pulguinha, que já se preparava para pular. Antes de saltar, porém, ainda teve tempo de ver o motorista, que distraído do trânsito, fazia o sinal da cruz ao passar pela igreja. Vrummm...

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Fraseologia da coincidência

(este texto foi originalmente publicado em 28 de maio de 2007)
Coincidências são apenas coincidências. Mas nem por isso elas deixam de ser divertidas, se se baixa sobre elas um olhar apenas observador, não propriamente comovido, não propriamente místico. Anotava na agenda a feitura de uma proposta para o dia 28 de maio de 2007, data de hoje, e ao terminar assinalei evento importante para o próximo vinte e três. A agenda que utilizo tem, dentre muitas outras coisas, frases no rodapé para cada dia do ano. Muitas delas são ditos famosos de gente famosa, outros tantos de gente desconhecida, e outras ainda frases desconhecidas de pessoas famosas, de cuja autenticidade eu muitas vezes desconfio, por prazer de formação e um certo ceticismo avaro, coisa de gente sem ter que fazer.
Para o dia vinte e três vindouro rezava assim o escrito: “Só quem já se modificou pode modificar aos outros”, atribuída a Soeren Kierkegaard. Bom, o filósofo dinamarquês todos nós conhecemos, mas a autoria da frase também pode ser suspeita, eu não sei se ele disse isso ipsis literis, e ainda que tenha dito, o conteúdo não é exatamente original. Proclamou-se a mesma ladainha (com outras palavras) em quantas latitudes e longitudes que por este mundo há, inclusive, recordo-me de uma parecida, e creditada a algum pensador oriental, “antes de começar o trabalho de modificar o mundo, dê três voltas dentro de sua própria casa”. Uma coincidência: pouco antes de ir ter com a agenda, havia recebido um emeio cujo derradeiro conselho me dizia que “a mudança começa dentro da gente”. Acabrunhou-me o emeio por muitos motivos, e não valeria a pena trazê-los aqui, mas a sugestão, ou antes injunção me entristeceu particularmente pois não creio muito nessa fraseologia barata, nessas receitas simples de resolução e entendimento das coisas. A maioria de nós sabe, e eu sei também, que as modificações e atitudes do nosso dia-a-dia dependem muito de nós mesmos, de tomarmos esta ou aquela decisão. Mas esse tipo de conselho vago não serve de muita coisa, a mim me parece um chover no molhado que não auxilia, antes amargura, pois nem sempre saber da necessidade de um lance forceja-nos a jogar decididamente, e pior, acertadamente o tal lance. Poderia ter tomado a coincidência das duas frases, a de Kierkegaard e do meu interlocutor de emeio como uma mensagem a me dizer “oras, tome jeito agora Juliano, e mude o que tenha de mudar”. Mas não creio, a vida é um pouco mais complexa do que essa coincidência, e seus caminhos um pouco mais variados que um simples R1T (rei na primeira casa da torre).
Outra coincidência. Na página do dia treze, palrava-me o dito de rodapé: “ Se não tivéssemos tantos defeitos, não nos agradaria tanto notá-los nos outros”, creditada a um Rochefoucauld. Não me incomodo de dizer que não fazia a menor idéia de quem era esse sujeito. Sequer me toquei do conteúdo da frase, pouco me importou o tal Rochefoucauld, ainda mais que no momento em nada me amparavam, ao contrário do que as frases anteriores, e as coisas que já mencionei relacionadas a elas (o que ademais só vem a provar que embora eu defenda aqui que as coincidências são apenas coincidências, nem por isso elas deixam de ser divertidas, ou como no caso corrente, motivadores de aborrecimentos). Enfim. Ando relendo Memórias Póstumas de Brás Cubas do Machado de Assis. Caminho pelo página 128 da minha amarelada edição da Saraiva de 1963. Para os curiosos é o correspondente ao capítulo CXV de qualquer edição do romance, cujo título é “Almoço”. Lá, Machado cita o Duque de La Rochefoucauld, sem, contudo, nos dar maiores informações sobre o homem. Bem, então sim, achei curiosa a coincidência, e, embora não tenha tido até agora vontade de ir verificar quem seja o tal duque, imediatamente depois de ler no Brás fui tomar minha agenda para rever as frases que, de uma forma intrincada, se tinham metido de parceiras no meu dia-a-dia. Como não tivesse mais que fazer a não ser relê-las, cogitei de ler as irmãs, não de conteúdo, mas de posição geográfica, já que não nos é difícil imaginar que toda página, exceções concedidas à primeira e a última (assinalando, claro está, de que se trata da parte de uma agenda que marca os dias do ano, cada página para cada dia.), têm sempre uma irmã gêmea. Bom, a dupla da página vinte e oito, a segunda-feira, vinte e nove, disse-me isto: “Nem sempre convém virarmos a página, as vezes, é preciso rasga-la” de Achille Chavée. Sim, tem que ver com o que estou aqui esboçando, falando de página, mas não atino como coincidência, porque esses fatos todos se deram antes da escrita do texto, de maneira que consciente ou inconscientemente utilizei-me da frase para ir construindo a parcela argumentativa de agora.
Mas bem, resta contar sobre a menecma da página do dia 23, que é (será) um domingo, 24: “Não há cura para o nascimento ou a morte, a não ser usufruir o intervalo” de George Santayana. Seria de se esperar agora ao mostrar a segunda não-coincidência que eu estivesse tentando corroborar a tese do início — coincidências são só coincidências —, já que a frase acima nada tem que ver com as coisas até aqui invocadas. Mas, coincidentemente, o senhor Nelson Archer, colunista da Folha de S. Paulo, escreveu no dia 13, Caderno Ilustrada, página E6, sobre poesia. Pelas tantas ele diz uma frase bonita, que casa com a do dia 24: “(...) Em outras palavras, a poesia de quando em quando suspende para alguns (sem que, para tanto, seja necessário infiltrar moléculas complexas e estranhas no meio das sinapses) a pena capital que pesa sobre nós”.
Usufruir o intervalo suspendendo a pena capital que pesa sobre nós talvez pudesse ser uma das somas das duas frases. Eu penso que a razão (a despeito de contraditória)é boa para a “suspensão”. O Nelson Archer crê que a poesia é boa para a “suspensão”. Concordo com ele também, e ouso dizer que ele concordaria comigo. Contudo, Nelson e eu esquecemo-nos de pensar que tanto as infiltrações de moléculas estranhas quanto a busca por sinais “diferentes” nos painéis da vida (como as coincidências) podem ser formas, e sublinhe-se, bastante legítimas, para a suspensão da pena capital. Afinal, em se tratando apenas de uma mera suspensão em todos os casos (já dizia Sêneca “que podemos escapar dos infortúnios, dos sofrimentos e da doença, mas não do fim”, corroborado pelo próprio Archer num seu poema, “todos os trilhos vão dar no matadouro”), quem é que vai apregoar com certeza qual será a melhor... Poesia é só poesia? Sertralina só sertralina? Coincidência só coincidência?
p.s. – eu não sou Shakespeare, e tomara que algum Bloom me esteja lendo, por isso mesmo é que penso que possamos rir juntos se por acaso algum disparate surgir na lógica do calendário usado no texto.

