sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Gamelo

(o texto que segue abaixo me agrada. Nunca despertou algum interesse nos leitores do blogue, suscitando simplesmente nenhum comentário, muito menos de outros a quem o mostrei impresso. Claro, a forma é ruim, a maneira de contar não ajuda. Mas gosto particularmente da idéia e a despeito de o vocabulário parecer - e talvez seja mesmo - pedante, houve uma intenção muito específica para usá-lo (e pesquisa, inclusive). Quem quiser, agora, ainda pode pensar no Padre Capio e no São Francisco, da maneira livre que se queira, claro esteja).
a meu amigo Renato Smirne, que me ofereceu a idéia, e sempre está do meu lado nas dificuldades.
“A gente colhe o que a gente planta”
ditado popular

O homem errava ao encontro do rio. Ia no sentido da jusante, convicto, com apenas um gamelo em mãos. Quando chegou à margem pensou que haveria, por óbvio, uma terceira como algures havia lido. Mas fosse caso para outras reflexões, pois a de agora era esvaziar este rio com o gamelo que trazia consigo. Apressou-se na faina, era lá lide de horas, dias, quiçá século. Empertigado no limiar, o homem baixava o gamelo, enchia-o da água diáfana do rio e entornava o recipiente cerca de três metros para frente numa reta normal com a margem direita. Ia adiantado no serviço quando, sol esmorecido quase de todo, o caminhante se aproxima, põe-se de cócoras, dá dois piparotes num alforje que traz consigo chamando atenção para sua presença e diz:
— Boa tarde, pretendes esvaziar o rio?
— É o que tenciono.
— Pelo visto não vais a contento...
— Havendo força e tempo não faltando...
— Sim, tens razão, mas esqueceste de algo.
— Quê?
— Onde andas a despejar a água que vens retirando?
— Ali, pouco adiante.
— Vejo.
— De que me esqueci?
— De que ali só há uma cova, e mesmo que vás cavar outras, não poderiam elas ser suficientes a toda água do rio...
— Não alcanço, e lembro-te de que havendo força e tempo não faltando...
— Sim, mas se conseguires cavar tão fundo e largo, apenas estarás a transpor o rio, e aí, de que te valeu?

O homem pousou o gamelo no chão, secou com os punhos um suor qualquer da testa e não fitou o caminhante. Havia sido pego num dilema, havia-se-lhe escorregado o sentido de seu trabalho. Soerguendo um pouco mais o corpo afim de aparentar dignidade humilde, perguntou:
— O que é que me sugeres?
— Planta e rega com o gamelo. O homem então apontou o dedo e respondeu:
— Ali ao pé da gameleira andei colhendo tudo quanto plantei e mais muito que nem havia sido eu o semeador.
— A gente aqui colhe o que planta, e a gente aqui colhe mesmo o mato ruim que não plantou.
— Aí é que tens, por conta de vir pegado ou se misturar na barriga da terra com o que era nosso, pelo mal que aramos arrancamos do chão muitos mais males que os nossos próprios.
O homem rematou com essas palavras a conversa, e como sabia que do caminhante não viria por ora senão o silêncio, pôde olha-lo de frente, já nessa altura com um sentimento de cumplicidade. Homem e caminhante haviam se entendido, mas no silêncio mútuo ficava a aresta ardida do que ainda faltava dizer.

O caminhante levantou-se e disse:
— Vá lavrar a leira, não é por semeares uma vez mal e arrancares os teus e outros males que não podes mais mexer na terra.
— Não tenho comigo sementes.
— Ali na beirada do rio deixei umas que encontras à mão.
— E então?
— Usa a cova que já cavaste de rego.
— Ficou muito funda...
— Cava um rego do outro lado e tapa com a terra que vais tirando da segunda, a fundura da primeira.

O homem abaixou-se a apanhar o gamelo, olhou na direção do caminhante que havia reclinado a cabeça num movimento de quem ia abrir o alforje mas desistisse no caminho. O homem caminhou em direção ao ponto indicado da margem e encontrou as sementes, depositou muitas delas no gamelo, depois fez concha com as palmas da mão e sorveu um tanto de água do rio. Ao erguer-se, deu com o caminhante ao seu lado e afirmou:
— São boas as sementes.
— Vai lá trata-las na terra.
— E se eu tornar a plantar mal?
— Pode ser que assim seja.
— E se, plantando bem, nascer raiz ruim pegada com as boas?
— É muito provável, até.
— Então de que me serve?
O caminhante não respondeu, esperou que o homem fosse lento chegar-se à leira e só quando este se agachou para novamente transformar a mão em concha e cavar, falou na voz alta:
— Serve-te para saberes que sempre haverá semente e terra!
— Disso já eu sabia, me faltava encontrar novamente uma e outra.
— Então toma por léria minhas palavras?
— Não, não tomo, porque sei o que carregas no teu alforje.
Antes de tirar a segunda porção de terra do segundo rego, o homem observou o caminhante ao lado da margem do rio, a imagem se misturava com o pôr-do-sol, e o caminhante agora abrira o alforje e tirando algo de dentro gritou ao homem:
—Também eu precisava lembrar-me de que há sempre o rio e sua água!
O homem nada respondeu, baixou na terra para retirar agora o terceiro lote do segundo rego e viu o caminhante descer o gamelo até a água, enche-lo até a borda e ir depositar o conteúdo numa cova que ainda não começara, enfim, a cavar.
(este texto foi publicado originalmente em 16 de março de 2007)