segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Fraseologia da coincidência

(este texto foi originalmente publicado em 28 de maio de 2007)
Coincidências são apenas coincidências. Mas nem por isso elas deixam de ser divertidas, se se baixa sobre elas um olhar apenas observador, não propriamente comovido, não propriamente místico. Anotava na agenda a feitura de uma proposta para o dia 28 de maio de 2007, data de hoje, e ao terminar assinalei evento importante para o próximo vinte e três. A agenda que utilizo tem, dentre muitas outras coisas, frases no rodapé para cada dia do ano. Muitas delas são ditos famosos de gente famosa, outros tantos de gente desconhecida, e outras ainda frases desconhecidas de pessoas famosas, de cuja autenticidade eu muitas vezes desconfio, por prazer de formação e um certo ceticismo avaro, coisa de gente sem ter que fazer.
Para o dia vinte e três vindouro rezava assim o escrito: “Só quem já se modificou pode modificar aos outros”, atribuída a Soeren Kierkegaard. Bom, o filósofo dinamarquês todos nós conhecemos, mas a autoria da frase também pode ser suspeita, eu não sei se ele disse isso ipsis literis, e ainda que tenha dito, o conteúdo não é exatamente original. Proclamou-se a mesma ladainha (com outras palavras) em quantas latitudes e longitudes que por este mundo há, inclusive, recordo-me de uma parecida, e creditada a algum pensador oriental, “antes de começar o trabalho de modificar o mundo, dê três voltas dentro de sua própria casa”. Uma coincidência: pouco antes de ir ter com a agenda, havia recebido um emeio cujo derradeiro conselho me dizia que “a mudança começa dentro da gente”. Acabrunhou-me o emeio por muitos motivos, e não valeria a pena trazê-los aqui, mas a sugestão, ou antes injunção me entristeceu particularmente pois não creio muito nessa fraseologia barata, nessas receitas simples de resolução e entendimento das coisas. A maioria de nós sabe, e eu sei também, que as modificações e atitudes do nosso dia-a-dia dependem muito de nós mesmos, de tomarmos esta ou aquela decisão. Mas esse tipo de conselho vago não serve de muita coisa, a mim me parece um chover no molhado que não auxilia, antes amargura, pois nem sempre saber da necessidade de um lance forceja-nos a jogar decididamente, e pior, acertadamente o tal lance. Poderia ter tomado a coincidência das duas frases, a de Kierkegaard e do meu interlocutor de emeio como uma mensagem a me dizer “oras, tome jeito agora Juliano, e mude o que tenha de mudar”. Mas não creio, a vida é um pouco mais complexa do que essa coincidência, e seus caminhos um pouco mais variados que um simples R1T (rei na primeira casa da torre).
Outra coincidência. Na página do dia treze, palrava-me o dito de rodapé: “ Se não tivéssemos tantos defeitos, não nos agradaria tanto notá-los nos outros”, creditada a um Rochefoucauld. Não me incomodo de dizer que não fazia a menor idéia de quem era esse sujeito. Sequer me toquei do conteúdo da frase, pouco me importou o tal Rochefoucauld, ainda mais que no momento em nada me amparavam, ao contrário do que as frases anteriores, e as coisas que já mencionei relacionadas a elas (o que ademais só vem a provar que embora eu defenda aqui que as coincidências são apenas coincidências, nem por isso elas deixam de ser divertidas, ou como no caso corrente, motivadores de aborrecimentos). Enfim. Ando relendo Memórias Póstumas de Brás Cubas do Machado de Assis. Caminho pelo página 128 da minha amarelada edição da Saraiva de 1963. Para os curiosos é o correspondente ao capítulo CXV de qualquer edição do romance, cujo título é “Almoço”. Lá, Machado cita o Duque de La Rochefoucauld, sem, contudo, nos dar maiores informações sobre o homem. Bem, então sim, achei curiosa a coincidência, e, embora não tenha tido até agora vontade de ir verificar quem seja o tal duque, imediatamente depois de ler no Brás fui tomar minha agenda para rever as frases que, de uma forma intrincada, se tinham metido de parceiras no meu dia-a-dia. Como não tivesse mais que fazer a não ser relê-las, cogitei de ler as irmãs, não de conteúdo, mas de posição geográfica, já que não nos é difícil imaginar que toda página, exceções concedidas à primeira e a última (assinalando, claro está, de que se trata da parte de uma agenda que marca os dias do ano, cada página para cada dia.), têm sempre uma irmã gêmea. Bom, a dupla da página vinte e oito, a segunda-feira, vinte e nove, disse-me isto: “Nem sempre convém virarmos a página, as vezes, é preciso rasga-la” de Achille Chavée. Sim, tem que ver com o que estou aqui esboçando, falando de página, mas não atino como coincidência, porque esses fatos todos se deram antes da escrita do texto, de maneira que consciente ou inconscientemente utilizei-me da frase para ir construindo a parcela argumentativa de agora.
Mas bem, resta contar sobre a menecma da página do dia 23, que é (será) um domingo, 24: “Não há cura para o nascimento ou a morte, a não ser usufruir o intervalo” de George Santayana. Seria de se esperar agora ao mostrar a segunda não-coincidência que eu estivesse tentando corroborar a tese do início — coincidências são só coincidências —, já que a frase acima nada tem que ver com as coisas até aqui invocadas. Mas, coincidentemente, o senhor Nelson Archer, colunista da Folha de S. Paulo, escreveu no dia 13, Caderno Ilustrada, página E6, sobre poesia. Pelas tantas ele diz uma frase bonita, que casa com a do dia 24: “(...) Em outras palavras, a poesia de quando em quando suspende para alguns (sem que, para tanto, seja necessário infiltrar moléculas complexas e estranhas no meio das sinapses) a pena capital que pesa sobre nós”.
Usufruir o intervalo suspendendo a pena capital que pesa sobre nós talvez pudesse ser uma das somas das duas frases. Eu penso que a razão (a despeito de contraditória)é boa para a “suspensão”. O Nelson Archer crê que a poesia é boa para a “suspensão”. Concordo com ele também, e ouso dizer que ele concordaria comigo. Contudo, Nelson e eu esquecemo-nos de pensar que tanto as infiltrações de moléculas estranhas quanto a busca por sinais “diferentes” nos painéis da vida (como as coincidências) podem ser formas, e sublinhe-se, bastante legítimas, para a suspensão da pena capital. Afinal, em se tratando apenas de uma mera suspensão em todos os casos (já dizia Sêneca “que podemos escapar dos infortúnios, dos sofrimentos e da doença, mas não do fim”, corroborado pelo próprio Archer num seu poema, “todos os trilhos vão dar no matadouro”), quem é que vai apregoar com certeza qual será a melhor... Poesia é só poesia? Sertralina só sertralina? Coincidência só coincidência?
p.s. – eu não sou Shakespeare, e tomara que algum Bloom me esteja lendo, por isso mesmo é que penso que possamos rir juntos se por acaso algum disparate surgir na lógica do calendário usado no texto.

1 Pitacos:

Juliano Machado disse...

Veridiana, eu, pra ser sincero, tenho um pouco de medo dessas coisas que como diz o Nelson se enfiam por entre as nossas sinapses. Sou parvo, tenho medo até do escuro.

beijo.