Son number one



(este texto foi originalmente publicado em 22 de maio de 2007)

Realmente ando sem paciência para o cinema. Não vou a uma sala de projeção há anos, e não sinto falta. Quando, raramente, arrisco ver um DVD (na casa de alguém, não possuo essa tecnologia) de lançamentos, acabo me frustrando muito e entendendo porquê deixei de ver novas produções. Aplicação genérica a Hollywood, europeu, brasileiro etc (não tenho visto, por conseqüência, os recentes iranianos, os últimos que vi continuam sendo ótimos).

Os dois últimos (três, na verdade) filmes que acompanhei no cinema foram “As Horas” e os dois volumes de Kill Bill (vi também uma porcaria de comédia da qual nem me lembro o nome, que só valeu a pena pela companhia). Excelentes filmes. Talvez somente por isso que me empertigue para tocar no assunto cinema, uma vez que não é por acaso que a palavra não está no rol taxativo (e presunçoso, escusado seria dizê-lo) da Bazófia, logo aí em cima.

“Kill Bill” traz tantas referências que não saberia por onde começar a cita-las, se quisesse citar todas que eu consegui observar. Mas uma que me chamou atenção no primeiro volume, foi a do personagem de Michael Parks, o xerife que investiga o massacre de El Paso. Texano, óculos Rayban caçador, cusparadas a cada meio metro, ele trata o policial que parece ser seu assistente mais próximo de son number 1. Bem, de cara saquei que era uma referência a alguma coisa, e pensei, por ignorância, que seria um costume local. Me enganava.

Semana passada em seu blogue de cultura e crítica (http://marcelocoelho.folha.blog.uol.com.br), Marcelo Coelho retomava assunto de sua coluna na Folha impressa às quartas-feiras, seu gosto pelos detetives dos romances policiais. Coelho se detém, sobretudo em Chesterton, mas lá a certa altura, para encorpar seu argumento — que não me interessa citar (sugiro a leitura dos artigos se porventura tenha-se interesse: a) por literatura policial; b) por crítica literária; c)por literatura ou d) curioso incorrigível) — ele fala do famoso detetive Charlie Chan, dos filmes da década de 1940, baseados nas histórias de Earl D. Biggers. Eu nunca li Biggers (meu predileto disparado sempre foi Poe. Nada melhor do que o encadeamento lógico de Dupin, inferindo o pensamento de seu amigo a partir do piso de uma calçada em Paris, no célebre “O mistério de Marie Roget”), mas cheguei a assistir a um filme com o personagem Charlie Chan. Tenho de confessar de que me lembro de quase nada da história, do mistério e sequer do próprio Chan: mas me lembrei de seus ajudantes, sempre à sua volta a trazer nenhuma espécie de auxílio realmente útil.

Mas o melhor de tudo do texto de Marcelo Coelho foi o resgate que fez em minha memória de o detetive Chan chamar esses seus ajudantes enumerando-os, para facilitar o trato cotidiano, assim: son number 1, son number 2 etc. Ora, cá temos o Tarantino e suas referências, apesar de curta a seqüência em que aparece o filho número 1 do xerife de El Paso, é suficiente para se perceber que o ajudante não é exatamente indispensável no correr daquele incidente.

A verdade é que me deliciei com a descoberta banal, mas divertida, como se tivesse entendido um pouquinho mais do filme. O caso é que recentemente, num texto anterior, conversava com a Marlene, leitora do blogue, acerca de referências que iam surgindo aqui e acolá em textos lidos, músicas ouvidas e outras manifestações artísticas. Chego à conclusão de que esse diálogo é muito divertido, se não quando nos faz sentir a extensão das coisas que vamos amealhando ao longo da vida, e dá até para, numa alto-lambida, felicitarmo-nos pela memória que enfim ainda guarda coisas banais, mas agradáveis de se recordar e relacionar. Para confirmar isso, não poderia deixar de citar que os auxiliares bocós de Charlie Chan, e do xerife de El Paso (se há um filho cujo número é 1, imagina-se haja, no mínimo, o número 2) me fez agora recordar dos ajudantes do agrimensor K, talvez muito mais atentos e perscrutadores, mas igualmente de utilidade duvidosa para seu mestre, que afinal, segundo Kafka, optou por chamá-los de Arthur, a ambos.
(Na foto Charlie Chan e seu filho número 3, depois, o xerife Earl de El Paso e seu filho número 1)

Dois Meninos

(este texto foi originalmente publicado em 09 de maio de 2007).


