sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Pequeno ensaio sobre o suicídio

“A condição humana é boa porque ninguém é infeliz senão por sua própria culpa. A vida te apraz? Viva. Não te apraz? Tu podes voltar para de onde vieste.”
Sêneca, Carta LXX
“Seu José, mestre carpina, que diferença faria se em vez de continuar tomasse a melhor saída: a de saltar, numa noite, fora da ponte e da vida?
João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina

"Se te queres matar, por que não te queres matar?Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida, Se ousasse matar-me, também me mataria...(...)"
Álvaro de Campos

Não há nada mais normal do que escutar o ‘Adágio’ do Albinone ou ‘La Mamma Morta’ do Umberto Giordano (ainda que o gostinho de se saber que é ária do Andrea Chenier cutuque aquela velha magoazinha de que o Manuel Bandeira e o Dostoievski não servem para nada). Como a tristeza é somente de quem ela é, não dá para estranhar que a música escolhida seja o adagio cantabile da Sonata número 8 em dó menor do Beethoven. Asseverou-me ele ser essa a composição que o fazia saber sofrer, satisfeito de si dar o desespero, então, raios, por que não deveríamos nós acreditar? Eu acreditei nele quando me disse. Aquela tecla que faz a faixa do cd repetir anel de moebius seguindo em frente a topologia serpente que come o próprio rabo e germina de si mesma cento e cinqüenta mil vezes sonata número 8 em dó menor do beethoven duzentas e três mil vezes la mamma morta que o giordano inventou.
Eu pude imagina-lo no quarto escuro, travesseiros debaixo do peito, sustendo o coração que sangrando lasso só mesmo na garganta poderiam estar uns anéis, nó górdio porventura. Ele me disse que não era mais homem e eu fui obrigado a acredita-lo, porque ele me disse que não era mais gente e eu tive de consola-lo nas couraças, ajuda-lo a virar-se de bruços para poder descair debaixo do canapé. Apesar de o verem, assim me disse, compreendiam o infausto sem na verdade o enxergarem. Se quisesse ter saído do quarto, voltado à firma ou simplesmente pegado o trem, o teria feito sem festinar, pois já ninguém botava os olhos nele. Eu acreditei nisso também, pois percebi que não lhe teria sido difícil pular o costado, apesar das muitas e finas perninhas.
Foi quando ele me falou do Álvaro de Campos e que ele não tinha par nisto tudo neste mundo (assim proclamou: “eu não sou homem e o Álvaro nunca existiu”). Ele me falou que não tinha par nisto tudo neste mundo, evidente que eu acreditei. Sempre soube e talvez nós todos soubéssemos que havia a dor na alma do poeta que se cantava exilado. Estrangeiro aqui como em toda parte, casual na vida como na alma, fantasma a errar em salas de recordações aos ruídos dos ratos e das tábuas que rangem no castelo maldito de ter que viver.
Eu só pude entender que ele lia e ouvia isso tudo porque estava um tanto quanto cansado, e que embora lhe tivessem dito alguma coisa sobre neurônios e serotoninas, dificuldades de uma coisa de recaptação, ele sabia, e eu soube por ele, que esses nomes são tão iguais quanto as dores reais ou imaginárias que poderia sentir, porque tudo, poesia ou neurotransmissor faziam parte daquela verdade irrefutável de que nada faz muito sentido se olhado de bem perto. E se olhado de mais perto ainda, o resto é silêncio. Não se cansou de me repetir, personagem de si mesmo, que se não sabemos nada daquilo que aqui deixamos, que importa deixá-lo antes? Seja o que for. Nunca me chamou de Yorick, nunca fui seu Horácio mas talvez me visse e visse a si em caveira, em crânio escalpelado.
Senecamente me contou, trazendo enfim a fluidez à pauta, que não se podia perder muito de um líquido que cai gota a gota, e quando me disse finalmente que não valia a pena descer com o rio, que o rio cortava, entendi que queria mesmo saltar fora da ponte e da vida. Porque ele estava prestes a compreender, para que pudesse enfim me ensinar, que essas palavras e músicas são o remédio diário de quem não se pode curar, ou não se quer curar, demasiado nós sabemos que dá tudo no mesmo. E porque eu sei que não tem ninguém de olho nele, nem eu estou, que agora vim aqui escrever e não pude ficar mesmo de olho nele, é por isso que eu alcancei que não adianta avisar, pois a vida vem de levada e somente se pode encontrar quem teve coragem de se perder, mas que o risco disso é não tornar a achar o caminho. E ao se cansar das pátrias estrangeiras se queira mesmo e mesmo saltar fora da ponte, entrando na noite como um rastro de barco se perde na água que deixa de se ouvir.
(este texto foi originalmente publicado em 10 de agosto de 2007)