quinta-feira, 9 de outubro de 2008

O texto que gostaria de ter escrito

Não costumo meter neste espaço endereços para os textos de que gostei ao longo da semana nos jornais ou blogues que leio. Também não tem por hábito este blogue sugerir leituras ou livros que as ventas do signatário julguem bons. O máximo que me tenho permitido, e ainda assim contrito, é expor na coluna da direita os blogues que mais frequentemente leio (e mesmo assim reticente, vez que acompanho com assiduidade muitos mais dos que lá estão).

Contudo, acalentando o salubre hábito de ler os vários e bons cronistas diariamente (e também os ruins, com quem, não se iludam, também se aprende) do universo de jornais e internete, sempre aparecem umas palavras a que acedo com inveja contida: “puts, gostaria de ter escrito esse texto”. Mas, como salientei já nas escusas primeiras, não cedo à tentação de vir cá sugerir que os meus já fatigados leitores vão a ler o que enfim gostei.

Mas vou abrir uma exceção. Uma perigosa exceção, pressuroso de que a possa repetir em futuro (qual futuro? Nem sei quanto ainda durará esta Bazófia). Abaixo no meu espaço um poste do blogue http://ana-de-amsterdam.blogspot.com/ que saiu publicado nesta semana. Não pude solicitar à autora que me permitisse copiar-lhe o texto, entretando, há algumas práticas que o meio virtual consagra à custa de um maior respeito pela autoria. Esse blogue, não titubeio em dizer-lhes, é o meu preferido. Mal lho leio, sorvo-o. E é preciso ainda admitir: nem sei o quanto o alcanço de fato.

Sobre o texto em si, muitos, senão todos já o disseram de muitas e muitas formas brilhantes, portanto bem não sei explicar o que me comova especificamente, afora a sensação de que, por mais que se repita, estes aí sentimentos necessitam sempre, a quantas vozes, serem e serem repetidos até ao silêncio inexorável e final. Eis o texto:

Vício
O Flaubert aconselhava a ter cuidado com a tristeza. Cuidado com a tristeza, dizia ele, pode tornar-se num vício. Eu percebo bem o que ele queria dizer. Sou depressiva há muitos anos e não sei como me livrar da tristeza que toma conta de mim. Já tentei psicoterapeutas e psiquiatras. Já tentei o suicídio. Já tive filhos para que a responsabilidade da maternidade soterrasse a tristeza. Já tentei preencher o tempo com merdas e merdinhas para experimentar a felicidade dos gestos rotineiros. Até já tentei tomar decisões ridiculamente fracturantes que espantassem dos meus dias a solidão que neles se instalou. Nada resulta. É preciso força de vontade para nos livrarmos de um vício e eu não a tenho. A tristeza serve para desculpar a inércia e, sobretudo, a mediocridade.
posted by ana at 7:00 AM

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Notas

São nove horas da manhã. Estou sentado numa mesinha no lado esquerdo da praça delle Erbe de frente para um delicioso mercado de hortifruti a céu aberto. Enquanto digito, bebo apenas água mineral sem gás e mordisco um pedaço de broa muito seca, e por isso mesmo saborosa. Tomei o café da manhã muito cedo no hotel e sai para caminhar carregando a maleta do lap-top. Verona é uma cidade para se caminhar (diferente de como se caminha em Paris, em Roma, em Londres ou Madrid). Não obstante seja a segunda maior cidade do Vêneto, depois de Veneza, paira sobre ela uma aura mais sutil que cidades de mesmo porte (quem quiser procurar ruínas terá a segunda maior, também, neste quesito, na Itália inteira, perdendo só para a capital). Vim para cá fugindo de de uma desilusão e sequer poderia imaginar o que encontraria dois dias depois da minha chegada, no último domingo.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Todos os Nomes*

Conheces o nome que te deram, não conheces o nome que tens. Chamava meu relógio Cássio G-Shock de Júpiter, minha régua de aço inox que ninguém no ginásio tinha de Indiana Jones. Meu primeiro bichinho, a gatinha preta assombrosa que comia vagem foi Panterinha, a Petô. Petô, esquisita, deu só uma cria que logo cri macho e acudi por Kepler. Era fêmea, mas Kepler ficou. Depois chamei Bromelga à beagle da avó e do pai (tadinha, foi Paçoquinha no princípio), e segui, já não tão menino, chamando Sofia, Pilar e Carmem às roseiras que o falecido avô me entregou a plantá-las.

