Ainda esperava ele voltar do banheiro quando começou a chover. Num instante, uma bátega forte caía molhando tudo de estranho e taciturno do dia complicado. Tentava construir possibilidades acerca do diálogo que ele tivera com a namorada, mas não podia fazer idéia. Enganei-me, em princípio, quando cheguei a acreditar que eles estivessem bem, que ele teria o consolo que desejava, se é que desejava, nos braços dela. Ineludível foram suas palavras, “mais uma despedida”, e despedida, neste caso, não parecia coisa boa. Além disso, sua face havia envelhecido muito, se contraído. É verdade que durante todo tempo, quando reparava em suas expressões, achava-o tácito, certo de seus pensamentos e atitudes, mas, ao lado desta impressão, havia um desconcerto de alguém que já não sabia qual era o seu lugar e talvez não alcançasse se havia de fato um. Era certo que não estava desesperado, ou o desespero era de tal forma contido ou embotara tanto a capacidade de reagir, que ele se conservava calmo. Mas agora, depois de ter se despedido da namorada, ele fora amolgado. Eu já não sabia em que pé estaria a história do nome, já não podia perceber onde isto teria ainda importância e já, em verdade, deixara de pensar a respeito, e tanto que, ao ouvir o que ele agora ia me dizendo, não me surpreendia por sua opção:— Não falei a ela sobre a confusão dos nomes.
— Por quê?
— Não achei que valesse a pena, a decisão dela estava tomada. Falar poderia surtir dois efeitos opostos, e nenhum deles desejáveis.
— Quais?
— Ela poderia se entristecer e dar mais razão às suas considerações, me fazer ficar ainda pior em relação a ela, confirmar-lhe minha sandice.
— E a outra?
— Ela poderia se apiedar do meu estado, que no mais não é para tanto, e aí, claro, seria muito pior, pois poderia pensar em voltar atrás por pena ou qualquer sentimento semelhante...
— O que ela disse? Antes de me responder, ele passou demoradamente as mãos sobre a face, lívido, parecia querer conter, não propriamente um choro, mas uma angústia que teria de sair dali por algum meio. Suspirou profundamente, chegou-se bem perto de mim para poder falar baixo:
— O mais importante é que disse não me amar mais...
— Assim, simplesmente?
— Não, disse outras coisas, provavelmente o que ela cria serem os motivos que a fizeram deixar de me amar.
— E você acredita que ela não o ame mais?
— Se a mulher da sua vida diz que não o ama mais, tem-se a obrigação de acreditar nela.
— Mas talvez não de aceitar...
— Talvez não, mas me parece demasiado tarde.
— E foi apenas assim que aconteceu?
— Não, ela disse outra coisa, e é possível que isso conte mais a respeito do caso.
— O que foi?
— Numa frase, falou que eu posso compreender e fazer coisas tão complicadas e não posso resolver e entender as mais simples, mas que estas justamente teriam feito ela ficar ao meu lado.
— E você concorda com isso?
— Não estou certo, mas tendo a acreditar... em realmente tenho dificuldade em me relacionar com o cotidiano, com as coisas naturais da vida...
— E o seu nome, lembrou-se?
— Não lembrei, até mesmo gostaria agora de acreditar que eu fosse o Julio Andochama.
— Seja!
— Não, isso não, ele e eu parece andamos a perder algumas coisas importantes, e não falo apenas por hoje, porque este carrossel vem girando há algum tempo... Ele se virou para fora e somente neste momento percebeu que chovia, sua expressão mudou novamente, me disse, tocando novamente meu ombro:
— Está chovendo!
— É, está, agora é que não poderemos sair, meu carro está longe.
— O meu também, mas não precisamos de carro, agora é que poderemos sair!
Seu olhar iluminou-se, não o suficiente para apagar a tristeza dura que se intensificara desde a conversa com a namorada, mas brilhou como se a chuva, ou os prismas que cada gotícula são, pudessem fracionar aquela confusão sólida permitindo descobrir, nas parcelas surgidas, alguma possibilidade. Pegou-me no braço com delicadeza, mas resoluto e disse:
— Vamos, vamos!
— Não vamos sair na chuva.
— Tem razão, é loucura para nós, eu vou só.
A forma como pronunciou as palavras me pareceu muito pueril, o que concorreu para que eu me irritasse um pouco, porque era um convencimento muito rasteiro me fazer acompanha-lo sabendo que temia deixa-lo só, naquele estado, estado, aliás, que nem eu mais sabia ao certo qual era. Não era o caso. Não condizia com a pessoa que ele costumava ser algum jogo deste nível, uma persuasão que antes poderia ser uma coação, independente de quem ele era, independente do nome que tivesse, o homem que estava parado diante de mim, convidando-me a ir para debaixo de uma tempestade num julho muito frio, não queria nada além de companhia, e agora, pelo alheamento repentino, nem disso necessitava mais. Soltou meu braço, oscilou a cabeça, olhou por alguns instantes para fora, esfregou o rosto com as palmas da mão, num esforço procurou sorrir, achegou-se perto e me deu um abraço demorado, mas mudo. Eu o abracei e preferi não dizer nada também, esperando que ele falasse. Ao cabo de uns quantos segundos ele me disse, sem me soltar:
— Obrigado.
