terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Metáfora da Despedida Através da Escada

“Pois você sumiu no mundo sem me avisar
E agora eu era um louco a perguntar
O que é que a vida vai fazer de mim”
Chico Buarque in “João e Maria”


Fora sozinho e somente quando as luzes se acenderam ao final da récita foi que a vi, já no limiar do primeiro degrau, oscilando a fronte, passando as mãos no cabelo, satisfeita e lenta. Antes de principiar a subida virou-se uma vez para trás observando a turba e então me viu. Cortou o encontro visual com um aceno vertical de cabeça e precipitou-se na escadaria enorme. Fui ganhando espaço entre a multidão, Com licença, com licença, e quando consegui chegar ao primeiro degrau, ela devia estar mais ou menos no décimo, distância que se não era desprezível, não encerrava minha esperança. Falei-lhe, ainda assim pouco aumentando a intensidade da voz, Ei, espere um instante, poderíamos conversar, ela não se virou, não deixou de subir, mas respondeu, Sim, pode dizer, mesmo próximo, vacilei, Gostou do espetáculo, ela não respondeu, continuou, continuei, balbuciei, Achei incrível, há tempos não assistia a um assim. Silêncio. Passadas mais rápidas. Eu me tornara lento enquanto falava, percebi, com atraso, que não havia tempo para subterfúgios e insisti, Podemos conversar, espera um pouco, não se virou, apertou ainda o ritmo do movimento, e respondeu já com a voz se diluindo, Estou com pressa, preciso pegar o carro. A resposta era banal, todos precisávamos pegar o carro. Talvez fosse a hora de desistir, a distância havia crescido e aumentava, já que ela era lépida e jovem, e eu cansado e velho, não a poderia acompanhar. Não fiz caso, já quase a gritar, disse, Faz tanto tempo que não a vejo, e se conversássemos um pouco, numa reação que não compreendi bem, ela levantou o braço esquerdo e o abaixou em fração de segundo e depois disse, torcendo o rosto paralelo ao ombro direito, na intenção clara de que a voz lhe saísse mais forte, mais contundente, Eu realmente preciso ir.
A escadaria era imensa, não a poderia vencer de um fôlego só na velocidade em que eu estava, mas cri que houvesse um último sopro e continuei no encalço, que de encalço fora só uma figura, pois ela se afastava de mim, muito mais solta, como que adejando os degraus luzidios do mármore. Afrouxei a gravata, estava quase vencido, gritei para cima ainda contendo um desespero misturado num cansaço arfante, Espera, por favor, me deixa falar alguma coisa. Então ela parou. Lentamente mexeu nos cabelos, e olhando em princípio para o chão e depois, ainda calma, mirando em mim os lindos olhos verdes, disse, absolutamente ciente de que mesmo demorando-se alguns segundos ali, eu não a poderia alcançar, Olha, eu realmente preciso ir embora, não acho que tenha nada mais a ser dito, adeus. Enquanto ela falava, também estivera parado, ganhando fôlego inconscientemente, mas não podia precisar as palavras que se haviam reduzido ao adeus de uns olhos brilhantes, de uma testa que se franziu para cima num lamento de consternação, quem sabe se compaixão, porque eu não queria e não poderia suportar que fosse pena.
Tornou a ficar lépida, chacoalhou a minúscula bolsa negra pela alça e o vestido longo, liso, sóbrio, também negro atrasou-se em relação ao movimento das pernas, precipitou-se exagerado para o lado da rotação do corpo marcando ainda mais a silhueta esguia e insinuante, deixando ver por conta disso um pouco mais das pernas claras e imaculadas. O cabelo loiro, não houvesse sido cortado ao ombro, teria feito o mesmo movimento, e embora eu pudesse adivinhar de soslaio todas as danças do vestido, foram elas como que substituições das danças do cabelo que, este sim, por minha culpa, não estava mais ali. Festinando chegou ao cimo da escada, e tive a impressão de que uma vez mais olhou para baixo, mas posso ter me enganado, a luz em cima era frouxa, a distância já muito maior do que a minha competência em enxerga-la, e então desapareceu no escuro. Continuei subindo, agora sem qualquer visão, apenas buscando a boca do lobo que iria me tragar, o coruto da escada por onde poderia me lançar ao fim.
Chovia — sempre chove — e o pátio estava vazio de pessoas, repleto de coisas, nenhum traste. Cheguei em tempo de ver um carro saindo, o carro que eu conhecia, as luzes fugidias se afastando como uma lanterna na popa, e eu o mar sulcado, o rastro de barco que se perde na água que deixa de se ouvir. Não havia um precipício, então me sentei no último degrau — ou seria o primeiro. Por isto pensei em Bacon, depois tentei confortar o espírito lembrando felicitar-me, ridiculamente, de ainda vê-la assistindo a uma récita, tentei crer que o mundo não girasse em torno a mim, débil, ainda tentei acreditar que talvez tivesse mesmo pressa, mas o poema de Bandeira me assaltou, o verso fatídico, Adeus! amor, tu fazes bem, a mocidade quer a mocidade. Era inútil me enganar. Levantei-me, fui andar ao largo, passos muito quietos para sorver a bátega que aumentara. Eu estava ali, aquela cidade não era a minha, e sozinho pensava em voltar, mas já não havia para onde voltar. Menino ingênuo chapinhei numa poça d´água como fosse um pedido ritual, desejando que ela voltasse. Ela não voltou. Eu ainda esperei por o tempo em que as primeiras pessoas assomaram ao pátio, e parti para lugar algum, sem olvidar o tamanho da escada que ainda precisaria descer.
(este texto foi originalmente publicado em 26 de abril de 2007)