segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Dois Meninos

(este texto foi originalmente publicado em 09 de maio de 2007).


Terminei de ler Bom dia camaradas, do escritor angolano Ondjaki. Imediatamente me surge à mente o livro de outro africano, Uzodinma Iweala, nigeriano, autor de Feras de lugar nenhum, este lido no final de 2006. Ambos são jovens escritores, na casa dos vinte anos e pouco, e esses dois livros suas estréias no romance. A pouca diferença entre eles é que Ondjaki escreve em português e estudou em Luanda, ao passo que Uzodinma Iweala graduou-se por Harvard e usa a língua inglesa para contar sua história.
Meninos
Os livros são narrados em primeira pessoa e ambos os protagonistas-narradores são meninos. Em Bom dia camaradas, esse menino, embora não nomeado, aparenta ser o próprio Ondjaki, pelas relações e manutenção dos nomes dos amigos de escola (claro, estamos falando de ficção). O garoto luandense vive numa família de classe média alta, estuda num bom colégio, tem facilidades domésticas muito acima do que se supõe fossem o normal da maioria da população angolana nos idos de 1980, data imaginável do romance. O narrador de Bom dia camaradas é um garoto, portanto, que tem uma percepção bastante aguda de seu ambiente: tem aulas com professores cubanos, uma tia que, morando em Portugal, traz-lhe notícias (e doces) dos antigos colonizadores, vai à praia de carro e pode estar nas ruas quando o “camarada Presidente” atravessa em parada militar. Aliás, é desse caráter sensível do narrador que decorre uma qualidade e uma dificuldade do livro. Ondjaki aposta no coloquial (apesar de manter o padrão formal da língua, tenta desviar-se com certo zelo dele) da fala infantilmente poética de seu menino para criar imagens vívidas, do ambiente familiar, escolar e mesmo urbano de sua vida. Também não re-descobre a pólvora: usando adjetivos e ações humanas em objetos inanimados ou plantas e bichos, aproxima o ambiente cotidiano da sensação lúdica da criança. Disso decorrem alguns problemas. Fica a impressão de que o autor, usando uma boa metáfora, acaba por gostar tanto dela que a repete muitas vezes, se não quando a disfarça em outras palavras, mas guardando o mesmo sentido. Num certo momento, diz o menino que os “abacateiros se espreguiçam”. Da metade da página 79 à metade da página 80, vamos ver a repetição cinco vezes da expressão espreguiçar, além de uma quantas outras dizendo o mesmo, como estremecer. Esquece-se, o Ondjaki da máxima que diz que a repetição faz perder o efeito dramático. Ao contrário do que diz Luiz Ruffato na apresentação do livro, esses “exageros” acabam fazendo com que haja um tom artificial, por vezes forçado na voz do narrador, que afinal é um menino de não mais que doze anos. Agu é o narrador de Feras de lugar nenhum. Não tem esse menino mais que dez anos não obstante esteja inserido num ambiente violentíssimo. Agu está no meio de uma guerra civil, arrancado à sua família para se tornar um soldado: vive, portanto, entre vilarejos destruídos e a floresta opressora e escura, sob as ordens de um cruel “Comandante”. Seus companheiros são soldados esfarrapados e famintos, e o único menino de sua idade é Strika, com quem vive uma amizade superficial. A linguagem que Uzodinma faz dar voz a Agu é tensa, infantil, solapada, às vezes reproduzida dos adultos. Essa infantilidade conturbada é condutora da tensão que varia entre o monólogo pessoal do menino com as pouquíssimas palavras que dirige a outras pessoas, exceto por Strika, que, aliás, em bela imagem do autor nigeriano, tem problemas de fala (ele não fala). Agu está no meio de lugar nenhum: a guerra pode ser na Nigéria, mas o cenário dá cabo de muitos países africanos, e ainda mais muitas civilizações que permitem crianças com um fuzil na mão. Agu luta consigo mesmo para entender o seu ambiente, procurando equilibrar as idealizações da vida militar com a realidade violenta e crua que se apresenta à sua frente. Os parágrafos são curtos, contundentes, secos. O menino Agu conta a sua história aos solavancos dos buracos e dos obstáculos do caminho da guerrilha. Vale a pena aqui ressaltar, como observou Wilson Bueno que a tradução de Christina Baum é excelente, “marcada por um português acossado, quase aturdido, fiel ao inglês nigeriano do autor”.