Terminei de ler Bom dia camaradas, do escritor angolano Ondjaki. Imediatamente me surge à mente o livro de outro africano, Uzodinma Iweala, nigeriano, autor de Feras de lugar nenhum, este lido no final de 2006. Ambos são jovens escritores, na casa dos vinte anos e pouco, e esses dois livros suas estréias no romance. A pouca diferença entre eles é que Ondjaki escreve em português e estudou em Luanda, ao passo que Uzodinma Iweala graduou-se por Harvard e usa a língua inglesa para contar sua história.
Meninos
Os livros são narrados em primeira pessoa e ambos os protagonistas-narradores são meninos. Em Bom dia camaradas, esse menino, embora não nomeado, aparenta ser o próprio Ondjaki, pelas relações e manutenção dos nomes dos amigos de escola (claro, estamos falando de ficção). O garoto luandense vive numa família de classe média alta, estuda num bom colégio, tem facilidades domésticas muito acima do que se supõe fossem o normal da maioria da população angolana nos idos de 1980, data imaginável do romance. O narrador de Bom dia camaradas é um garoto, portanto, que tem uma percepção bastante aguda de seu ambiente: tem aulas com professores cubanos, uma tia que, morando em Portugal, traz-lhe notícias (e doces) dos antigos colonizadores, vai à praia de carro e pode estar nas ruas quando o “camarada Presidente” atravessa em parada militar. Aliás, é desse caráter sensível do narrador que decorre uma qualidade e uma dificuldade do livro. Ondjaki aposta no coloquial (apesar de manter o padrão formal da língua, tenta desviar-se com certo zelo dele) da fala infantilmente poética de seu menino para criar imagens vívidas, do ambiente familiar, escolar e mesmo urbano de sua vida. Também não re-descobre a pólvora: usando adjetivos e ações humanas em objetos inanimados ou plantas e bichos, aproxima o ambiente cotidiano da sensação lúdica da criança. Disso decorrem alguns problemas. Fica a impressão de que o autor, usando uma boa metáfora, acaba por gostar tanto dela que a repete muitas vezes, se não quando a disfarça em outras palavras, mas guardando o mesmo sentido. Num certo momento, diz o menino que os “abacateiros se espreguiçam”. Da metade da página 79 à metade da página 80, vamos ver a repetição cinco vezes da expressão espreguiçar, além de uma quantas outras dizendo o mesmo, como estremecer. Esquece-se, o Ondjaki da máxima que diz que a repetição faz perder o efeito dramático. Ao contrário do que diz Luiz Ruffato na apresentação do livro, esses “exageros” acabam fazendo com que haja um tom artificial, por vezes forçado na voz do narrador, que afinal é um menino de não mais que doze anos. Agu é o narrador de Feras de lugar nenhum. Não tem esse menino mais que dez anos não obstante esteja inserido num ambiente violentíssimo. Agu está no meio de uma guerra civil, arrancado à sua família para se tornar um soldado: vive, portanto, entre vilarejos destruídos e a floresta opressora e escura, sob as ordens de um cruel “Comandante”. Seus companheiros são soldados esfarrapados e famintos, e o único menino de sua idade é Strika, com quem vive uma amizade superficial. A linguagem que Uzodinma faz dar voz a Agu é tensa, infantil, solapada, às vezes reproduzida dos adultos. Essa infantilidade conturbada é condutora da tensão que varia entre o monólogo pessoal do menino com as pouquíssimas palavras que dirige a outras pessoas, exceto por Strika, que, aliás, em bela imagem do autor nigeriano, tem problemas de fala (ele não fala). Agu está no meio de lugar nenhum: a guerra pode ser na Nigéria, mas o cenário dá cabo de muitos países africanos, e ainda mais muitas civilizações que permitem crianças com um fuzil na mão. Agu luta consigo mesmo para entender o seu ambiente, procurando equilibrar as idealizações da vida militar com a realidade violenta e crua que se apresenta à sua frente. Os parágrafos são curtos, contundentes, secos. O menino Agu conta a sua história aos solavancos dos buracos e dos obstáculos do caminho da guerrilha. Vale a pena aqui ressaltar, como observou Wilson Bueno que a tradução de Christina Baum é excelente, “marcada por um português acossado, quase aturdido, fiel ao inglês nigeriano do autor”.



(na foto capa de "Bom dia camaradas". Ondjaki. Editora Agir, por volta de 40 reais)


A guerra
Que os dois livros sejam permeados pela guerra, não chega a surpreender. Em Bom dia camaradas a guerra é um pano de fundo presente na vida cotidiana dos jovens, e até por isso internalizada. O narrador aqui não vivencia diretamente os efeitos do batalha, sua condição social permite que ele sinta o bafejar do estado belicoso do país, sem, contudo, que isso se torne um fardo maior que as pequenas dissensões familiares e ou escolares, a exemplo. A guerra aparece mais como substrato do que fora anteriormente, como se preparasse a nova Angola para uma vida de paz, entre “camaradas”. Chama atenção, inclusive, que eventos comuns a juventudes em qualquer latitude e longitude, quais sejam as “lendas urbanas” aqui surjam como motivadoras de medos e confusões muito maiores do que alguma preparação para um conflito que afinal, durante o romance, não se deflagra. Com feridas mais ou menos normais ali e adiante, a narrativa caminha num mar habitualmente calmo.
Já em Feras de lugar nenhum a guerra é explícita, e é ela mesma, personagem principal. Agu vive a guerra e só tem a ela e seus frutos para misturar com sua infância que vai sendo perdida. O menino não compreende a guerra, não compreende seus motivos e sua barbárie. Mas, vai aprendendo que, fazendo parte do jogo, precisa jogar para se manter vivo. Agu quer se manter vivo, e nessa tentativa, procura encontrar justificativas para a violência que presencia e agora promove: ele mata porque é obrigado a matar, senão o inimigo o mataria a ele. Embora não distinga no inimigo alguém muito diferente de si, o narrador se felicita pelo cumprimento da tarefa que enfim foi investida para ele, e matar se torna “natural” em seu caminho. Agu anda o tempo todo atormentado pela guerra, e quer vencê-la pelo motivo mais simples e profundo que é continuar vivo. O menino, em meio ao seu desespero e às vezes sua resignação, diz que também tem uma mãe, irmãs e que pretende um dia reencontra-las, para viver num tempo já sem a guerra.
Ritmo
Ondjaki se propõe, e consegue, a escrever uma linear história de vida privada e meninices num determinado tempo e espaço. Não resulta, portanto, da leitura do romance nenhum sobressalto ou tensão maior do que seria uma prova oral com o diretor geral da escola ou uma topada de dedão com um muro de pedras (incipiente demais para ser levada em conta é um momento de morte de um “membro” da família a quem o menino é bastante ligado). O menino-narrador quer nos contar do seu dia-a-dia de abacateiro, “gasosas”, amigos e brincadeiras, das rotinas familiares e da saudade que principia quando chega o final do ano letivo. Sentimos tudo isso junto com ele, embora muitas vezes também com ele bocejemos um pouco.
Como acima dito, a guerra de Feras de lugar nenhum pode se passar em muitos territórios como talvez a própria Nigéria. Dessa indefinição palpável de espaço, decorre uma indefinição temporal, que embora não comprometa a também linear narrativa do romance, confere a ele um ritmo acelerado, quase frenético. Agu luta, mata, quase morre, pensa na morte, na vida, nas feridas que coleciona pelo caminho, no corpo dolorido do último combate, na escola precária que frequentava antes da guerra, e os tiros continuam a zunir em sua orelha enquanto se lembra da irmã que lhe contava histórias, e decepa um inimigo a golpes de facão. A atmosfera de Uzodnima Iwaeala tem de ser nebulosa, virulenta, pois ele quer falar de violência e estupidez, mas escolhe o seu menino para o fazer.
Dois meninos
Ondjaki tem menos de trinta anos e Uzodnima Iweala, menos de vinte e seis. Estrearam abordando temas complicados por constantemente reiterados. Não se saíram mal na empresa, e me parece que ainda têm muita lenha para queimar (ou petróleo, ou gás natural). São dois meninos. Arrisco que o nigeriano poderá vir a se tornar homem antes do angolano, porquanto seu livro comece e termine bastante melhor que o do "companheiro de armas".

