(este texto foi originalmente publicado em 26 de junho de 2007)
A pulguinha e o cão de Deus
A Pulguinha estava quieta em seu cantinho e naquele momento não tinha vontade sequer de morder o dorso quente e nédio do animal sob ela. Estava tristonha, bastante frustrada com sua vida de pulga e decepcionada com o rumo dos acontecimentos no seu planeta.
Há tempo vivia à mingua. O cão onde morava era um vira-lata velhinho, vencido pela idade e maus tratos. Seus pêlos ralos mal cobriam as feridas que ela própria e sua comunidade de pulgas impingiam ao degenerado animal. Nem a seiva vital vermelha (de importância sem mesura para ambos) era lá grande coisa. A comunidade crescia e crescia. Havia pulgas para todos os lados e extremidades do cachorro e a Pulguinha não entendia como ele suportava tamanha provação.
Tão decepcionada com sua vida estava que chegava ao ponto de se fazer várias indagações existenciais e até teológicas. Então se perguntava com amargura:
— Que Deus é esse? Como posso acreditar num Deus tão injusto? Eu aqui vivo neste animal sujo, desnutrido, sempre à sorte do tempo! Enquanto isso existem pulgas que vivem em cães limpinhos, bem alimentados, e por serem tão bem tratadinhos esses animais, as pulgas que neles vivem não tem o problema da super população, da escassez de alimento, da falta de higiene e tratamento médico, que recebendo o cachorro, elas desfrutam também. O único trabalho necessário é esconderem-se nas unhas quando são aplicados os shampus anti-sépticos... Quanta desigualdade.
Sem dúvida, para a Pulguinha não podia haver um Deus que a tudo isso olhasse e que tamanha injustiça permitisse. Também se espantava muito com a devoção e exaspero da crença de suas companheiras pulgas, conformadas, resignadas com o que a vida lhes oferecera e sempre apregoando o “Deus bom que criara o universo”, “o Deus justo que um dia virá buscar os puros de espírito”. Chateada, até mesmo irritada, resolvera dar uma volta pelo cão, talvez ir até a cabeça proa a observar o rumo que o navio de sua vida tomava. No caminho encontrou uma sua companheira que lhe indagou aonde ia:
— Aonde você vai tão cabisbaixa? Sus! Não aprofundes o teu tédio! A vida é bela!
— Pro inferno! Que vida bela, a vida é uma porcaria! — respondeu-lhe a Pulguinha com nenhuma paciência.
–– Não fale assim criatura! Deus tudo ouve!
–– Ao diabo com seu Deus injusto! pérfido! Que se existe, é um grande gozador.
— Blasfêmia! Cuidado minha amiga com o que esta dizendo. O senhor é onipresente e onipotente!
A Pulguinha saiu sem nada dizer, ainda mais aborrecida com seu mau fado. Foi em direção à orelha esquerda do cachorro e subindo num ponto onde nem pêlos mais havia, posicionou-se de forma a ver o caminho em sua frente... Bibbbi! Vrummmm!... Mal teve tempo de se ajeitar na orelha do cachorro e já estava rolando para trás, graças aos bruscos movimentos do animal canino. O cão, caminhando distraído, quase foi atropelado por um carro que vinha rápido. Antes que a Pulguinha conseguisse recompor-se do susto, ouviu a voz grave de seu inquilino, que olhava para o céu:
— Graças ao bom Deus! Deus realmente existe e me acompanha! Foi por um focinho...
Ora! era a gota d’água. Não podia acreditar que este cachorro mal tratado, sujo e miserável também pudesse creditar a um hipotético Deus “tamanha glória!” Aproximou-se mais um pouco da orelha do animal e não se conteve e pronunciou:
–– Ora cão, como você pode acreditar tão devotadamente em Deus. Um Deus injusto que não olha por sua criação? — perguntou-lhe exasperada.
–– O que você esta dizendo, minha cara Pulguinha? Isso é um absurdo! Nosso Deus é bom e é justo, sim. Deus dá o alimento conforme a fome e zela por todos nós e a todos nós acompanha! E virá buscar-nos, os puros de espírito! — respondeu-lhe o cão, querendo denotar tranqüilidade e experiência. A Pulguinha que já havia ouvido as mesmas palavras, estava inconsolável:
–– Mas não é possível, é sempre a mesma história. Será que você não pode ver o tamanho das injustiças que existem pelo nosso mundo! Como um Deus pode ser bom com suas criaturas se permite desigualdades? Simplesmente, então, Ele criou-nos e deu-nos as costas!
— Mas quem não enxerga é você — respondeu secamente o cão –— Deus dá a cada um o que merece e a seu tempo, Ele dá o frio consoante o cobertor. Olhe a maior prova que acabamos de acompanhar aqui: eu estava caminhado tranqüilamente pela rua, tão absorto em meus pensamentos que não percebi o carro. Por que acha que me salvei? Pela mão de Deus é claro...
–– Perdoe-me cão, mas você se salvou porque o motorista estava atento ao trânsito e conseguiu desviar em tempo. E o que você fez de tão errado para merecer a sorte que tem? Desde que nasceu tem levado uma vida miserável, sem alimento, sem diversão e sem possibilidade de melhora. Nem seus pais você conheceu, conheceu? claro que não... enfim, você vive sem ter onde morar, à deriva, sem saúde, sem alguém que ao menos zele por seu bem estar. Que fez você de mal a Deus? Ou melhor, o que fizeram a imensa maioria dos cães que vivem assim como você, na penúltima desgraça? Muito justo esse seu Deus que dá a poucos cachorros de raça o privilégio de ter boa alimentação, bom tratamento médico, educação em escolinhas especiais para cachorros e enquanto você mal tem o que comer, eles sobram a comida do almoço... Voltou a cabeça para o céu e perguntou a si mesma: cadê Você?
O cão que a tudo ouvira com atenção leda, agora balançava a cabeça e tencionou falar:
— Ora minha Pulguinha, você precisa deixar Deus entrar em seu coração. Você esta amargurada e justamente porque não encontrou a palavra Dele. O Senhor escreve certo por linhas tortas e bem sabe o que cada um deve passar para conseguir o paraíso ao Seu lado.
— Mas isso tudo, toda essa fé vem de que? De onde lhe parece tão clara a existência de um ser supino? — indagou com gravidade quase angustiada a Pulguinha.
–– Basta abrir os olhos, verificar o que esta à sua volta. Os pássaros, as árvores, a natureza de um modo geral. O amor, os sentimentos belos, são demonstrações latentes da existência do Nosso Pai. As nossas próprias vidas? o que dizer desta maravilha que é a vida! Uma criança que nasce, um filhotinho que vem à luz. Isso é Deus! A luz do sol...
A Pulguinha, que estava quase resignada com as palavras do Cão, olhou para frente e pode ver uma imensa igreja, símbolo máximo da devoção e da fé. Viu também um carro que vinha pela avenida defronte à catedral bem na direção do seu cão hospedeiro.
— Cão, cuidado! –– gritou a Pulga. Mas ele estava tão entretido em suas elucidações sobre a existência do Senhor que não pode ouvir a Pulguinha, que já se preparava para pular. Antes de saltar, porém, ainda teve tempo de ver o motorista, que distraído do trânsito, fazia o sinal da cruz ao passar pela igreja. Vrummm...
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