quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Enciclopédia Municipal do Esquecimento - Primeira parte

O olvido do nome
Ele repetia com tanta veemência que não se chamava Julio que era difícil não acreditar. Mesmo eu, amigo de muitos anos, titubeava ante a face crispada que bramia:
— Os documentos estão errados, ao diabo com eles, não me chamo Julio — virava-se para os lados, não propriamente agressivo, não propriamente irritado, mas com uma contundência de quem tinha certeza do que dizia, e dizia — Eu sei quem sou, sei o que faço, onde trabalho, o nome da minha namorada, o número da minha conta no banco, tudo está condizente com a realidade, mas, não me chamo Julio, não mesmo.
Aconteceu numa segunda-feira. Chegávamos então para o trabalho quando o cumprimentei perguntando do futebol de final de semana:
— Fala senhor Julio, será que agora o nosso time vai? Ao contrário do que era normal, sorriso largo e um comentário engraçado, o questionamento sério:
— Por que é que me chamou de Julio? Como não entendi a brincadeira, repeti em tom de galhofa a frase, alterando o tratamento para doutor, no que fui indagado, exatamente assim:
— Não entendi a brincadeira. Dei de ombros e me despedi, dizendo que precisava dar um telefonema e nem pensei muito no assunto até um pouco antes do horário do almoço, quando ouvi, na sala ao lado, um esbravejar mais alto:
— Meu nome não é Julio, não estou entendendo essa brincadeira desde manhã, alguém vai querer me explicar?
Saí da minha sala e fui ao encontro dele, um pouco apreensivo, se fosse brincadeira (ele não desgostava de uma boa troça) a coisa estava sendo muito bem encenada. Então disse, batendo de leve na porta, e me afastando um pouco para que o funcionário das correspondências planasse ligeiro dali:
— Posso entrar patrão, como quer que lhe chamemos agora?
A sala estava em perfeito estado de arrumação, naturalmente como haveria de ser em qualquer dia da semana. A atmosfera um pouco lúgubre era conseqüência do dia escuro e frio que fazia. Em princípio pensei que pudesse ser isso o que contaminava a expressão fechada no rosto dele, mas a tal ponto ele se entrevou, a um tal ponto se angustiou que pensei enfim ser a coisa mais séria, algo estranho estava acontecendo, e ele me disse, a voz muito baixa:
— Eu não sei o que está acontecendo, todo mundo me chama de Julio, mas tenho certeza de que não me chamo Julio.
Mesmo já tendo percebido que não era farra, ainda tentei, numa última chance para nós dois, mostrar indiferença:
— Deixa de brincadeira, Julio, me fala o que está havendo? A resposta veio tão forte e serena, que precisei me sentar:
— Eu não me chamo Julio!
Retomei o prumo, esperei um instante e o observei, aproveitando-me de que ele olhava para baixo, pensativo, mais cansado que assustado, com uma expressão agora de tristeza ao invés de indignação:
— Vou chamá-lo Julio, mas é pelo hábito, e porque não saberia como fazer de outra maneira, o que está acontecendo, por que diz não ser esse o seu nome?
— Eu não sei o que houve, simplesmente não me lembro do meu nome, mas sei que não me chamo Julio...
— Do que mais não se lembra?
— Aparentemente me lembro de tudo.
— Do meu nome?
— Claro que sim, seu nome é... E disse meu nome completo, com o detalhe da pronúncia de um sobrenome alemão.
— Está vendo, sei exatamente o seu nome e de todos os outros, o rapaz das correspondências chama-se... Foi então enfileirando uma série de nomes, da copeira até o diretor geral e só parou porque eu interviesse:
— Muito bem Julio...
— Não me chamo Julio!
— Certo, certo, enfim, já percebi que você se lembra do nome de todos, aliás, sempre se soube da sua boa memória, vamos devagar, isso deve ser alguma estafa.
— Pode ser o que seja, mas meu nome não é o que vocês estão dizendo, e não que isso tenha grande importância, apenas é um erro que precisa ser corrigido.
A conversa começou a me cansar um pouco, percebia que realmente não se tratava de uma brincadeira e ao mesmo tempo achava que também não era nada de grave, apenas alguma coisa relacionada ao estresse, de qualquer forma precisava chegar a um ponto para faze-lo refletir: — Vamos almoçar, já são horas, uma boa comida e um café talvez lhe façam bem.
— Farão, não tenho dúvidas, vamos.
Saímos os dois a passos lentos, procurei pousar a mão em seu ombro a dar amparo, ele sequer notou o gesto, e não disse uma única palavra, exceto um grunhido obsceno quando o porteiro do prédio desejou bom almoço a nós ambos, chamando-nos pelos nomes. Já estávamos sentados, havíamos feito os pedidos, as bebidas estavam sobre a mesa, um refrigerante dietético para mim, uma água mineral sem gás para ele, quando achei que era hora de romper o silêncio, tentear de leve o assunto:
— Pensou bem, ainda não soa familiar o seu nome?
— Não é familiar, Julio não é o meu nome, o meu nome, quando o ouvir, e é possível que não o reconheça de pronto, poderá soar familiar, mas, Julio, não sendo meu nome, não será familiar.