(Na foto, capa de "Feras de lugar nenhum". Uzodnima Iweala. Nova Fronteira, por volta de 30 reais)

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Pequeno ensaio sobre o suicídio

“A condição humana é boa porque ninguém é infeliz senão por sua própria culpa. A vida te apraz? Viva. Não te apraz? Tu podes voltar para de onde vieste.”
Sêneca, Carta LXX
“Seu José, mestre carpina, que diferença faria se em vez de continuar tomasse a melhor saída: a de saltar, numa noite, fora da ponte e da vida?
João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina

"Se te queres matar, por que não te queres matar?Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida, Se ousasse matar-me, também me mataria...(...)"
Álvaro de Campos

Não há nada mais normal do que escutar o ‘Adágio’ do Albinone ou ‘La Mamma Morta’ do Umberto Giordano (ainda que o gostinho de se saber que é ária do Andrea Chenier cutuque aquela velha magoazinha de que o Manuel Bandeira e o Dostoievski não servem para nada). Como a tristeza é somente de quem ela é, não dá para estranhar que a música escolhida seja o adagio cantabile da Sonata número 8 em dó menor do Beethoven. Asseverou-me ele ser essa a composição que o fazia saber sofrer, satisfeito de si dar o desespero, então, raios, por que não deveríamos nós acreditar? Eu acreditei nele quando me disse. Aquela tecla que faz a faixa do cd repetir anel de moebius seguindo em frente a topologia serpente que come o próprio rabo e germina de si mesma cento e cinqüenta mil vezes sonata número 8 em dó menor do beethoven duzentas e três mil vezes la mamma morta que o giordano inventou.
Eu pude imagina-lo no quarto escuro, travesseiros debaixo do peito, sustendo o coração que sangrando lasso só mesmo na garganta poderiam estar uns anéis, nó górdio porventura. Ele me disse que não era mais homem e eu fui obrigado a acredita-lo, porque ele me disse que não era mais gente e eu tive de consola-lo nas couraças, ajuda-lo a virar-se de bruços para poder descair debaixo do canapé. Apesar de o verem, assim me disse, compreendiam o infausto sem na verdade o enxergarem. Se quisesse ter saído do quarto, voltado à firma ou simplesmente pegado o trem, o teria feito sem festinar, pois já ninguém botava os olhos nele. Eu acreditei nisso também, pois percebi que não lhe teria sido difícil pular o costado, apesar das muitas e finas perninhas.
Foi quando ele me falou do Álvaro de Campos e que ele não tinha par nisto tudo neste mundo (assim proclamou: “eu não sou homem e o Álvaro nunca existiu”). Ele me falou que não tinha par nisto tudo neste mundo, evidente que eu acreditei. Sempre soube e talvez nós todos soubéssemos que havia a dor na alma do poeta que se cantava exilado. Estrangeiro aqui como em toda parte, casual na vida como na alma, fantasma a errar em salas de recordações aos ruídos dos ratos e das tábuas que rangem no castelo maldito de ter que viver.
Eu só pude entender que ele lia e ouvia isso tudo porque estava um tanto quanto cansado, e que embora lhe tivessem dito alguma coisa sobre neurônios e serotoninas, dificuldades de uma coisa de recaptação, ele sabia, e eu soube por ele, que esses nomes são tão iguais quanto as dores reais ou imaginárias que poderia sentir, porque tudo, poesia ou neurotransmissor faziam parte daquela verdade irrefutável de que nada faz muito sentido se olhado de bem perto. E se olhado de mais perto ainda, o resto é silêncio. Não se cansou de me repetir, personagem de si mesmo, que se não sabemos nada daquilo que aqui deixamos, que importa deixá-lo antes? Seja o que for. Nunca me chamou de Yorick, nunca fui seu Horácio mas talvez me visse e visse a si em caveira, em crânio escalpelado.
Senecamente me contou, trazendo enfim a fluidez à pauta, que não se podia perder muito de um líquido que cai gota a gota, e quando me disse finalmente que não valia a pena descer com o rio, que o rio cortava, entendi que queria mesmo saltar fora da ponte e da vida. Porque ele estava prestes a compreender, para que pudesse enfim me ensinar, que essas palavras e músicas são o remédio diário de quem não se pode curar, ou não se quer curar, demasiado nós sabemos que dá tudo no mesmo. E porque eu sei que não tem ninguém de olho nele, nem eu estou, que agora vim aqui escrever e não pude ficar mesmo de olho nele, é por isso que eu alcancei que não adianta avisar, pois a vida vem de levada e somente se pode encontrar quem teve coragem de se perder, mas que o risco disso é não tornar a achar o caminho. E ao se cansar das pátrias estrangeiras se queira mesmo e mesmo saltar fora da ponte, entrando na noite como um rastro de barco se perde na água que deixa de se ouvir.
(este texto foi originalmente publicado em 10 de agosto de 2007)

