sexta-feira, 26 de outubro de 2007

A casa dos sonâmbulos

A porta apenas encostada destaca-se na penumbra numa somente tonalidade de ocre. Um fio escorreito que é menos escuridão e sequer luz distingue-se porque cresce, lento, indeciso, e vai se tornando num triângulo isósceles que aumenta o ângulo de seu vértice. Da porta o vulto é da mãe. Ninguém lhe observa, ninguém a adivinha e a percepção do filho é somente, quem sabe, uma sensação táctil de um ar que tremula, diferença de pressão impossível de ser aferida. Ele mesmo sentado a um canto, e um pouco mais iluminado por uma réstia de sol que agora invade, fagueira e moleca as espessas cortinas (se outro fosse o tempo caberia melhor a colgadura), não se deixa notar. Se a luminosidade ora lhe é mais bondosa, a ausência absoluta de movimento equipara as duas figuras.
Cruzam-se. Movimentando-se em relação ao filho, a mãe passa. A luz vê movimento no repouso da mãe, o filho ultrapassa-lhe. Não há repouso absoluto, e por isso mesmo, qualquer vislumbre de confluência que apaziguasse o olhar. Não se percebe quem abriu as janelas e agora a luz escorreria abundante se deus não tivesse programado dias chuvosos. Entretanto os objetos saíram da penumbra. Um prato é um prato, uma xícara é bem uma xícara e cumprem suas funções de xícara e prato. Mas não estão. Nem a mãe, nem o filho, nem a louça estão. Adejam o soalho, adejam o mármore da pia, adejam os móveis todos da casa. Físicos, sabem que o tempo não é absoluto, imateriais, não se percebe cientificamente como deixaram de deslocar ar à sua passagem. O relógio do filho marca as horas que nem algarismos correspondentes possui o relógio da mãe. Ainda assim, escurece novamente antes da conveniência invernal.

As sombras retornam. Já não se sabe se xícara ou prato, se mãe ou filho. A casa é silêncio de trastes imperscrutáveis. Os relógios dissonantes concordam que é tempo de apenas encostar novamente as portas (sem agentes do movimento o ar farfalha e, suavemente, dança). A casa finalmente respira. E cuida por si mesma de tapar as frestas, vedar as nesgas, garantir o sono de mãe e filho, que lhe retribuirão não acordando de fato.

A porta apenas encostada destaca-se na penumbra numa somente tonalidade de ocre. Um fio escorreito que é menos escuridão e sequer luz distingue-se porque cresce, lento, indeciso, e vai se tornando num triângulo isósceles que aumenta o ângulo de seu vértice. Da porta o vulto é de alguém. Ninguém lhe observa. Ninguém pôde supor que o relógio acertou o compasso porque se tornou único, mas não sabe qual. Uma tesoura cortará o Anel de Moebius na largura, depois de tantas vezes tê-lo cortado no comprimento, esgarçado a um tal ponto sua única face só dupla que agora para recriá-lo em nova existência, apenas leve pressão será necessária, e a lâmina tão desgastada, não precisará de meio fio para o modificar.

A casa finalmente respira. Destapou as nesgas, abriu os interstícios todos, e parece que a luz agora entrará para colocar cada coisa em seu lugar, deixando as xícaras serem xícaras, os pratos serem pratos, a louça ser louça em sua variedade.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Nem ler nem escrever

Nunca fui muito profícuo na leitura, mas sempre me considerei razoável na releitura. Me lembro que quando menino, ficava um bocado angustiado quando sentia vontade de reler os meus livros prediletos, pois imaginava que estava perdendo tempo revendo coisas que afinal eu já tinha conhecido. Talvez por ter lido muito jovem obras como a de Dostoievski (como diz o Rubem Fonseca em seu Diário de um fescenino, “vou dizer que foi com 13 anos que li Dostoievski, mas no duro foi com 12”) e Shakespeare por exemplo, é que sempre ao me ver mais homenzinho tornava a reler algum livro. A angústia foi diminuindo quando percebi que as leituras poderiam ser bastante diferentes em cada época e desenvolvimento intelectual e cultural do leitor, e que no final de contas eu descobria sentimentos e interpretações muito originais de cada novo contato. É verdade que nunca me dei por vencido, sobretudo quando comecei a vislumbrar o infinito das leituras que jamais poderei fazer, sendo que o comichão ainda salpica travesso quando retomo pela vigésima terceira vez o Hamlet.

