quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Outro

“Conhece-te a ti mesmo”
Sócrates

Quando acabou de passar pela porta giratória, detectora de celulares e molho-de-chaves, deu de cara consigo mesmo refletido na enorme janela de vidro na parte interna do banco. Nesse momento exato deixou de querer ser ele. De tal forma surgiu o sentimento, forte, coerente, que volveu para trás esquecido completamente do que viera fazer. Saiu pela rua com tranqüilidade e convicção, sabendo que não queria mais ser ele. Se poderá inferir, em princípio, que gostaria de trocar a aparência física, mudar o cabelo, a cor, puxar daqui, esticar dali, coisas que um bom cirurgião resolveria. Mas não era isso, desejava deixar de ser quem ele era por inteiro, de corpo e, vulgarmente falando, de alma. Tinha de ser outra pessoa, fundamentalmente, outro ser. Lembrou-se de Gregor e lhe pareceu até satisfatória a figura de um enorme inseto, justo, natural, com tanto que não fosse mais ele. Estava pelos trinta e tantos anos e possuía um espírito pragmático, metódico até. Vivia sozinho. Tinha amigos, uma vida social, uma amante, cuidava de sua pequena empresa de distribuir bebidas e se dava muito bem no negócio. O que não tinha era mais vontade de ser quem era, muito embora não existisse nenhum motivo especial para desgostar de sua pessoa ou de sua vida. Aliás, na verdade, não desgostava de si, não tinha sensações de angústia para consigo mesmo, apenas queria trocar de ser para ir enxergar com outros olhos e com outra alma o mundo.
Assim que entrou no carro, deixado o banco e os afazeres para trás, principiou formular como levaria a cabo seu intento e, como dito, prático por natureza, pôs-se a deduzir de que maneira começaria a transmudar-se em outra pessoa, agora que definitivamente não iria mais ser ele. De punho do aparelho de ondevocêestá ligou para o escritório de sua firma e disse ao empregado que não voltaria mais para trabalhar, ao que aquele respondeu tudo bem, sem problema, dava-se conta do que haveria para fazer. Pobre do moço, não entendeu que seu patrão lhe estava a dizer é que jamais tornaria ao trabalho, ao menos ele, ele mesmo. Desligado o telefone celular, avisado o escritório, precisava agir com rapidez. Tinha uma sensação gostosa pelo corpo — esse corpo que não queria mais — e também um sentimento ligeiro na cabeça — essa cabeça que não queria mais — uma euforia pelo empreendimento realmente vultuoso em que se estava metendo. Dirigiu rapidamente até seu prédio e não foi sem um pouco de ironia que respondeu baixinho ao porteiro que o chamara pelo nome dando as boas tardes seu Lisandro, “Por enquanto, só por enquanto, verás daqui para um pouco”, e entrou na garagem.
Visto assim parecerá desvario de repente abandonar-se negócios e compromissos para querer tornar-se outro, mesmo que querer tornar-se outro seja tão nobre empresa, supondo se queira tornar numa pessoa melhor do que se é. Mas vejam este aqui, plácido, decidido, sem arrancar cabelos ou deitar fora as roupas, quem o poderá chamar louco. Quer transfigurar-se noutro e não faz juízo de valores, não quer ser melhor do que é, pior, menos, aliás, está agora mesmo se questionando o que quererá ser, já tomada a decisão de não mais ser o que agora é. O escopo não perde a nobreza, há de se concordar e muita gente por aí diz ser grande demonstração de idoneidade e coragem admitir desejos de não gostar de quem se é, de tentar mudar, de alterar posições e atitudes, nos ditos do povo, “Hoje eu sou um novo homem, nasci de novo, a partir de agora sou outro”, mas nesses casos, mormente se se repara na entonação das frases, há implícito o conceito de revigoramento, de um melhor estado em relação ao anterior. Lisandro não pensa assim, senão, deixemos ele falar: “O que serei, o que me tornarei, quem?”, entretido nessa importante decisão, preparou um copo, este sim revigorante de uísque e foi bebe-lo descaindo-se no sofá. Desde que tomara a decisão era o primeiro momento em que não se via atribulado, agitado para dar fim à sua intenção, pois agora tinha de decidir em quem se tornaria ao deixar de ser ele.