Se o nome não muda o doce sabor que outrora em versos te havia dito. Então surgiu o Joaquim Sassa, furão, chamavam-lhe ferret. Joaquim jamais deixou de ser pronunciado, mesmo passados tantos anos de sua morte. E foi por isso, também, que não houve mais bichos, entretanto, para não perder a meninice, inventei de andar de bicicleta e, é claro, meti-lhe nome próprio: Beatrix Kiddo, a noiva magrela.

What's in a name? that which we call a rose by any other name would smell as sweet. Passei desfolhando o último momento e chamando nomes de muitos amores para deixá-los de chamar depois (se me chamaram alguma vez, não escutei). E nestes confusos instantes de nenhuma certeza, ela surge fagueira, risonha e linda bafejando o ar quente e dengoso no meu rosto: é minha, vem morar comigo. Parece simples, sequer preciso chamá-la e ela vem cá. O corpo balança suave, tem graça no andar mesmo inseguro, e nem liga não tenha nome, embora precise de um nome.

Sobejam o carinho e a atenção, e ainda se ambos mudos ela viria, lá como a fosse chamar. Mas é necessário um nome, precisamos, por força, de um nome: vagueio a pronunciar cauteloso: Dafne? Nua? Amaranta? Frieda? Tulipa? Virgínia? Não sei, ai meudeus, in nomine dei, não sei, não sei. Ela segunda-feira chegou e hoje, já terça, sem nome não podemos estar. Quem idéia tiver (que seja nome, alcunha, apelido, hipocorístico ou pseudônimo) favor enviar o mais depressa possível ao endereço que mais rápido se escreva pois ela precisa ser batizada. Afinal, o tempo não cessa e já tendo eu o meu próprio, espero ansioso o de minha companheira no eminente esquecimento. Duas vezes se morre: primeiro na carne, depois no nome.

* - o título é furto ou plágio de José Saramago, do romance homônimo.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Espinosa e a hera dos pitacos

Há um mês, de férias, resolvi cortar a hera do muro da casa de mamãe. Trabalho árduo e extenuante, para gente forte e alongada. Portanto, para mim. Comprei lá uns utensílios de jardinagem, de jardinagem pesada. Preocupou-me inclusive desconfiassem fosse o loirinho dos olhos claros esquartejar alguém (apesar de ser forte e consistente muscularmente, não sou robusto ao ponto de parecer, inclusive na coloração da minha cutes, que ganho a vida cortando a facão e enxadão plantas ao sol do meio-dia). Comprei luvas também, não queria as mãos machucadas. Apesar de não atrapalharem ao tocar a valsa brilhante, poxa, calos doem.

Foi divertido demais. O sol é uma benção no inverno brasileiro. Arde miudinho e o céu fica de um azul maravilhoso. Aproveitar as férias sentindo o cheiro de mato, vendo as pessoas nos carros apressadas, as senhoras que saem à rua para apanhar um pouco de ar, os cães, os pássaros, a molecada jogando bola... Tudo animador, sorridente. Eu cortava a hera sem esforço demasiado, satisfeito de fazer um movimento matutino sem compromisso com horários, e me sentindo útil no trabalho manual que ia executando.

Cacei um chapéu de festa junina que fora da minha irmã. Tirei as rendas e as trancinhas negras, ficou jóia. Na lide acabei encontrando um ninho de passarinho! Ah, que coisa mais linda as duas pequeninas avezinhas... Caros leitores, eu menti. A felicidade descrita no poste anterior é cerca de treze e meio por cento menor do que o propalado no último índice. Ora, me perdoem. Ai amores, não briguem, não me castiguem, ai digam que me amam e eu não minto mais. Na verdade não chega a ser uma mentira, mas talvez um exagero ao descrever a situação. Não eram todos os poros que exalavam felicidade. Creio que só as apócrinas (alguém aí sabe se alegria tem cheiro?). Então é isso. Apesar de tudo, não sei se vou poder falar apenas de passarinhos aqui na Bazófia (sinto dizer, a história da hera era [te peguei, Elcio] uma idéia que me ocorreu de falar do sol e das belezas singelas na vida do simples homem. Eu nunca encostei sequer numa tesoura em minha vida toda. Os passarinhos não existem a historieta do começo não tem fim).

