terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Capinar

Quando a necessidade nos empurra a capinar é que a coisa já não vai bem, não sendo esse o nosso ofício de comum. Ou são férias. Mas a coisa ainda não vai bem, porque além dos montes há a praia, quase sempre. O caso é que fui capinar a calçada da casa em que moro (há uma distinção tão fundamental entre "a casa em que moro" e "a minha casa" que este parêntese é tolo). Dizia que fui capinar a calçada da casa em que moro com o sol das onze ardendo na cabeça. Claro, escolhi o sol a pino para me dar o sofrimento cúmplice do que então imaginava ser pegar na picareta e na enxada. Calção velho, chinelos havaianas, sem camiseta, e o mais ridículo: o celular no bolso (junto ao controle do portão elétrico).
A calçada não é pequena para o meu gosto. A frente da casa terá qualquer coisa como 25x10m, e o calçamento não foi terminado, estando no cimento, com os recortes delimitados no que seria, imagino, a futura cobertura acabada. Ou então deixou-se assim para tornar num jardim rupestre, o que até não desagradaria, a despeito de ser absolutamente óbvio, pela quantidade de ervas daninhas que me esperavam, que de rupestre ali planta alguma poderia ser chamada. O muro tem hera em cima de si, o que se não faz diferença na faina de capinar, soma-se com peso grande na hora de limpar, já que as folhas verdes e as folhas secas caem num choro de criança desautorizada no doce: devagar e sempre, soluçando. Curioso como uma simples calçada inacabada pode servir de espelho do que vai ficando por terminar nas construções humanas (escusado dizer que não só as de alvenaria, há calçada para tanto gosto e paladar da terra até ao céu das nossas filosofias).
Os buracos que a chuva vai esculpindo no piso, junto à depressão do terreno e à força das raízes das ervas daninhas, que é bom que se diga há algumas parrudas, são muito cheios. Então eu meti a picareta com a ponta mais aguda no primeiro que vi pela frente e fui cavoucando pra ver o quanto saia. Terra, mato, mato, terra, caramujo, formigas, outros insetos que não identifiquei, uma sujeira que não sei bem o que seja, farelo de folhas secas, restos de penas etc. Pode até ser que o Manoel de Barro encontre beleza nessas coisas miúdas e outros ciscos, mas, pondo a mão na massa, não é tão edificante assim, ou desedificante, como queria o poeta.
A atividade não chega a variar muito de escarafunchar a terra com a picareta, arrancar o mato com as mãos, varrer para a sarjeta os detritos despojados do buraco. O que acontece, entretanto, é que bastantes buracos não passam de nesgas, frinchas onde a gente tem que meter a mão e uma chave de fenda (não sou profissional da coisa, se há equipamento apropriado, e imagino que haja, não sei qual é) na fendinha e ir puxando a porcariada. Que merda. Merda mesmo. As plantinhas menores normalmente estão assentadas na fissura com bosta de animal (suponho que cachorro e gato, mas a gente sabe que os muros e calçadas com muito verde são os preferidos para a evacuação de mendigos e bêbados). E essa bosta, em alguns casos quase petrificada, não deixa de feder e de ser desagradável ao tato. Curioso como meter a mão nos buracos das calçadas que ficaram por construir e achar nela merda não deixa de ter o seu paralelo num olhar paras as nesgas do nosso passado, e o que nele muitas vezes encontramos de sujidade.
Como não dá pra ficar lavando a mão de buraquinho em buraquinho, a sujeira que se vai acumulando nas mãos e no corpo (com a ajuda do suor que o sol do meio-dia, treze horas, quatorze horas) torna-se preta e uniforme, e depois de um tempo o nariz se acostumou ao fedorzinho. E se tem porventura coco debaixo das unhas, não se poderia identificar sem um exame químico, porquanto a gente prefira nesse caso ver barro escuro onde merda há. Planta e terra são trecos que coçam e se espalham, motivo pelo qual da cabeça aos pés há pó de detritos, além de uns pontinhos vermelhos e muito irritantes de alguma alergia que não se saberá ao certo.
Saldo da brincadeira: 1)uma calçada limpa de ervas daninhas; 2) uma sarjeta com montinhos de ervas daninhas, terra, areia, ciscos, insetos e merdinhas juntados geometricamente a cada metro, pois a preguiça se esgotou a quando de colocar no saco de lixo; 3) uma vassoura quebrada pela inépcia do condutor; 4) um cidadão que parou de ler "As transparências do mal" porque pensou que seria mais útil colhendo erva daninha, de dedos com bolhas, sujo até a cabeça de barro e caganitas, além de estar com o lombo torrado do sol e cansado como se muito houvesse trabalhado; 5) e o pior, é que como não tem paciência de ir, agora, cuidar da hera do muro, vai tomar banho e reler todos os textos da celeuma envolvendo o Renato Janine Ribeiro a ver se tem algo forjadamente criativo para escrever, num texto que postará em seu blog, afim de que o vejam inserido no debate intelectual do Brasil que não capina merda nenhuma.
p.s. - o "saldo da brincadeira" enumerou-se para que eu pudesse avacalhar-me em terceira pessoa sem exacerbado dramatismo.
(texto publicado originalmente em 06 de março de 2007, no endereço: http://julianomachado.blog.terra.com.br/?m=200703&page=4 )