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Outro

“Conhece-te a ti mesmo”
Sócrates

Quando acabou de passar pela porta giratória, detectora de celulares e molho-de-chaves, deu de cara consigo mesmo refletido na enorme janela de vidro na parte interna do banco. Nesse momento exato deixou de querer ser ele. De tal forma surgiu o sentimento, forte, coerente, que volveu para trás esquecido completamente do que viera fazer. Saiu pela rua com tranqüilidade e convicção, sabendo que não queria mais ser ele. Se poderá inferir, em princípio, que gostaria de trocar a aparência física, mudar o cabelo, a cor, puxar daqui, esticar dali, coisas que um bom cirurgião resolveria. Mas não era isso, desejava deixar de ser quem ele era por inteiro, de corpo e, vulgarmente falando, de alma. Tinha de ser outra pessoa, fundamentalmente, outro ser. Lembrou-se de Gregor e lhe pareceu até satisfatória a figura de um enorme inseto, justo, natural, com tanto que não fosse mais ele. Estava pelos trinta e tantos anos e possuía um espírito pragmático, metódico até. Vivia sozinho. Tinha amigos, uma vida social, uma amante, cuidava de sua pequena empresa de distribuir bebidas e se dava muito bem no negócio. O que não tinha era mais vontade de ser quem era, muito embora não existisse nenhum motivo especial para desgostar de sua pessoa ou de sua vida. Aliás, na verdade, não desgostava de si, não tinha sensações de angústia para consigo mesmo, apenas queria trocar de ser para ir enxergar com outros olhos e com outra alma o mundo.
Assim que entrou no carro, deixado o banco e os afazeres para trás, principiou formular como levaria a cabo seu intento e, como dito, prático por natureza, pôs-se a deduzir de que maneira começaria a transmudar-se em outra pessoa, agora que definitivamente não iria mais ser ele. De punho do aparelho de ondevocêestá ligou para o escritório de sua firma e disse ao empregado que não voltaria mais para trabalhar, ao que aquele respondeu tudo bem, sem problema, dava-se conta do que haveria para fazer. Pobre do moço, não entendeu que seu patrão lhe estava a dizer é que jamais tornaria ao trabalho, ao menos ele, ele mesmo. Desligado o telefone celular, avisado o escritório, precisava agir com rapidez. Tinha uma sensação gostosa pelo corpo — esse corpo que não queria mais — e também um sentimento ligeiro na cabeça — essa cabeça que não queria mais — uma euforia pelo empreendimento realmente vultuoso em que se estava metendo. Dirigiu rapidamente até seu prédio e não foi sem um pouco de ironia que respondeu baixinho ao porteiro que o chamara pelo nome dando as boas tardes seu Lisandro, “Por enquanto, só por enquanto, verás daqui para um pouco”, e entrou na garagem.
Visto assim parecerá desvario de repente abandonar-se negócios e compromissos para querer tornar-se outro, mesmo que querer tornar-se outro seja tão nobre empresa, supondo se queira tornar numa pessoa melhor do que se é. Mas vejam este aqui, plácido, decidido, sem arrancar cabelos ou deitar fora as roupas, quem o poderá chamar louco. Quer transfigurar-se noutro e não faz juízo de valores, não quer ser melhor do que é, pior, menos, aliás, está agora mesmo se questionando o que quererá ser, já tomada a decisão de não mais ser o que agora é. O escopo não perde a nobreza, há de se concordar e muita gente por aí diz ser grande demonstração de idoneidade e coragem admitir desejos de não gostar de quem se é, de tentar mudar, de alterar posições e atitudes, nos ditos do povo, “Hoje eu sou um novo homem, nasci de novo, a partir de agora sou outro”, mas nesses casos, mormente se se repara na entonação das frases, há implícito o conceito de revigoramento, de um melhor estado em relação ao anterior. Lisandro não pensa assim, senão, deixemos ele falar: “O que serei, o que me tornarei, quem?”, entretido nessa importante decisão, preparou um copo, este sim revigorante de uísque e foi bebe-lo descaindo-se no sofá. Desde que tomara a decisão era o primeiro momento em que não se via atribulado, agitado para dar fim à sua intenção, pois agora tinha de decidir em quem se tornaria ao deixar de ser ele.
Permitiu ao pensamento oscilar por entre rostos, nomes, biografias, multidões e parou no Dalai Lama. “Interessante figura, grande homem, visões transcendentais, paradigma de um país e de uma nação, sem cabelos, aquelas roupas umas por cima das outras, sempre as mesmas, deve ser quente, e eu gosto de me mexer bastante, quem sabe Gandhi, esse sim, paz, tudo pela paz, só a paz, indiano pode comer carne de vaca, eu adoro churrasco”, o Dalai e o Gandhi ficaram para trás exortados num belo suspiro resplandecente enquanto se desfaziam em brumas de pensamento. “Elvis Presley seria bastante complicado mudar-me nele”, embora um sorriso tenha assomado em sua face ao pensar nas quantas pessoas não estariam a se deliciar vendo o rei novamente, “Eu não disse, sempre disseram, Elvis não morreu!”, Kant, Guimarães Rosa, Galileu, seu Zé do bar da esquina, Osama bin Laden, ver a vida pela ótica de um terrorista era no mínimo inusitado, tantas eram as possibilidades, tantas as pessoas em que se poderia mudar, e foi assim, pensando e repensando que adormeceu no sofá com a imagem de um ser sem rosto onde teria de passar a viver. Sonhou. Estava na pele do Michael Jordan jogando as bolas de basquete à cesta e fazendo mais de mil pontos numa única partida, se não foi num único arremesso, e quando saía da quadra já não era mais o alto jogador americano ascético, mas sim o Antônio Carlos Magalhães. Tinha uma barriga enorme, uma soberba enorme e estava envolto numa roda interminável de correligionários, baianas e acarajés enquanto ia distribuindo mandos e desmandos.