Permitiu ao pensamento oscilar por entre rostos, nomes, biografias, multidões e parou no Dalai Lama. “Interessante figura, grande homem, visões transcendentais, paradigma de um país e de uma nação, sem cabelos, aquelas roupas umas por cima das outras, sempre as mesmas, deve ser quente, e eu gosto de me mexer bastante, quem sabe Gandhi, esse sim, paz, tudo pela paz, só a paz, indiano pode comer carne de vaca, eu adoro churrasco”, o Dalai e o Gandhi ficaram para trás exortados num belo suspiro resplandecente enquanto se desfaziam em brumas de pensamento. “Elvis Presley seria bastante complicado mudar-me nele”, embora um sorriso tenha assomado em sua face ao pensar nas quantas pessoas não estariam a se deliciar vendo o rei novamente, “Eu não disse, sempre disseram, Elvis não morreu!”, Kant, Guimarães Rosa, Galileu, seu Zé do bar da esquina, Osama bin Laden, ver a vida pela ótica de um terrorista era no mínimo inusitado, tantas eram as possibilidades, tantas as pessoas em que se poderia mudar, e foi assim, pensando e repensando que adormeceu no sofá com a imagem de um ser sem rosto onde teria de passar a viver. Sonhou. Estava na pele do Michael Jordan jogando as bolas de basquete à cesta e fazendo mais de mil pontos numa única partida, se não foi num único arremesso, e quando saía da quadra já não era mais o alto jogador americano ascético, mas sim o Antônio Carlos Magalhães. Tinha uma barriga enorme, uma soberba enorme e estava envolto numa roda interminável de correligionários, baianas e acarajés enquanto ia distribuindo mandos e desmandos.
Acordou uma hora depois com o olhar perdido, lembrava-se com alguma inconstância do sonho em que se misturavam a cara lisa e negra do jogador, parecendo ébano, e também a face do senador, de madeira por certo, ainda que de menor valor, e uns acarajés lançados como fossem bolas de basquete ao cesto. Levantou-se e foi ao banheiro lavar o rosto, ato que serviu duplamente, uma vez para acordar e serenar as idéias confusas, outra vez para perceber que ainda era quem era, Lisandro, e o não queria mais ser. Mas um terceiro efeito surgiu derradeiro, disposto a encerrar deveras as dúvidas e confusões acerca de quem ele deveria se transformar. Olhando com seus olhos mesmos sua face, e pensando com seu cérebro os seus pensamentos, verificou de si para consigo que não importava em quem viesse a transmudar-se, o que de fato contaria era não ser mais Lisandro, uma vez que se o intento lograsse êxito total, não deveria lembrar-se de que um dia fora quem hoje é. Assomou-lhe então pelo corpo o sentimento de euforia, daqueles que nos impelem imediatamente a tomar atitudes, a formular proposta de ação, motivo pelo qual saiu depressa em direção ao quartinho onde guardava umas ferramentas e outras tralhas a procurar algo que pudesse auxilia-lo em sua empresa de transfiguração, “Um aparelho elétrico me servirá bem, sempre ouvi dizer que a eletricidade, assim como o calor, demovem as coisas de seus estados naturais, se pudesse me esquentar, ou quem sabe me eletrizar...”, juntou lá uma furadeira, uma chave-de-fenda elétrica, umas lixas de madeira, além de um dínamo que não sabia exatamente de onde viera nem para que serviria, e meio atrapalhado levou tudo à mesa grande da sala de jantar. Antes de começar a analisar as peças, ainda foi à cozinha buscar o liquidificador e um recipiente onde caberia cerca de um litro de água, pousando estes últimos objetos junto aos demais.
Nunca possuiu este Lisandro lá grandes capacidades inventivas ou construtivas, e se agora estava lepidamente montando e desmontando umas peças, mexendo com certa desenvoltura numas máquinas, não era senão por força do desejo que desde a amanhã o assaltara e fazia com que não quisesse mais ser Lisandro, “Para mudar de ser não deve ser complicado, se eu pudesse ligar esse liquidificador na furadeira elétrica...”. Usando fitas adesivas, garfos e palitos de comida chinesa, montou Lisandro uma engenhoca. A furadeira ficava presa ao utensílio que faz sucos e adjacências na parte lateral, próxima à abertura maior do copo do aparelho, de maneira que ambos ligados em consonância não produziam absolutamente nenhum efeito. Então não era por aí. Até porque não sabia também muito de medicinas e furar-se a si próprio nas têmporas talvez não fosse idéia das melhores, ir ficar logo no primeiro instante o novo ser com um buraco na cabeça. Sentou-se e decidiu que precisava pensar mais um pouco, “Que eu quero? Trocar de ser implica em trocar de aparência também? Creio que não, o que desejo não é deixar de ter a face que tenho, mas sim olhar com estes olhos para um filme e ver outra coisa, tocar um cabelo e perceber coisas que hoje não percebo, se mais ou menos em relação ao que hoje sinto, não importa, mas diferente”. Por essa linha de pensamento chegou à conclusão que nenhuma empreitada que lograsse atentar contra o seu corpo deveria surtir efeito. Furar-se, escalpelar-se, trocar perna por braço, ou inverter a posição dos olhos, metendo o da esquerda na órbita da direita, enfim, isso tudo não daria resultado.