— Não há o que agradecer, somos amigos.
— Passei este dia inteiro a confundi-lo nas minhas confusões, e mesmo você não sabendo mais quem eu sou, que louco que sou, esteve aí ao meu lado, obrigado...
— Não há necessidade de agradecimento, estaria do seu lado para o que precisasse.
— Eu sei, eu sei, mas agora eu vou caminhar um pouco.
— Está chovendo demais, vá para casa, tome um banho, durma um pouco, vai ver que tudo se aquieta.
— Eu vou caminhar, e tudo se aquieta também.
— Caminhar nesta chuva? Façamos o seguinte, eu levo você pra casa, depois tomo um táxi e venho buscar meu carro.
— Claro que não, eu vou só caminhar um pouco...
— Julio, José, ou o raio que seja seu nome, por favor, me escute uma vez ao menos nesta merda de dia confuso que tivemos, vá para casa, tome um banho, durma e amanhã volte a pensar em tudo novamente!
— Você foi um grande amigo, um companheiro excelente, gostaria de poder retribuir fazendo algo para agrada-lo, mas, não vou voltar pra casa agora, eu preciso caminhar.
— Na chuva?
— Na chuva.
Eu estava extenuado, não tinha mais forças para discutir, além disso, apesar de todas as palavras dele em meu proveito, me irritei bastante com o que considerava ser uma ingratidão não ouvir meus conselhos de ir embor. Demorei um instante com a cabeça baixa, esfreguei com os dedos os olhos e falei olhando para ele, com bastante calma, mas a voz carregada, para que ele percebesse a extensão do meu cansaço:
— Você tem trinta anos, não o posso impedir de fazer o que quiser fazer, mas é uma atitude infantil sair à noite no meio da chuva. Achei que este artifício pretensamente humilhante de chamá-lo infantil o pudesse dissuadir da caminhada noturna, mas ele deu de ombros e sorriu com carinho:
— Eu sei, meu amigo, eu sei... E tocou, condescendente, meu ombro esquerdo mais uma vez.
Apesar de ter sido sincero ao dizer que não o impediria de sair para a chuva, não pude deixar de ir atrás dele. Não tinha uma noção exata de qual era o meu medo naquele momento, e nem sei se o que me fez pegar o carro e segui-lo de perto tivesse que ver propriamente com receio, mas estava, entre outras coisas, curioso a ver no que ia dar tudo aquilo. Despedimo-nos mais uma vez, com um aperto de mão à saída do bar e ele saiu caminhando lentamente pela calçada, ainda se protegia da chuva por causa de alguns toldos dos estabelecimentos contíguos. Eu fui na direção oposta buscar meu carro, que afinal não estava tão longe quanto eu houvera dito, simplesmente com a intenção de retê-lo no bar. Deixei ele se afastar um pouco, não queria que me visse, embora sabendo não haver nenhum sério problema se acontecesse. Fui guiando lentamente, há cerca de uns trinta ou quarenta metros, a iluminação pública não era ruim, mas a mistura dela com a água e os vários letreiros dos comércios deixavam a atmosfera densa, esfumaçada, as cores se matizavam, se confundiam, e a água fazia as formas se movimentarem. A rua, a despeito de ser uma alameda paralela à marginal era movimentada, mas por ser também larga, permitia que eu pudesse conduzir o carro do lado direito, devagar, ouvindo de quando em quando umas buzinas. Ele caminhava agora mais célere, olhava para o seu lado esquerdo, de vez em quando olhava para o céu, mas imagino que os pingos o agrediam, pois durava pouco este menear de cabeça, conquanto fosse repetido sempre. À distância em que eu me encontrava não podia ver seu rosto, até porque estava atrás dele, mas tão pouco podia perceber algum movimento distinto que aludisse a alguma intenção, fosse ela qual fosse. Era uma pessoa caminhando rápido pela chuva, mas, nitidamente, sem a pressa de chegar num ponto em que evitasse se molhar. Numa esquina, parou. Como não houvesse nenhum carro, entendi que ele tinha me visto, e simultaneamente ao meu entendimento, virou-se e acenou com o braço. Levei o carro até junto dele, abaixei o vidro, já que ele tencionava me dizer alguma coisa. A chuva estava amainando, mas ainda era forte, ele tirou o excesso de água do rosto com a manga da camisa, mas ela estava tão encharcada que a ação resultou inútil, e me disse:
— Meu bom amigo, até quando pretende me seguir?