Acordou uma hora depois com o olhar perdido, lembrava-se com alguma inconstância do sonho em que se misturavam a cara lisa e negra do jogador, parecendo ébano, e também a face do senador, de madeira por certo, ainda que de menor valor, e uns acarajés lançados como fossem bolas de basquete ao cesto. Levantou-se e foi ao banheiro lavar o rosto, ato que serviu duplamente, uma vez para acordar e serenar as idéias confusas, outra vez para perceber que ainda era quem era, Lisandro, e o não queria mais ser. Mas um terceiro efeito surgiu derradeiro, disposto a encerrar deveras as dúvidas e confusões acerca de quem ele deveria se transformar. Olhando com seus olhos mesmos sua face, e pensando com seu cérebro os seus pensamentos, verificou de si para consigo que não importava em quem viesse a transmudar-se, o que de fato contaria era não ser mais Lisandro, uma vez que se o intento lograsse êxito total, não deveria lembrar-se de que um dia fora quem hoje é. Assomou-lhe então pelo corpo o sentimento de euforia, daqueles que nos impelem imediatamente a tomar atitudes, a formular proposta de ação, motivo pelo qual saiu depressa em direção ao quartinho onde guardava umas ferramentas e outras tralhas a procurar algo que pudesse auxilia-lo em sua empresa de transfiguração, “Um aparelho elétrico me servirá bem, sempre ouvi dizer que a eletricidade, assim como o calor, demovem as coisas de seus estados naturais, se pudesse me esquentar, ou quem sabe me eletrizar...”, juntou lá uma furadeira, uma chave-de-fenda elétrica, umas lixas de madeira, além de um dínamo que não sabia exatamente de onde viera nem para que serviria, e meio atrapalhado levou tudo à mesa grande da sala de jantar. Antes de começar a analisar as peças, ainda foi à cozinha buscar o liquidificador e um recipiente onde caberia cerca de um litro de água, pousando estes últimos objetos junto aos demais.
Nunca possuiu este Lisandro lá grandes capacidades inventivas ou construtivas, e se agora estava lepidamente montando e desmontando umas peças, mexendo com certa desenvoltura numas máquinas, não era senão por força do desejo que desde a amanhã o assaltara e fazia com que não quisesse mais ser Lisandro, “Para mudar de ser não deve ser complicado, se eu pudesse ligar esse liquidificador na furadeira elétrica...”. Usando fitas adesivas, garfos e palitos de comida chinesa, montou Lisandro uma engenhoca. A furadeira ficava presa ao utensílio que faz sucos e adjacências na parte lateral, próxima à abertura maior do copo do aparelho, de maneira que ambos ligados em consonância não produziam absolutamente nenhum efeito. Então não era por aí. Até porque não sabia também muito de medicinas e furar-se a si próprio nas têmporas talvez não fosse idéia das melhores, ir ficar logo no primeiro instante o novo ser com um buraco na cabeça. Sentou-se e decidiu que precisava pensar mais um pouco, “Que eu quero? Trocar de ser implica em trocar de aparência também? Creio que não, o que desejo não é deixar de ter a face que tenho, mas sim olhar com estes olhos para um filme e ver outra coisa, tocar um cabelo e perceber coisas que hoje não percebo, se mais ou menos em relação ao que hoje sinto, não importa, mas diferente”. Por essa linha de pensamento chegou à conclusão que nenhuma empreitada que lograsse atentar contra o seu corpo deveria surtir efeito. Furar-se, escalpelar-se, trocar perna por braço, ou inverter a posição dos olhos, metendo o da esquerda na órbita da direita, enfim, isso tudo não daria resultado.
Quem irá dizer que nunca desejou, nem que fosse por uns instantes, não ser mais quem é, tornar-se o milionário, o jogador famoso, o ator que sai com todas as belas moças, as belas moças, ou mesmo uma borboleta, os mais sensíveis, experimentar o mel, provar da doçura da flor, quem ao menos dirá que um dia numa situação complicada não desejou ser, se não outro, ao menos invisível, isso para não mencionar que nos tempos de menino a delícia era imaginar-se mosquinha a adejar pelo sono noturno e despido da prima que fora dormir em casa, ou da amiga da irmã mais velha que se refrescava em pêlo no quarto de hóspedes. Concedamos a Lisandro que não queira mais ser ele, oras, não quer, é um ponto, um direito, deixemos que tente a transmutação. Estava agora convicto de que o caminho deveria ser o da eletricidade ou o da térmica. Meteu-se então, no arroubo da vontade, a descascar os fios do liquidificador para tentar alguma espécie de choque elétrico e, ao mesmo tempo, pôs-se a encher a jarra de água levando-a ao forno de microondas para o aquecimento. Para relaxar, preparou mais uma dose do revigorante uísque e deixou-o ao lado do aparelho de telefone sem fio, que também estava em cima da mesa de cirurgia da sala de jantar, numa das extremidades. Quando o microondas apitou o fim dos dez minutos suficientes para que o recipiente com mais ou menos um litro de água borbulhasse, Lisandro enfiou na tomada o fio do liquidificador segurando-o pelas pontas, próximo, mas ainda não tocando a parte desencapada. A boa intenção era derramar a jarra d’água na cabeça no mesmo instante em que tocasse nas pontas dos fios, para que acontecesse sabe-se lá o que, além do choque e da queimadura no coro cabeludo e na face. Preparou-se, respirou fundo, “Vamos Lisandro, conte, três, dois, um” Trim-trim-trim, trim-trim-trim, “Diabos de telefone, que hora para tocar!...”. Como ainda era Lisandro, só para ele poderia ser a chamada, e num impulso natural que se tem quando é quem se é, correu para a extremidade da mesa onde estava o telefone. Na pressa, escorregou num punhado de água que havia escorrido da jarra e, atabalhoadamente, tentou segurar-se na borda da mesa. Felizmente para si, puxou a toalha que, com o brusco movimento, jogou para cima o telefone e também o copo de uísque que nem sequer havia sido provado. Os três caíram, como é de costume das coisas que vivem na gravidade, sendo Lisandro o primeiro a estatelar-se no chão, seguido imediatamente pelo gelo que lhe tocou a testa antes, para somente depois o líquido gelado e o copo chocarem-se também. O copo fez um rasgo na fronte, onde logo após colidiu o telefone que, sabe-se lá como, com a pancada, ligou. Ligeiramente manchado de sangue, o aparelho escorregou para ao pé do ouvido de Lisandro que, desmaiado, não pôde ouvir os insistentes apelos de uma mulher do outro lado da linha que havia discado o número por engano, “Alô, alô, tem alguém?”
Quando o homem acordou, cerca de dois milésimos de segundos depois do acidente, ou talvez coisa de uns cinco dias, percebeu que estava com uma leve dor de cabeça, nada de muito grave, além de uma certa desorientação ao olhar o espaço em sua volta. Calmamente, recobrando forças, levantou-se às apalpadelas pela sala desconhecida — que parecia ser de jantar. Apesar da dorida cabeça e da pouca percepção do ambiente em redor, estava calmo, sem medo, nem angústia, apenas com um sentimento comichão no peito e na mente, um sentimento crescente, que embora novo, era antigo. Externou então a si próprio quando percebeu poder e saber articular palavras, dizendo suavemente no cômodo silente: “Que diabos, homem, bem que podias ser outro, mais orientado e sem essa dorzinha de cabeça! Vamos, mexa-se, antes precisas saber quem és para que possas mudar o que és”.
(este texto foi originalmente publicado em 23 de abril de 2007)