Mudei de assunto, ainda não era a hora e, de qualquer maneira, também não sabia como agir. Tornei a falar de futebol, mas ele não quis conversa. Esperei a comida chegar, não demorou muito e estávamos almoçando, ele lentamente, sem olhar para mim, nem para comida, vago, alheio, me pareceu que realmente não se chamava Julio, me pareceu que não tinha nome algum. Nenhum de nós levou mais de quinze minutos para terminar a carne e o arroz. Notei que a expressão dele não se alterara, e isso me pareceu um mau negócio, saciar a fome não tinha surtido efeito, mas era preciso falar alguma coisa:
— Sente-se melhor?
— Sinto-me bem, a despeito da falta de memória onomástica... Sorriu um sorriso ácido, mas julguei que haveria me enganado, a comida teria causado algum efeito positivo em seu espírito, continuei:
— Você se lembra do seu sobrenome? A pergunta era importante, e a fiz com gravidade, jubiloso de ter me adiantado em faze-la.
— Não me lembro.
— É Andochama.
— Julio Andochama?
— Exatamente, não se recorda?
— É um sobrenome estranho, mas, não é o meu...
— Não sei que dizer Julio...
— Já disse que...
— Eu sei, eu sei, mas não tenho como me referir a você senão pelo que estou habituado a fazer, como quer que lhe chame?
— Não sei, não me lembro do nome, quanto será preciso repeti-lo?
Os dois estávamos agora irritados, cada um por uma vertente. Mantive-me em silêncio, já me via sem argumentos, sem saber como sair daquele labirinto, e ele não parecia querer ajudar. Foi quando me lembrei dos documentos, “sim os documentos” balbuciei, eles me ajudariam como nada até agora:
— Pegue sua carteira, seu cartão de crédito com o qual vai pagar a conta...
— Eu vou pagar com os vales da empresa.
— Não importa, pegue, vamos, pegue sua carteira de motorista!
Eu estava excitado, era a prova derradeira, material. Mas tão maquinalmente ele retirou a carteira do bolso da calça, tão friamente procurou a carteira de motorista, sem nenhuma hesitação olhou o nome que estava lá pregado ao lado da foto, e ainda com absoluto desprezo lançou-a sobre a mesa após verificar o que, enfim, já sabia. Eu me apequenei no argumento que até então achara infalível e agora iria se mostrar absolutamente descartável, pois nós dois sabíamos o que estava escrito ali. Mesmo tendo de antemão perdido a batalha, alcei a voz com um evidente despeito de vencido:
— Pois bem, Julio Andochama, se não é você aqui nessa foto, apesar da barba!
— Disso já eu sabia, o que poderia vir escrito nos documentos, uma vez que tenho desde manhã percebido que todos me chamam de Julio? Não estaria aí escrito outro nome... que há um erro, disso já sei, o que não atino é como foi produzido.
— Mas que erro, como pode ser assim, olhe os outros cartões, a identidade, seu nome é Julio Andochama, é o que todos dizem, atestam, e com fotografias, pegue aí seu passaporte...
— Os documentos estão errados, ao diabo com eles, não me chamo Julio. Virava-se para os lados, não propriamente agressivo, não propriamente irritado, mas com uma contundência de quem tinha certeza do que dizia, e dizia — Eu sei quem sou, sei o que faço, onde trabalho, o nome de minha namorada, o número da minha conta no banco, tudo está condizente com a realidade, mas não me chamo Julio, não mesmo.
Calou-se, e a primeira corda de dúvida vibrou em mim, e gutural, recôndito em sei lá onde dentro um “será” me escapou. Pagamos a conta, voltamos ao escritório, deixei de vê-lo por algumas horas, mas, ao que parece, se sabia não se chamar Julio, talvez tolerara pelo bem do serviço. Fosse como fosse combinei de encontra-lo ao final do expediente e ver como andaria a situação. Não deu tempo. Passou pela minha sala quarenta minutos antes das dezenove horas: — Saio agora, não posso trabalhar num lugar em que me chamam pelo que eu não sou.
— Julio... desculpe-me... espere, o que houve? aonde vai?
— Conversei com o diretor, ele me disse para passar dois dias fora, tentei explicar o que estava acontecendo, mas você sabe, nem mesmo eu sei o que está acontecendo, de qualquer forma, não estou certo de querer ainda este emprego.
— Pelo amor de deus, cara, pense direito no que vai fazer, eu saio em quarenta minutos, onde podemos nos encontrar?
— No lugar de sempre, fico lá esperando.
— Certo, eu vou pra lá assim que puder. Ele acenou com a cabeça e virou-se lento, arrastando os pés deu dois passos incertos e oscilando a cabeça para trás disse, sem me encarar: — Por enquanto, me chame José, ou simplesmente Zé.
— Acha que pode ser o seu nome verdadeiro?
— Não sei, não faço idéia, mas fica assim.

6 Pitacos:

rodrigo touso disse...

Fio! Muitos verbetes nessa enciclopedia! Muito bom!

Jú Pacheco disse...

Gostei, invariavelmente eu gosto.

Anônimo disse...

Que bom que gosta, esse conto me agrada, também. Obrigado pelas releituras, minha última leitora.

beijo

Anônimo disse...

Obrigado Touso! Sobretudo por vir aqui ainda ler essas bobagens!

Juliano Machado disse...

Jú Pacheco, poxa, que bom que invariavelmente gosta! Tomara não venha a frustra-la qualquer hora dessas.
Obrigado por vir ao blogue.

Anônimo disse...

Muito interessante este seu Julio... **risos**

Beijos