— Não sei, não sei mesmo. Se você tivesse algum juízo, ou alguma consideração por mim, entraria neste carro e me impediria de andar por aí a dez por hora com essa chuva!
— Eu não vou entrar, quero mesmo caminhar, não se importune comigo, já fez tudo que podia fazer, parece estar cansado, vá para casa.
— Estou cansado, estamos cansados, vamos para casa tomar um banho e dormir, tente esquecer tudo isso um pouco.
Ele fez o mesmo movimento para tirar o excesso de água da face, franziu a testa e esticou os lábios. Apesar de estar a meio metro de mim, por conta agora da iluminação prejudicada por uma árvore e a água que era muita, não pude perceber se ele havia sorrido ironicamente ou se apenas tinha contorcido a expressão numa atitude normal de quem tem a cara molhada, então insisti com pesar:
— Esquece tudo isso, vamos para casa! Mas ele respondeu-me com gravidade:
— Quero esquecer tudo, a dor de ser homem, este anseio infinito e vão de possuir o que me possuí...adeus.
A frase era bonita, de efeito, algum tempo depois descobri ser de um poeta famoso, mas o que me chamou mais atenção não foi seu sentido, sua poesia, mas sim o término, um adeus convicto que precedeu uma atitude adolescente mas imperativa, que foi apressar o passo, quase a correr e seguir pela esquina em direção à marginal. Não soube o que fazer então. Segui-lo de carro, pela marginal seria impossível, não poderia continuar andando na velocidade em que estava. Correr atrás dele a pé era um despautério para o qual não estava inclinado. Deixa-lo ir, simplesmente, eu também não podia, depois de tudo quanto havíamos passado. Ora, diante de três possibilidades e não dispondo de tempo para pensar em outras, fiz o que menos queria fazer. Dei ré com o automóvel e o estacionei há alguns metros da esquina, praguejando, desci do carro e corri em direção a ele. A chuva estava muito fria, os pingos eram grossos, a impressão que eu tinha de que ela estava amainando se desfez assim que senti seu primeiro contato. Passei pelo quarteirão que ligava a alameda à marginal, o trânsito era pesado, e não conseguia encontra-lo. Novamente uma dualidade de sentimentos em mim, “se não o encontro, tanto melhor, vou embora pra casa tomar um banho quente, mas, se não o encontro, o que poderá acontecer”, pensei isso e segui adiante, caminhando do lado direito, olhando para todos os lados à procura dele. Finalmente o vi, estava encostado numa placa de trânsito, a cabeça sob o antebraço, corri até ele, era difícil falar no meio da tempestade:
— Por favor, isso já foi longe demais, vamos embora!
— Sabe como eu me sinto? Como se eu fosse feito de plástico e os meus movimentos estivessem endurecendo...
— Está muito frio, você está estressado.
— É como se eu estivesse me desfazendo, esboroando, se como o que ainda resta de mim, estivesse se partindo...
— Você está deprimido, teve um dia difícil, vamos para casa!
Eu disse isso e o puxei pelo braço, queria demonstrar compreensão, mas ao mesmo tempo pretendia ser enérgico fazendo-o perceber que a situação havia chegado ao limite, mas ele não me ouvia, estava aplacado, e não me olhou em nenhum momento, antes, parecia que era um palrar que ninguém atinava, ainda assim eu insisti:
-- Vamos embora? Ele me respondeu com angústia:
— Eu me sinto falso, não posso mais, não sei mais quem sou...
— Amanhã, meu amigo, amanhã as coisas vão melhorar, vamos embora. Não adiantava, ele se desvencilhou de mim e caminhou a passos acelerados, embora estivesse muito oprimido, falava sem atropelo, com amargura e tristeza. Eu corri e o segurei pelos braços novamente, decidira agora o levar à força, e disse:
— Vamos embora, já chega.
— Já chega... não é verdade que ela fique mais linda triste, sorrindo, ela é incrível...
Não pude responder, porque ele se soltou com violência de mim e correu para a marginal, atravessando-a de uma vez. Do outro lado, ladeando o parapeito foi caminhando e olhando para o rio. Eu gritava para que voltasse, e não conseguia como ele, com a mesma destreza, atravessar a avenida muito movimentada. Ele voltou-se para mim, acenou com o braço e saltou a proteção de metal. Gritei alguma coisa que não me lembro e corri para o meio da rua sem atinar no que fazia, atravessando-a como ele o fizera um pouco antes. Cheguei do outro lado e já não podia mais vê-lo, o rio estava revolto, muito escuro como sempre, imundo das sujidades da urbe. Saquei o celular do bolso, completamente molhado, para pedir socorro, gritei para o alto uma raiva e continuei a acompanhar o caminho do rio, uma enxurrada parda e inexorável. Sentei-me no chão, esfreguei o rosto com as mãos, olhei para o relógio, faltavam alguns minutos para a meia-noite quando a chuva passou a cair ainda mais forte.