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Enciclopédia Municipal do Esquecimento - parte final

Interlúdio e fuga
Ainda esperava ele voltar do banheiro quando começou a chover. Num instante, uma bátega forte caía molhando tudo de estranho e taciturno do dia complicado. Tentava construir possibilidades acerca do diálogo que ele tivera com a namorada, mas não podia fazer idéia. Enganei-me, em princípio, quando cheguei a acreditar que eles estivessem bem, que ele teria o consolo que desejava, se é que desejava, nos braços dela. Ineludível foram suas palavras, “mais uma despedida”, e despedida, neste caso, não parecia coisa boa. Além disso, sua face havia envelhecido muito, se contraído. É verdade que durante todo tempo, quando reparava em suas expressões, achava-o tácito, certo de seus pensamentos e atitudes, mas, ao lado desta impressão, havia um desconcerto de alguém que já não sabia qual era o seu lugar e talvez não alcançasse se havia de fato um. Era certo que não estava desesperado, ou o desespero era de tal forma contido ou embotara tanto a capacidade de reagir, que ele se conservava calmo. Mas agora, depois de ter se despedido da namorada, ele fora amolgado. Eu já não sabia em que pé estaria a história do nome, já não podia perceber onde isto teria ainda importância e já, em verdade, deixara de pensar a respeito, e tanto que, ao ouvir o que ele agora ia me dizendo, não me surpreendia por sua opção:
— Não falei a ela sobre a confusão dos nomes.
— Por quê?
— Não achei que valesse a pena, a decisão dela estava tomada. Falar poderia surtir dois efeitos opostos, e nenhum deles desejáveis.
— Quais?
— Ela poderia se entristecer e dar mais razão às suas considerações, me fazer ficar ainda pior em relação a ela, confirmar-lhe minha sandice.
— E a outra?
— Ela poderia se apiedar do meu estado, que no mais não é para tanto, e aí, claro, seria muito pior, pois poderia pensar em voltar atrás por pena ou qualquer sentimento semelhante...
— O que ela disse? Antes de me responder, ele passou demoradamente as mãos sobre a face, lívido, parecia querer conter, não propriamente um choro, mas uma angústia que teria de sair dali por algum meio. Suspirou profundamente, chegou-se bem perto de mim para poder falar baixo:
— O mais importante é que disse não me amar mais...
— Assim, simplesmente?
— Não, disse outras coisas, provavelmente o que ela cria serem os motivos que a fizeram deixar de me amar.
— E você acredita que ela não o ame mais?
— Se a mulher da sua vida diz que não o ama mais, tem-se a obrigação de acreditar nela.
— Mas talvez não de aceitar...
— Talvez não, mas me parece demasiado tarde.
— E foi apenas assim que aconteceu?
— Não, ela disse outra coisa, e é possível que isso conte mais a respeito do caso.
— O que foi?
— Numa frase, falou que eu posso compreender e fazer coisas tão complicadas e não posso resolver e entender as mais simples, mas que estas justamente teriam feito ela ficar ao meu lado.
— E você concorda com isso?
— Não estou certo, mas tendo a acreditar... em realmente tenho dificuldade em me relacionar com o cotidiano, com as coisas naturais da vida...
— E o seu nome, lembrou-se?
— Não lembrei, até mesmo gostaria agora de acreditar que eu fosse o Julio Andochama.
— Seja!
— Não, isso não, ele e eu parece andamos a perder algumas coisas importantes, e não falo apenas por hoje, porque este carrossel vem girando há algum tempo... Ele se virou para fora e somente neste momento percebeu que chovia, sua expressão mudou novamente, me disse, tocando novamente meu ombro:
— Está chovendo!
— É, está, agora é que não poderemos sair, meu carro está longe.
— O meu também, mas não precisamos de carro, agora é que poderemos sair!
Seu olhar iluminou-se, não o suficiente para apagar a tristeza dura que se intensificara desde a conversa com a namorada, mas brilhou como se a chuva, ou os prismas que cada gotícula são, pudessem fracionar aquela confusão sólida permitindo descobrir, nas parcelas surgidas, alguma possibilidade. Pegou-me no braço com delicadeza, mas resoluto e disse:
— Vamos, vamos!
— Não vamos sair na chuva.
— Tem razão, é loucura para nós, eu vou só.
A forma como pronunciou as palavras me pareceu muito pueril, o que concorreu para que eu me irritasse um pouco, porque era um convencimento muito rasteiro me fazer acompanha-lo sabendo que temia deixa-lo só, naquele estado, estado, aliás, que nem eu mais sabia ao certo qual era. Não era o caso. Não condizia com a pessoa que ele costumava ser algum jogo deste nível, uma persuasão que antes poderia ser uma coação, independente de quem ele era, independente do nome que tivesse, o homem que estava parado diante de mim, convidando-me a ir para debaixo de uma tempestade num julho muito frio, não queria nada além de companhia, e agora, pelo alheamento repentino, nem disso necessitava mais. Soltou meu braço, oscilou a cabeça, olhou por alguns instantes para fora, esfregou o rosto com as palmas da mão, num esforço procurou sorrir, achegou-se perto e me deu um abraço demorado, mas mudo. Eu o abracei e preferi não dizer nada também, esperando que ele falasse. Ao cabo de uns quantos segundos ele me disse, sem me soltar:
— Obrigado.
— Não há o que agradecer, somos amigos.
— Passei este dia inteiro a confundi-lo nas minhas confusões, e mesmo você não sabendo mais quem eu sou, que louco que sou, esteve aí ao meu lado, obrigado...
— Não há necessidade de agradecimento, estaria do seu lado para o que precisasse.
— Eu sei, eu sei, mas agora eu vou caminhar um pouco.
— Está chovendo demais, vá para casa, tome um banho, durma um pouco, vai ver que tudo se aquieta.
— Eu vou caminhar, e tudo se aquieta também.
— Caminhar nesta chuva? Façamos o seguinte, eu levo você pra casa, depois tomo um táxi e venho buscar meu carro.
— Claro que não, eu vou só caminhar um pouco...
— Julio, José, ou o raio que seja seu nome, por favor, me escute uma vez ao menos nesta merda de dia confuso que tivemos, vá para casa, tome um banho, durma e amanhã volte a pensar em tudo novamente!
— Você foi um grande amigo, um companheiro excelente, gostaria de poder retribuir fazendo algo para agrada-lo, mas, não vou voltar pra casa agora, eu preciso caminhar.
— Na chuva?
— Na chuva.
Eu estava extenuado, não tinha mais forças para discutir, além disso, apesar de todas as palavras dele em meu proveito, me irritei bastante com o que considerava ser uma ingratidão não ouvir meus conselhos de ir embor. Demorei um instante com a cabeça baixa, esfreguei com os dedos os olhos e falei olhando para ele, com bastante calma, mas a voz carregada, para que ele percebesse a extensão do meu cansaço:
— Você tem trinta anos, não o posso impedir de fazer o que quiser fazer, mas é uma atitude infantil sair à noite no meio da chuva. Achei que este artifício pretensamente humilhante de chamá-lo infantil o pudesse dissuadir da caminhada noturna, mas ele deu de ombros e sorriu com carinho:
— Eu sei, meu amigo, eu sei... E tocou, condescendente, meu ombro esquerdo mais uma vez.
