segunda-feira, 31 de março de 2008

Domingo no Parque Infantil

"Ainda existem almas para as quais o amor é o contato de duas poesias, a fusão de dois devaneios".

Gaston Bachelard, "A Poética do Devaneio".

Já agora, aos domingos, vou ler numa praça que se chama Parque Infantil. Um lugar bastante aprazível, bancos de madeira pintados em verde-musgo nada confortáveis, mas com sombras de árvores frondosas tão gostosas que a coluna mal percebe a dureza do assento. Há gente correndo, crianças, cães. Idosos caminhando e alguns casais tomando sorvete. Uns meninos pedalam a bicicleta. Sento-me sempre no mesmo banco, debaixo da copa de uma carnaúba. Levo comigo o jornal do domingo, um e outro livro, às vezes uma revista. Não tenho horário para chegar, e volto normalmente quando a luz natural cessa, mas isso não é uma regra. Não há regras. Sento-me sempre no mesmo banco.

Nietzsche dizia que Xantipa, esposa de Sócrates, azucrinou tanto a vida doméstica do ateniense que acabou por empurrá-lo mais e mais à filosofia, ajudando-o também a expandi-la pela cidade. Sócrates não agüentava ficar em casa e saia pelas ruas falando com todo o mundo. Aos domingos, é costume a casa estar vazia. Não há ninguém me impelindo a ganhar a rua para me dar a solidão que muitas vezes, em outros dias da semana, eu desejo. Então junto do Manuel Bandeira tomo o café que eu mesmo preparei e saio para a caminhada, os petrechos de palavrórios debaixo das axilas. São vinte e tantos minutinhos até as árvores e os passarinhos (que muito polidamente, sem algazarra, me presenteiam com sua evacuação que só me faz pensar na tautologia dessa minha vida que é uma merda porque só se faz cagada).

Mas claro, eu vejo os entes vivos que se cruzam (vejo as pessoas que cruzam por mim e não creio que meditem na segunda leia da termodinâmica, Ascher, eu não medito). E ver a gente toda de meu banco solitário é a forma mais sóbria (e justa) de poder ficar só. Sorrio muitas vezes. Sorrio mais nas poucas horas que lá permaneço do que em todas as horas dos dias anteriores da semana que me levaram ao domingo. Sorrio porque vejo a gente correndo, e as crianças e os cães e os idosos. Os casais que tomam sorvete. E sorrio porque sei que nunca serei como eles. E sorrio porque nunca poderei ser feliz como eles. E finalmente sorrio porque isso tudo me leva ao único instante de serenidade quase pacífica que é o “momento de grande reconciliação com a falta de sentido de tudo”, como me disse o Luis, no Natureza do Mal.

A luz rareou, posso ir-me embora. Já não faz sombra a fronde da árvore. Não há nada que importe na praça, nada havia que importasse no jornal, não faz diferença o que haverá em casa. Escureceu e amanhã amanhecerá. Virá um tanto coeso de dias e será domingo novamente quando os jornais assim o assinalarem. Então poderei sempre tornar ao Parque. Exceto se chove num outro qualquer domingo. Se chove, fico em casa porque as gotas que invariavelmente as folhas da árvore não poderão conter fazem borrões nas páginas impressas e as notícias não podem ser lidas, assim. E os velhos e os pais das crianças e os donos dos cachorros não gostam de se ensoparem na bátega que cairá num outro próximo domingo.

terça-feira, 25 de março de 2008

Um beijo no seu coração

A Veri, com quem primeiro conversei sobre essa expressão
Não suporto doce. Chocolate, bolos, tortas, nada disso me interessa. Chego mesmo muitas vezes a não me entender com frutas, exceções àquelas bastante azedas ou amargas. No entanto, resolvi nos últimos tempos me alimentar mais saudavelmente (lá o que isso signifique) e passei a incluir as tais no meu cardápio. Na escolha de qual comer, o primeiro critério foi o quão adocicada a bendita era, e o segundo a maneira convencional de ingeri-la. Explico. Acabei optando por frutas que são melhor apreciadas comendo com a mão e extraindo as partes à dentada, arrancando nacos. Manga (apesar de doce), caju (apesar da sazonalidade), uvas, lichias podem ser frutas divertidíssimas de se comer. A palavra é lúdico. Lambuzar-se na manga, comer com as mãos, arrancar a casquinha da lichia no dente, as uvas dos cachos (eu me entretenho muito em morder a uva e abri-la de forma que a casca se esconda atrás da polpa). Normalmente não é fácil brincar com os alimentos e algumas frutas se prestam muito bem a isso, poder senti-las no tato. Há quem prefira comer uma pêra com garfo e faca.

Agora me lembro de uma passagem de Tornino i Volti, do Ítalo Mancini: “O nosso mundo, para nele vivermos, amarmos e santificarmo-nos, não é dado por uma neutra teoria do ser, não é dado pelos acontecimentos da história ou pelos fenômenos da natureza, mas é dado pelo existir desses inauditos centros de alteridade que são os rostos, rostos a serem olhados, respeitados, acarinhados”.

