segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

O esboroante destino dos livros de poesia

“(...)livros são papéis pintados com tinta(...)”
Fernando Pessoa in “Liberdade”, de “Cancioneiro”.

Quem gosta de livros, e não apenas de lê-los, tem um zelo todo maternal com o dia-a-dia e o manuseio. Não permite que eles fiquem empilhados, que se lhes coloquem coisas em cima, que estejam próximos de água, comida, animaizinhos de estimação ou crianças pequenas. A biblioteca tem sempre que ser espanada, não gosta demarquem as páginas com as orelhas, muito menos que se rasure o tomo. Aliás, é de bom agouro colocar saquinhos plásticos transparentes nos mais raros e queridos, e quem sabe mesmo dizer agô quando colocar os pés no templo onde eles repousam.

Eu cuido assim dos meus livros. Emprestá-los é um exercício contraditório interessante, na medida em que a vontade de divulgar leitura, alcançar mais gentes na maravilha da literatura esbarram numa paixão egoísta de posse e cuidado com o objeto. Que prazer oferecer o meu “O Coronel e o Lobisomem” com prefácio gráfico do autor, ilustrações do Potty, comentários da Rachel de Queiroz numa bela edição esgotada da José Olímpyo de 1986... Mas, e o medo de que se me não volte o livro arrumadinho e bem cuidado como ele foi entregue? Normalmente o egoísmo não triunfa, mas o coração bate miudinho nos dias de empréstimo.

Sempre que leio um livro ou torno a ele, preservo-o muito, evitando deslocamentos desnecessários, idas e vindas que podem ser evitadas. E assim se vão conservando, por mais que os tomemos a reler, ou os emprestemos a mãos incautas. Embora muito emprestados e relidos, os meus Saramagos continuam bonitos, exceto o “Evangelho Segundo Jesus Cristo”, que sofreu um acidente lamentável, chapinhando involuntariamente numa poça d´água (involuntário o dono, que o livro, vai-se a saber se não queria imitar o menino Jesus do Alberto Caeiro).

Mas há os livros de poesia. Por exemplo, confesso que estou na minha terceira edição das obras completas do Manuel Bandeira, aquela da Nova Fronteira, azul, que tem uma rosa-dos-ventos dourada na capa e atende pelo nome de “Estrela da vida inteira”. Não dá pra ficar sem o Manuel Bandeira por perto. Escola, carro, viagem, “no vento, na cachoeira, no eclipse”, a poesia urge ser lida e não indaga de lugar ou tempo. Aquele momento de recorrer a um verso esquecido de “Momento num Café” é premente, não marca hora, não espera. É um correr e abrir, procurar a página, vira-la, revira-la, e isto também é uma concorrência efetiva para o desgaste prematuro do livro, tão distinto da leveza que dedicamos ao trocar de folha num “Crime e Castigo”.

O livro de poesia, tem de passar de mão em mão, tem que ir ao colo de todos. Minha obra completa da poesia do Fernando Pessoa está assim toda judiada porque precisou de comunicar. Tido sempre a tira-colo ele é lido em voz alta, mas depois, emprestado a que cada um da roda leia por si só o poema, veja o símbolo, sinta a página. Conversava com uma amiga estes dias sobre a subjetividade da poesia e notei a ela que apesar de tudo, há no poema uma coisa que é física, material, que é a visão da letra escrita, da forma, da fonte, da impressão. Ela é entendida nas engenharias químicas e talvez me compreenda agora melhor na química que existe entre um livro e seu dono.

O livro de poesia tem uma ânsia de comunicar, ser lido e tocado que transcende os outros livros. A vida é mais curta, mais perigosa, mais incendiária, porque doar-se de mão em mão é o caminho mais fácil para o atrito que esboroa o impresso, as páginas, a capa. Tem que ver com intensidade, sem dúvida. Os livros podem ser então como um projeto de vida. Se reclusos e calmos, tácitos e contemplativos, duram tantos anos que se fazem passar por gerações apresentando o “D. Quixote”. Contudo, se imprudentes, arriscados, inconseqüentes, são lume vivaz, fogo-fátuo, brasa que queima firme para apagar-se em pouco tempo, é uma “Libertinagem”, uma “ Rosa do Povo”, e passam em tantas mãos, em tantos calores, por tantas paixões que não têm outro remédio senão desfazerem-se, irem abandonando as plumas ao vento, existindo tão intensamente como as palavras que carregam, e talvez como elas, deixando com fugacidade a vida, como o som de um poema encontra o silêncio depois de declamado.
(este texto foi originalmente publicado em 18 de março de 2007, data, aliás, do aniversário de meu grande amigo Miguel Enrique, que atualmente mora nos Estados Unidos)