(na foto capa de "Bom dia camaradas". Ondjaki. Editora Agir, por volta de 40 reais)


A guerra
Que os dois livros sejam permeados pela guerra, não chega a surpreender. Em Bom dia camaradas a guerra é um pano de fundo presente na vida cotidiana dos jovens, e até por isso internalizada. O narrador aqui não vivencia diretamente os efeitos do batalha, sua condição social permite que ele sinta o bafejar do estado belicoso do país, sem, contudo, que isso se torne um fardo maior que as pequenas dissensões familiares e ou escolares, a exemplo. A guerra aparece mais como substrato do que fora anteriormente, como se preparasse a nova Angola para uma vida de paz, entre “camaradas”. Chama atenção, inclusive, que eventos comuns a juventudes em qualquer latitude e longitude, quais sejam as “lendas urbanas” aqui surjam como motivadoras de medos e confusões muito maiores do que alguma preparação para um conflito que afinal, durante o romance, não se deflagra. Com feridas mais ou menos normais ali e adiante, a narrativa caminha num mar habitualmente calmo.
Já em Feras de lugar nenhum a guerra é explícita, e é ela mesma, personagem principal. Agu vive a guerra e só tem a ela e seus frutos para misturar com sua infância que vai sendo perdida. O menino não compreende a guerra, não compreende seus motivos e sua barbárie. Mas, vai aprendendo que, fazendo parte do jogo, precisa jogar para se manter vivo. Agu quer se manter vivo, e nessa tentativa, procura encontrar justificativas para a violência que presencia e agora promove: ele mata porque é obrigado a matar, senão o inimigo o mataria a ele. Embora não distinga no inimigo alguém muito diferente de si, o narrador se felicita pelo cumprimento da tarefa que enfim foi investida para ele, e matar se torna “natural” em seu caminho. Agu anda o tempo todo atormentado pela guerra, e quer vencê-la pelo motivo mais simples e profundo que é continuar vivo. O menino, em meio ao seu desespero e às vezes sua resignação, diz que também tem uma mãe, irmãs e que pretende um dia reencontra-las, para viver num tempo já sem a guerra.
Ritmo
Ondjaki se propõe, e consegue, a escrever uma linear história de vida privada e meninices num determinado tempo e espaço. Não resulta, portanto, da leitura do romance nenhum sobressalto ou tensão maior do que seria uma prova oral com o diretor geral da escola ou uma topada de dedão com um muro de pedras (incipiente demais para ser levada em conta é um momento de morte de um “membro” da família a quem o menino é bastante ligado). O menino-narrador quer nos contar do seu dia-a-dia de abacateiro, “gasosas”, amigos e brincadeiras, das rotinas familiares e da saudade que principia quando chega o final do ano letivo. Sentimos tudo isso junto com ele, embora muitas vezes também com ele bocejemos um pouco.
Como acima dito, a guerra de Feras de lugar nenhum pode se passar em muitos territórios como talvez a própria Nigéria. Dessa indefinição palpável de espaço, decorre uma indefinição temporal, que embora não comprometa a também linear narrativa do romance, confere a ele um ritmo acelerado, quase frenético. Agu luta, mata, quase morre, pensa na morte, na vida, nas feridas que coleciona pelo caminho, no corpo dolorido do último combate, na escola precária que frequentava antes da guerra, e os tiros continuam a zunir em sua orelha enquanto se lembra da irmã que lhe contava histórias, e decepa um inimigo a golpes de facão. A atmosfera de Uzodnima Iwaeala tem de ser nebulosa, virulenta, pois ele quer falar de violência e estupidez, mas escolhe o seu menino para o fazer.
Dois meninos
Ondjaki tem menos de trinta anos e Uzodnima Iweala, menos de vinte e seis. Estrearam abordando temas complicados por constantemente reiterados. Não se saíram mal na empresa, e me parece que ainda têm muita lenha para queimar (ou petróleo, ou gás natural). São dois meninos. Arrisco que o nigeriano poderá vir a se tornar homem antes do angolano, porquanto seu livro comece e termine bastante melhor que o do "companheiro de armas".

(Na foto, capa de "Feras de lugar nenhum". Uzodnima Iweala. Nova Fronteira, por volta de 30 reais)