Estou com um problema que gostaria de compartilhar com vocês (na verdade são dois, pois queria escrever sobre Espinosa e fiquei com vergonha, já que a Jú Pacheco entende muito do assunto. Mas deixa isso pra lá, também não vou falar aqui do meu complexo por ter as canelas finas...). O problema é o seguinte: quero mudar o sistema de responder aos pitacos. Do jeito que é, quem entra na página lê lá quem tem x pitacos. Mas na verdade, como eu respondo um a um individualmente e o blogger conta os meus como se fossem os de um visitante da página, então os pitacos de fato são x/2. Acho isso um saco, propaganda enganosa. A Veridiana, sempre ela, achou maneira de melhorar a coisa, fazendo com que eu possa responder em itálico ou outro gracejo que diferencie - embaixo do comentário original - a minha resposta, sem contar como um pitaco a mais. Mas tem um problema: é uma ferramenta de um outro site e ao acoplá-la (usando um termo interessante que não é da informática, creio, acho que caiu bem) à minha página, os pitacos, todos, anteriores desaparecerão!

Normalmente eu faria o que me desse na telha, porque sou meio folgado e o blogue é meu. Mas como os comentários são parte integrante desta brincadeira toda, e como são, muitas vezes, muito mais interessantes do que os próprios textos e, sobretudo, foram escritos por vocês, leitores, não tenho coragem de simplesmente desaparecer com eles daqui. Que faço? Alguém tem alguma sugestão? Será que o custo da ação não vale o benefício? Ficava muito feliz de alguém me dar uma luz sobre o assunto.

Bom, já está chegando meia-noite, preciso postar ainda na terça. Semana que vem comento sobre as segundas. Haverá entrevistas.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Bazô

Voltei para a Bazófia. A Bazófia voltou. E por que voltei para a Bazófia voltou? Pelo motivo diametralmente oposto do abandono anterior: a felicidade. Estou feliz. Estou alegre. Estou rindo á toa. E com vontade de escrever, de escancarar essa alegria que parece vir de fora e se misturar com uma que já está cá dentro, causando um congestionamento por todos os meus poros, como se eu pudesse estourar de contentamento. Ei, esperem! Há motivos. Os há vários. Conto. Eu conto. Enumero, a seguir, algumas das razões do eflúvio sorridente de bonança:

a) Dinheiro. O serviço assoma de tanta paga. Cresço, não estou ficando rico, mas poderei em breve passar quinze dias na Europa sem esforço. Além disso, uma quantia que estava encalacrada em burocracias mil resolveu adejar minha conta bancária. Ora, que faço? Compro um carrão, novo, brilhante, feroz.
b) A saúde. Não me lembro de sentir-me tão bem nem quando tinha quinze anos, idade em que só as espinhas é que faziam feio. Meu organismo parece o de um urso, e sequer uma gripe posso apanhar.
c) As relações familiares. Aproximei-me sobremaneira de meus entes querido. Os diálogos agora fluem, vemos-nos sempre, sempre, com alegria dividimos almoços, jantares, faina vária. Já a liberdade de confidenciar cada probleminha por menor que seja faz a cumplicidade expandir-se em afetos trocados, abraços e beijos macios.
d) A formação acadêmica. Finalmente pude regressar a estudos perdidos para trás, amarelados nos livros guardados. E agora vou de vento em popa correr atrás de conhecimento formal que me trará títulos e quem sabe medalhas.
e) O amor. Bem, é verdade que o grande amor ainda não apareceu, mas sei que está aí na esquina. Se calhar já me espreita por detrás de alguma árvore. Com tudo caminhando assim tão bem, estou bonito e a minha pele parece mais jovem, de modo que demora quase nada e a mulher mais incrível do mundo me abraçará logo amanhã.