O que é um beijo? Para além do dicionário, todo mundo sabe que beijar alguém ou algo é encostar os lábios nesse alguém ou coisa, como demonstração de amor, afeto, carinho etc (clichê a osculação como marca de traição). Quando mandamos um beijo para alguém, seja por telefone, emeio, carta, mensagem de celular, entrevista na tv, estamos querendo dizer que, se estivéssemos por perto, beijaríamos. É por isso que não consigo entender a agora tão difundida expressão “um beijo no coração”. Eu tenho certeza de que foi a Xuxa que inventou isso. Ou a Ana Maria Braga, ou então a Hebe Camargo. O fato é que principalmente nesse meio televisivo a expressão pulula. E, como de costume, contamina os demais mortais. Recados de orkut, despedida de msn, fim de emeio e até recadinho de celular já chegam com beijos no coração.

Senão vejamos: a importância e a força constitutiva de um beijo está na toque cúmplice e íntimo de pousar os lábios na pele de alguém. Esse contato físico é a razão única de ser do beijo, e a intensidade e profundidade dele são flagrantes se comparadas, por exemplo, a um aperto de mão. Logo, a abstração de enviar um beijo a quem está longe, deveria querer representar, na impossibilidade prática momentânea, a comunhão dos lábios com o outro, na demonstração física mais íntima possível, depois do sexo (há algo maravilhoso que é entrelaçar as mãos — embrasse-moi chéri — , que assim como os abraços, é terno, meigo e profundo, mas ainda assim anterior ao beijo). Claro que sexo, beijo, abraço e tudo o mais que o ser humano é capaz de fazer pode ser feito sem sentimento, mas não é essa a discussão.

Então eu mando um beijo no seu coração. Transformo o ato íntimo de encostar minha boca em você numa abstração impossível. Não dá pra beijar o coração (exceto se se for cirurgião cardiovascular ou fizer-se parte de seitas extratoras do órgão ainda pulsando de dentro do peito do sacrificado). Imagina-se que quem manda um beijo no coração quer tocar fundo, ir ao âmago (o coração é sempre considerado o detentor dos sentimentos), mas o incauto não alcança que o beijo não se presta a isso, ou se presta por outro meio que é justamente o tato. E se não dá pra beijar o coração de fato, enviar um beijo no coração se torna algo então muito impessoal.

O beijo é o beijo. Não é voto de paz, expensas de contrição, augúrio de saúde, desejos de felicidade. É beijo. Demonstração de amor que só pode ter sentido na contundência do toque. Se não podemos dar um beijo porque o emeio ou o telefone não permitem, mandá-lo significa dizer que quando nos encontrarmos, vamos nos beijar. Vale até fazer o barulho de smack no telefone, ou som estalado dos lábios comprimidos. Vale ainda desenhar ou mandar boquinhas vermelhas nas cartas. Só não vale mandar beijo no coração. O coração fica dentro do peito e antes dele a nossa pele é que gosta de sentir o quentinho úmido dos lábios de quem amamos, nem que seja só imaginando quando será.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Faz frio

Subo a alameda perpendicular ao estabelecimento onde quitei a dívida. Faz frio, o dia está escuro, venta. Num primeiro momento imagino que a ruas estejam tanto mais vazias que o comum por conta da feiúra do clima. Me engano. Apenas a travessa em que eu estava é que não tinha movimento. Quando chego ao movimento, há. As pessoas agasalhadas não caminham nem mais nem menos rapidamente do que o usual, mas os gestos, sim, são um tanto contidos, as mãos se retesam ou dormitam nos bolsos, as cabeças pendem um pouco mais para as pedras do passeio, os ombros e as costas acompanham a postura.
Optei por não levar uma blusa. Gosto de sentir o vento gelado. Ainda não é inverno, mas já defendi muitas vezes a tese de que o refletir, o penoso refletir é tanto melhor no frio. Levo comigo o recibo e não experimento qualquer sensação de alívio por não ser mais devedor. Há uma dívida inaudita que não me lançará nos mecanismos de proteção ao crédito, francamente conhecidos por siglas. Ainda que rasgue o CPF ou perca o seu número, ainda que fosse possível — e não é, mudar de nome. Dobro o papel e meto-o no bolso (a algibeira da calça soaria pessoano demais), o peso não diminui nem aumenta, apenas a mão está livre para não fazer nada.
Não posso destilar minha tristeza, não posso pensar no pedido que ela me fez para não ligar mais, porque os pedestres se atropelam pela calçada com uma pressa que não faz sentido, embora tenha sentido (e o que mais atrapalha é essa sempre mão-dupla). Eu não quereria flanar, o meu olhar tem pouca comoção para algo tão etéreo. E eu podia, sim, como fiz, escolher ruas mais tranqüilas para caminhar; mas para chegar até elas passo por estas e não posso pensar nestas, e não posso não pensar nestas.
Com nenhuma fé peço para que chova, mas não chove. As calçadas ficam vazias quando chove. A agitação da rua se engalfinha com a minha resignação. Eu estou lento, e como não tenho horário ou lugar para voltar, é lento que pretendo continuar. Ao menos, por sorte, faz frio (se não fizesse, a dívida já solvível ficaria à espera, pois não me poria à pé na rua).
Faz frio e escurece. Não preciso, mas vou voltar para casa. Poderia ficar, a intensidade do tráfego de pedestres por certo diminuiria, poderia destilar com mais paz a minha amargura. Mas não vale a pena. Não vale a pena voltar, não vale a pena ficar. Se escolho o sentido do quarto é porque quando for bastante mais gelado, à noite, sem a blusa que não trouxe, também não poderia mais refletir com tristeza, a energia mal me sobraria para aquecer o corpo. Pela mesma sorte ainda estará frio debaixo de qualquer cobertor.