Apesar de ter sido sincero ao dizer que não o impediria de sair para a chuva, não pude deixar de ir atrás dele. Não tinha uma noção exata de qual era o meu medo naquele momento, e nem sei se o que me fez pegar o carro e segui-lo de perto tivesse que ver propriamente com receio, mas estava, entre outras coisas, curioso a ver no que ia dar tudo aquilo. Despedimo-nos mais uma vez, com um aperto de mão à saída do bar e ele saiu caminhando lentamente pela calçada, ainda se protegia da chuva por causa de alguns toldos dos estabelecimentos contíguos. Eu fui na direção oposta buscar meu carro, que afinal não estava tão longe quanto eu houvera dito, simplesmente com a intenção de retê-lo no bar. Deixei ele se afastar um pouco, não queria que me visse, embora sabendo não haver nenhum sério problema se acontecesse. Fui guiando lentamente, há cerca de uns trinta ou quarenta metros, a iluminação pública não era ruim, mas a mistura dela com a água e os vários letreiros dos comércios deixavam a atmosfera densa, esfumaçada, as cores se matizavam, se confundiam, e a água fazia as formas se movimentarem. A rua, a despeito de ser uma alameda paralela à marginal era movimentada, mas por ser também larga, permitia que eu pudesse conduzir o carro do lado direito, devagar, ouvindo de quando em quando umas buzinas. Ele caminhava agora mais célere, olhava para o seu lado esquerdo, de vez em quando olhava para o céu, mas imagino que os pingos o agrediam, pois durava pouco este menear de cabeça, conquanto fosse repetido sempre. À distância em que eu me encontrava não podia ver seu rosto, até porque estava atrás dele, mas tão pouco podia perceber algum movimento distinto que aludisse a alguma intenção, fosse ela qual fosse. Era uma pessoa caminhando rápido pela chuva, mas, nitidamente, sem a pressa de chegar num ponto em que evitasse se molhar. Numa esquina, parou. Como não houvesse nenhum carro, entendi que ele tinha me visto, e simultaneamente ao meu entendimento, virou-se e acenou com o braço. Levei o carro até junto dele, abaixei o vidro, já que ele tencionava me dizer alguma coisa. A chuva estava amainando, mas ainda era forte, ele tirou o excesso de água do rosto com a manga da camisa, mas ela estava tão encharcada que a ação resultou inútil, e me disse:
— Meu bom amigo, até quando pretende me seguir?
— Não sei, não sei mesmo. Se você tivesse algum juízo, ou alguma consideração por mim, entraria neste carro e me impediria de andar por aí a dez por hora com essa chuva!
— Eu não vou entrar, quero mesmo caminhar, não se importune comigo, já fez tudo que podia fazer, parece estar cansado, vá para casa.
— Estou cansado, estamos cansados, vamos para casa tomar um banho e dormir, tente esquecer tudo isso um pouco.
Ele fez o mesmo movimento para tirar o excesso de água da face, franziu a testa e esticou os lábios. Apesar de estar a meio metro de mim, por conta agora da iluminação prejudicada por uma árvore e a água que era muita, não pude perceber se ele havia sorrido ironicamente ou se apenas tinha contorcido a expressão numa atitude normal de quem tem a cara molhada, então insisti com pesar:
— Esquece tudo isso, vamos para casa! Mas ele respondeu-me com gravidade:
— Quero esquecer tudo, a dor de ser homem, este anseio infinito e vão de possuir o que me possuí...adeus.
A frase era bonita, de efeito, algum tempo depois descobri ser de um poeta famoso, mas o que me chamou mais atenção não foi seu sentido, sua poesia, mas sim o término, um adeus convicto que precedeu uma atitude adolescente mas imperativa, que foi apressar o passo, quase a correr e seguir pela esquina em direção à marginal. Não soube o que fazer então. Segui-lo de carro, pela marginal seria impossível, não poderia continuar andando na velocidade em que estava. Correr atrás dele a pé era um despautério para o qual não estava inclinado. Deixa-lo ir, simplesmente, eu também não podia, depois de tudo quanto havíamos passado. Ora, diante de três possibilidades e não dispondo de tempo para pensar em outras, fiz o que menos queria fazer. Dei ré com o automóvel e o estacionei há alguns metros da esquina, praguejando, desci do carro e corri em direção a ele. A chuva estava muito fria, os pingos eram grossos, a impressão que eu tinha de que ela estava amainando se desfez assim que senti seu primeiro contato. Passei pelo quarteirão que ligava a alameda à marginal, o trânsito era pesado, e não conseguia encontra-lo. Novamente uma dualidade de sentimentos em mim, “se não o encontro, tanto melhor, vou embora pra casa tomar um banho quente, mas, se não o encontro, o que poderá acontecer”, pensei isso e segui adiante, caminhando do lado direito, olhando para todos os lados à procura dele. Finalmente o vi, estava encostado numa placa de trânsito, a cabeça sob o antebraço, corri até ele, era difícil falar no meio da tempestade:
— Por favor, isso já foi longe demais, vamos embora!
— Sabe como eu me sinto? Como se eu fosse feito de plástico e os meus movimentos estivessem endurecendo...
— Está muito frio, você está estressado.
— É como se eu estivesse me desfazendo, esboroando, se como o que ainda resta de mim, estivesse se partindo...
— Você está deprimido, teve um dia difícil, vamos para casa!
Eu disse isso e o puxei pelo braço, queria demonstrar compreensão, mas ao mesmo tempo pretendia ser enérgico fazendo-o perceber que a situação havia chegado ao limite, mas ele não me ouvia, estava aplacado, e não me olhou em nenhum momento, antes, parecia que era um palrar que ninguém atinava, ainda assim eu insisti:
-- Vamos embora? Ele me respondeu com angústia:
— Eu me sinto falso, não posso mais, não sei mais quem sou...
— Amanhã, meu amigo, amanhã as coisas vão melhorar, vamos embora. Não adiantava, ele se desvencilhou de mim e caminhou a passos acelerados, embora estivesse muito oprimido, falava sem atropelo, com amargura e tristeza. Eu corri e o segurei pelos braços novamente, decidira agora o levar à força, e disse:
— Vamos embora, já chega.
— Já chega... não é verdade que ela fique mais linda triste, sorrindo, ela é incrível...
Não pude responder, porque ele se soltou com violência de mim e correu para a marginal, atravessando-a de uma vez. Do outro lado, ladeando o parapeito foi caminhando e olhando para o rio. Eu gritava para que voltasse, e não conseguia como ele, com a mesma destreza, atravessar a avenida muito movimentada. Ele voltou-se para mim, acenou com o braço e saltou a proteção de metal. Gritei alguma coisa que não me lembro e corri para o meio da rua sem atinar no que fazia, atravessando-a como ele o fizera um pouco antes. Cheguei do outro lado e já não podia mais vê-lo, o rio estava revolto, muito escuro como sempre, imundo das sujidades da urbe. Saquei o celular do bolso, completamente molhado, para pedir socorro, gritei para o alto uma raiva e continuei a acompanhar o caminho do rio, uma enxurrada parda e inexorável. Sentei-me no chão, esfreguei o rosto com as mãos, olhei para o relógio, faltavam alguns minutos para a meia-noite quando a chuva passou a cair ainda mais forte.