Então, é isso. Por que entristecer-me com ipês-rosa se a árvore do quintal da minha casa dá as flores brancas mais lindas de setembro? Tudo me parece tão claro, tão languidamente dourado... E por isso eu volto a escrever. Para despejar palavras insensatas de tamanha alegria nesta Bazófia que agora queria se chamar Bazofinha, Zozó, Bazô ou qualquer outro nome menos sisudo para dar cara à face do signatário que não cabe em si diante das cores da vida. É melhor ser alegre que ser triste, a alegria é a melhor coisa que existe, é assim como uma luz no coração. É sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar.

A Bazô volta então para falar de alegria, de olimpíadas, de flores, de crianças, enquetes, as diferentes maneiras de fazer amigos, cem dicas de beijos e abraços, dos shows da Ivete Sangalo. Nada mais de solidão, praças frias, acidentes automobilísticos ou perdas doloridas. As personagens estão já mudadas e agora sorriem, divertem-se e enxergam a bondade e a beleza do simples homem.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Vontade

Hoje não vai ter texto. Não estou com vontade de escrever. Acabei de sofrer mais um acidente automobilístico e isso está me irritando. Aquelas vezes na vida em que as coisas insistem em dar um pouco mais errado do que a média me desanimaram. Por tanto, isso, sem poste hoje e sei lá quando vou ter vontade de novo.

terça-feira, 29 de julho de 2008

A Carta

Araraquara, 05 de setembro de 2011
Tenho gostado quando chove. De minha escrivaninha ouço a chuva bater nas folhas secas que irremediavelmente sobejam no quintal. Ainda não descobri qual é a árvore que plantei há quantos anos e caduca em agosto (e derruba flores brancas que em verdade duram somente dois dias, na metade de setembro). Não sei se quero descobrir. Hoje tenho medo de saber de que espécie é, como sempre soube no caso do oiti. Essa dúvida me parece bondosa porque percebo que quando tudo faltar, e faltará, terei algo ainda a procurar. Está anoitecendo, a bátega forte me dá a sensação de ilha. Então eu campeio o marcador de livro, aquele com o molequinho negro sorrindo (eu tenho tantos molequinhos negros sorrindo), fecho o tomo e vou ver da área da casa o vento folhear as ramas da hera. Estou vestindo uma calça jeans, meias marrons e um ridículo chinelo velho. Estou sem camisa. Tenho ficado muito em casa sem camisa, e imagino que você saiba disso (não se lembra disso porque não se lembra de nada, mas vai saber quando a carta chegar).

A chuva aumentou. Curioso como a evidência física da água, até mesmo os borriços que respingam para o meu rosto e o meu peito, tem a competência de me tirar a noção de tempo: sei que estou pensando em você há muito, sei que só deixei o romance e fui ver o corisco porque penso em você, mas não sei mais quando foi que perdi você. É como se os calendários se esboroassem, ou as convenções e fatos banais do cotidiano não tivessem data, pois não consigo raciocinar temporalmente enquanto penso em você. Freqüentemente, então, tenho de voltar às fotografias. Tenho muitas fotografias. Tenho fotos reveladas, tenho tantas em nossa pasta no computador. Prefiro sempre as que você está sozinha. Depois delas, as que está com outras pessoas, mas não gosto de ver as que estamos juntos. É covardia, eu sei, mas é a demonstração evidente de que se estivemos juntos naquelas fotos, não estamos mais agora. Não tenho dificuldade em admitir a minha culpa, mas tê-la perdido pesa tão doloridamente porque eu a tive, e só existe essa vida.

Pensara em telefonar, mas sei que o telefonema resultaria inútil. Em primeiro lugar, é impossível que você fosse me atender, e em segundo lugar, não sei mais quais sejam os seus números (é claro que eu poderia descobri-los mais facilmente do que se chega ao número da pizzaria da esquina, mas a necessidade de buscar algo que deveria ser memória latente me acabrunha). Eu me encolho e encosto numa das paredes. Estico a mão até ao ponto em que algumas gotas mais pesadas me toquem. A chuva recrudesceu ainda mais, o céu está escuro e mais belo.