Nos últimos dois anos tenho me dedicado a ler mais e reler menos. A maratona tem sido desgastante e por vezes inconseqüente: quando começa a chegar assim o fim do ano, novembro e dezembro, meses capitais, surge uma angústia de outro gênero ao olhar-se para as leituras feitas nesse ínterim. O que é que afinal apreendi nesse amontoado de palavras? Enfiar leitura atrás de leitura, terminando um livro e começando outro imediatamente numa conta que chega na data exata de hoje a vinte e sete livros tem algum valor sério? Chega-se a alcançar alguma coisa de uma miríade de idéias, imagens, estéticas, argumentos etc se em verdade não se pára para digerir o que foi ingerido? A esse respeito, é impossível não lembrar da irônica lição de Schopenhauer, ao comentar um ou outro leitor inveterado e de gogó aflito por contar (vinte e sete livros, tá bom...) o quanto leu: “Ah, essa pessoa deve ter pensando muito pouco para poder ter lido tanto!”. A linha de argumento do filósofo alemão é que o único pensamento válido é aquele próprio, ou seja, criado a partir do nosso próprio gênio. Considera que o exagero de leitura só pode ser um desvio ao caminho do pensamento original e próprio, que faz o ser humano evoluir enquanto pensador. A maneira, segundo Schopenhauer, mais fácil de se tornar um estúpido é “tomar um livro nas mãos a cada minuto livre”. O caso é que algo sempre me assalta: se termino um livro, preciso necessariamente escrever sobre ele? Pensar sobre ele apenas é válido para apreendê-lo? Qual seria o lapso prático-temporal para se enfiar em outra leitura?

Então chega-se a outro ponto: escrever sobre. O fato de possuir este blogue me pressiona a escrever sobre o que ando lendo, afinal, a presunção desmedida do subtítulo da página proclama: literatura. Poderia dizer que dos livros que andei lendo muitos não são de literatura (ainda que isso não redima os “afins”) e por isso não me meti a comentá-los. Mas, e se, de fato não tenho nada a dizer sobre Minha querida Sputnik do Murakami? Ué, não tenho, como disse num texto anterior, melhor me calar. Isso é extensível também ao assuntos que pululam na mídia. A quando da celeuma sobre artigo do Renato Janine Ribeiro, e por influência de uma excitação escusável de ter acabado de criar o blogue, meti-me a dizer qualquer tolice para lembrar aos poucos leitores que sim, eu estava a par dos acontecimentos. Tolices e lugares-comuns que nada acrescentaram ao debate. Mesmo assim ainda me sinto constrangido por não ter dito uma palavra aqui na Bazófia acerca da pendenga Huck/Ferréz, ou não escrever minhas impressões sobre Tropa de Elite.

Na verdade fiz um Caldeirão do Huck de idéias mal ajambradas. Perguntei mal e não indiquei um caminho de reflexão: as minhas dúvidas, para deixá-las explícitas e talvez evidenciar se têm relação entre si, são de que adianta ler um bocado de coisas intempestivamente e sem método se não se sabe ao certo o que se depreendeu delas? De que adianta escrever (e mais adiante ter um espaço para se escrever) sobre um assunto se não se acresce absolutamente nada de novo ou original ao assunto?

Uma coisa me parece precisa: as leituras, por mais que tenham sido pensadas, não conseguiram colaborar para que afinal, este mesmo texto que fala delas e de si próprio, conseguisse ser um pouco menos estapafúrdio que os demais que suscitaram as dúvidas quanto a continuar escrevendo. Ler eu vou continuar, nem que seja por passa-tempo.

p.s. – mais uma dúvida? Lembrando-me de um texto anterior que falava sobre o que se espera de um blogue, qual a diferença entre os criticados blogues de “diários pessoais” e este aqui, cuja única função foi dizer pessoalmente das coisas que leio e das coisas que intuo? Existe realmente distinção em contar “hoje fui à feira livre comer pastéis” e “hoje terminei de ler tal livro e não sei o que dizer sobre ele”?