Quem irá dizer que nunca desejou, nem que fosse por uns instantes, não ser mais quem é, tornar-se o milionário, o jogador famoso, o ator que sai com todas as belas moças, as belas moças, ou mesmo uma borboleta, os mais sensíveis, experimentar o mel, provar da doçura da flor, quem ao menos dirá que um dia numa situação complicada não desejou ser, se não outro, ao menos invisível, isso para não mencionar que nos tempos de menino a delícia era imaginar-se mosquinha a adejar pelo sono noturno e despido da prima que fora dormir em casa, ou da amiga da irmã mais velha que se refrescava em pêlo no quarto de hóspedes. Concedamos a Lisandro que não queira mais ser ele, oras, não quer, é um ponto, um direito, deixemos que tente a transmutação. Estava agora convicto de que o caminho deveria ser o da eletricidade ou o da térmica. Meteu-se então, no arroubo da vontade, a descascar os fios do liquidificador para tentar alguma espécie de choque elétrico e, ao mesmo tempo, pôs-se a encher a jarra de água levando-a ao forno de microondas para o aquecimento. Para relaxar, preparou mais uma dose do revigorante uísque e deixou-o ao lado do aparelho de telefone sem fio, que também estava em cima da mesa de cirurgia da sala de jantar, numa das extremidades. Quando o microondas apitou o fim dos dez minutos suficientes para que o recipiente com mais ou menos um litro de água borbulhasse, Lisandro enfiou na tomada o fio do liquidificador segurando-o pelas pontas, próximo, mas ainda não tocando a parte desencapada. A boa intenção era derramar a jarra d’água na cabeça no mesmo instante em que tocasse nas pontas dos fios, para que acontecesse sabe-se lá o que, além do choque e da queimadura no coro cabeludo e na face. Preparou-se, respirou fundo, “Vamos Lisandro, conte, três, dois, um” Trim-trim-trim, trim-trim-trim, “Diabos de telefone, que hora para tocar!...”. Como ainda era Lisandro, só para ele poderia ser a chamada, e num impulso natural que se tem quando é quem se é, correu para a extremidade da mesa onde estava o telefone. Na pressa, escorregou num punhado de água que havia escorrido da jarra e, atabalhoadamente, tentou segurar-se na borda da mesa. Felizmente para si, puxou a toalha que, com o brusco movimento, jogou para cima o telefone e também o copo de uísque que nem sequer havia sido provado. Os três caíram, como é de costume das coisas que vivem na gravidade, sendo Lisandro o primeiro a estatelar-se no chão, seguido imediatamente pelo gelo que lhe tocou a testa antes, para somente depois o líquido gelado e o copo chocarem-se também. O copo fez um rasgo na fronte, onde logo após colidiu o telefone que, sabe-se lá como, com a pancada, ligou. Ligeiramente manchado de sangue, o aparelho escorregou para ao pé do ouvido de Lisandro que, desmaiado, não pôde ouvir os insistentes apelos de uma mulher do outro lado da linha que havia discado o número por engano, “Alô, alô, tem alguém?”
Quando o homem acordou, cerca de dois milésimos de segundos depois do acidente, ou talvez coisa de uns cinco dias, percebeu que estava com uma leve dor de cabeça, nada de muito grave, além de uma certa desorientação ao olhar o espaço em sua volta. Calmamente, recobrando forças, levantou-se às apalpadelas pela sala desconhecida — que parecia ser de jantar. Apesar da dorida cabeça e da pouca percepção do ambiente em redor, estava calmo, sem medo, nem angústia, apenas com um sentimento comichão no peito e na mente, um sentimento crescente, que embora novo, era antigo. Externou então a si próprio quando percebeu poder e saber articular palavras, dizendo suavemente no cômodo silente: “Que diabos, homem, bem que podias ser outro, mais orientado e sem essa dorzinha de cabeça! Vamos, mexa-se, antes precisas saber quem és para que possas mudar o que és”.
(este texto foi originalmente publicado em 23 de abril de 2007)

1 Pitacos:

Juliano Machado disse...

Veridiana, fora a questão dos celulares que o Kafka só não inventou algo muito melhor porque não existia o tal aparelho, o bom mesmo é a Metamorfose.

Ainda bem, sob alguma aspecto, que não tenha lido! Ao menos não me sinto tão mal de ficar arquivando essas porcarias no endereço novo...rs

beijo.