Esta noite pensei em deixar o trabalho, fazer uma viagem, ir para a França. Preparei um uísque e vim cá escrever esta carta. Se o serviço e os amigos (ou a falta deles) fossem um problema realmente sério, seria muito fácil resolver: largaria o trabalho, abandonaria os amigos e iria para Paris ( e o dinheiro nunca foi problema). Mas fugir do que não está perto é uma angústia tão imaterial que se torna em angústia da angústia, numa figura de sentimento, metáfora ou comparação que não sei inventar para lhe explicar. Também concedo afinal que não se interesse em saber o que diabos eu sinto de qualquer porcaria das ninharias de minha vida.

Agora considero que terei de descobrir o seu endereço e me deparo com uma constatação incomoda: eu tenho o seu endereço e sei que está correto e é atual. E sei disso porque ouvi de relance num evento estúpido de pessoas conhecidas. É evidente que não posso saber se você está em sua cidade ou viajando, mas mesmo que sua última estada em sua última morada seja para despachar as bagagens, se envio a carta de agora amanhã cedo pelo serviço de urgência, você a irá receber, invariavelmente, nalgum momento (aqui mecanicamente excluo as possibilidades da minha e da sua morte nesse intervalo que separaria o meu envio do seu recolhimento da missiva, além de outras desgraças desnecessárias pelo óbvio motivo de que morrer seria covarde demais até para a minha vileza).

Reli os outros parágrafos e percebo que não posso mais protelar o que tenho a dizer: eu ainda amo você. O morto-vivo em que me transformei, e que só tem por prazer ler romances e olhar a chuva cair quer saber se você ainda se lembra do meu nome e do meu rosto. E porque não faço a menor idéia de como saberei isso já que não terei respostas às minhas perguntas, calculo que talvez deva ser mais severo nas palavras que, afinal, se foram lidas, não serão respondidas.

Mas não serei. Estou cansado e infelizmente parece que a chuva vai amainar. Decidi então enviar estas folhas para outro endereço. O endereço dos seus pais. Não tenho a menor dúvida de que estou enlouquecendo e agora acredito que posso ao menos me furtar do ridículo da vergonha se aparentar insanidade. Sua mãe me disse uma vez que a melhor parte de nossa separação era não ter mais de olhar para mim. Eu era muito bonito e não quis compreender a afirmação. Como sei que seus pais não abrirão a carta e lha enviarão a você, acho que posso finalmente contar a verdade.
Estou indo para Londres. Sei onde você mora e chego uma semana depois da carta. Vou procurá-la, vou devolver o que você me pede desde então. Não quero mais manter um objeto que não tem valor para mim, exceto pela função indispensável de me colocar na sua frente pela última vez. Calculo que seja um preço justo, o seu desespero por reavê-lo, o meu desespero por vê-la novamente. Ninguém saberá disso, e apesar da minha loucura, e da chuva que nunca cessa, calculei todos os movimentos (por isso seus pais recebem a carta primeiro). Vou querer abraçá-la antes de lhe entregar o que é afinal seu, se eu não estiver num estágio muito avançado de um sonho bom.
Vemo-nos em breve,
J.

terça-feira, 22 de julho de 2008

Adormecer muda tudo

A canção tocava serena ou o ambiente era sereno por conta da canção (apesar dos ruídos lidos nos sulcos do disco de vinil). A luz não vinha de um candeeiro solitário, mas bem poderia, pois era parca, amarela, e só concentrada no ponto em que requisitada com necessidade circunstancial. Fora do seu feixe específico as sombras passavam através de sombras. Ele estava sentado na cama, livro de poesia aberto na mão, indeciso o pensamento entre sorver o adagio cantabile da sonata número oito em dó menor, opus treze, ou quando perderes o gosto humilde da tristeza. Vencera nele uma solidão de estar em meio a todos e a noção quase resignada de que tudo já havia sido dito, pensado ou sentido. O quarto mal iluminado era, portanto, o sintoma da exagerada percepção do caráter transitório da vida, enquanto a música a extensão material da condição em que afinal se considerava obrigado a viver, já que a poesia representava o despojo de uma liberdade inerente, e tanto menos útil à medida que mais indesejada. Esse quadro, nada original em cada uma de suas matizes, trouxe-lhe um pensamento que também não poderia ser inédito nas histórias dos tristes quartos pouco alumiados e da solidão frouxa de quem não tem no que refletir ou agir (ou não quer agir), pensamento que, afinal, era no outro, como no outro sempre tem de ser.

