(O texto que vai abaixo foi escrito por mim a quando de meus vinte anos. Mas, até que gosto dele, ganhou uma vez um concursinho de crônicas num jornaleco do nordeste).
Minha Consciência
Dias para trás estava conversando com minha consciência, conversando é expressão eufêmica para o diálogo, estávamos brigando mesmo, discutindo no mínimo. A certa altura ela me disse, Você merece se ferrar na vida, ao que tentei rematar, Se mereço me ferrar ou não pouco vale, diante do fato de que vou acabar me ferrando de que qualquer modo. Não lhe bastou, de maneira que ficou ainda muito me dizendo e apregoando o que eu deveria ser e não era, o que deveria fazer e não fazia, e o que feito, não deveria ter sido... blablablá. Enquanto a danada espezinhava, observando-a, cheguei a um modelo para defini-la que me parece bom. Eis que pensei ser minha consciência uma lata de água, dessas de cinco litros, que originalmente serviam às tintas, tal como as lavadeiras dos rios de antigamente carregavam à cabeça. “Lata d’água na cabeça, lá vai Maria...”, isso. Como toda lata de material ordinário, opaca, pouco espessa, a altura superando não em muito a largura e o comprimento, estes últimos, iguais. Com princípio de ferrugem nas bordas devido ao uso excessivo e desgastada pelo tempo que nos últimos tempos não tem parado. Parece-me ser a imagem citada romântica, na verdade não me lembro dessa lata d’água na cabeça de Maria, creio que nunca a vi em uso pleno, mas de outro modo me recorda, outro personagem em história diferente (mas não menos sofrida), o Pedro Pedreiro defronte a casa em que morava, nos tempos de eu menino (me redima Manuel Carneiro de Souza), levando a dita cheia de água que se juntaria à areia, às pedras e cal, virando o cimento nada poético que colava os tijolos. Esmiuçada sua aparência e forma, ela funciona da seguinte maneira. A consciência fica lá guardada na cabeça e uma torneira intermitente pinga. Porque a lata é opaca, não sei o quanto de água possui, não a vejo encher, vai-se somando gota por gota, coisa daqui, coisa de lá, e não dou pela quantidade até o momento em que o líquido supostamente inodoro incolor insípido atinge a borda (com tais caracteres, que bom beber da consciência, não?), quando então o vejo. Mas não é o suficiente, é na próxima gota — muitos diriam a célebre “essa foi a última gota”, gente ardil que não sabe que depois de uma gota vem outra, quando não a enxurrada — que vai transbordar a lata, e aí vem a água, caindo e molhando e ensopando e fazendo trilha por onde vai escorrendo, vazou a consciência, seu limite, sua borda, agora não cabe mais líquido algum. Então ela incomoda, deixando tudo úmido, causando um frio suave e suficiente, quando até o barulho mínimo da água escorrendo perturba: agora são horas de tomar providências. Assim como as Marias dos rios ou o Pedro pedreiro penseiro, suspendo ao alto a minha lata, claro que não à altura da cabeça, esforço desnecessário, supérflua retórica romântica, e carrego-a pelo caminho que mais rápido houver até o local apropriado para esvaziá-la e, de uma só feita, sem receios, sem escrúpulos, deixo escorrer. Fica vazia minha consciência e, agora sim, levo à cabeça, posiciono-a embaixo da torneira, e me parece tão maneirinha, que calculo algum buraquinho miúdo no fundo que faz com que demore tanto a encher novamente. Escusado dizer que o diálogo do princípio é raro e se dá no breve caminho entre erguer a lata e levá-la ao local para esvaziar-me dos pecados. (este texto foi publicado originalmente em 20 de março de 2007)
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