Aconteceu então o que vulgarmente se chama de destino: uma bátega violenta começou a cair e minutos depois um raio, ou rajada de vento que derrubasse um galho no gerador, interrompeu o fornecimento de energia da rede elétrica do bairro. O som calou-se, a luz (parca mas suficiente) cegou e ele se viu no escuro. Depôs o livro no criado mundo e chegou mais para si a coberta. Antes de terminar de repassar mentalmente as palavras, sensações e imagens para aí acima descritas, adormeceu.

terça-feira, 15 de julho de 2008

Falta

Caros amigos,

por motivo de doença o texto saíra excepcionalmente amanhã, quarta-feira 16 de julho. Peço desculpas ao leitores e prometo uma coluna saudável para amanhã.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Angústia

Todo mundo se lembra do quadro do Munch que se chama “O grito”. Creio ter lido, alhures, que este quadro talvez mostrasse para o homem moderno que “deus está morto e o materialismo não dá alívio”. Considerando-se que deus não tenha morrido, uma vez que sequer nasceu para que lhe crescesse a barba, e que não faço a menor idéia do que seja materialismo (para não falar do histórico), só consigo lembrar do tal de Nietzsche que escreveu aqui e ali sobre esse treco da morte de deus. Vai ver que este homem moderno herdou o progresso do iluminismo e se julgou liberto das superstições, opressões e o caramba de quatro para mistificar o deus razão... blablablá chato, ladainha cansativa. Na verdade pensei mesmo em falar da angústia, mas isso me puxou o pé pelo quadro, que me puxou o pé pela análise dele, que me puxou pelo Nietzsche que me puxou pelas minhas livres associações cretinas (aqui não é o blogue da Tatiana, portanto, as associações do escriba são idiotas mesmo). Se o cronista não tem do que falar, porque é que não se cala, como perguntou o rei ao caudilho? (já lembrei de Tocqueville e Hayek, do estado que transforma o cidadão em adulto infantilizado? Jesus Cristo Super Star eu quero um uísque, por favor).

Por vezes a angústia turva o pensamento, as sensações e a iniciativa. Mas, interessantemente, turva ainda mais a expressão do rosto do angustiado, desde lá de baixo contraindo o estômago. Senão quando se mete a mão para a cabeça a segurar o cérebro, os ouvidos de ouvir. Muito aliás, sem análises técnicas de pintura que não sei fazer, não dá cá para nós uma sensação bem turva “O grito”? Evidentemente, o que causa angústia a la Munch cada um o sabe para si, contudo, a face crispada é espelho para todos nós os normais.

Restaria saber, se o caso fosse, como a angústia cessa: uma vez se deixará deixar de existir num assim como se oscilássemos de lado o rosto, suavemente, tirando do campo de visão o Munch. Outra vez será assim um olhar tão fixamente para a pintura que a visão anoitecesse e expirasse, os olhos se fechassem e dormíssemos no rés-do-chão. Pelo sim ou pelo não, acaba-se com a angústia (e/ou tudo o mais) saltando fora da ponte do quadro. Ora, é evidente que algum arauto do otimismo virá me contar que faltou uma possibilidade, qual seja resolvê-la numa alegria qualquer. Mas ora ora, cego como o João Cabral de Mello Neto morreu, digo que isso também é ladainha, e só cola para quem adora rir à toa e costuma se dizer feliz o tempo todo.

p.s. – Peço perdão aos leitores como a Jú Pacheco, a Veridiana, o Elcio, a Tatiana, a Marlene, a Telma, e quem mais aí esteja por ficar citando esse monte de nomes que vocês já leram e entendem. Eu fiz um angu de goma enfiando tudo que me veio à mente por conta de duas prerrogativas e uma necessidade: prerrogativa a) não os li muito e menos ainda entendi o que disseram; prerrogativa b) o blogue é meu; única necessidade a) por óbvio, precisava publicar um texto hoje, terça-feira, sem absolutamente ter algo a dizer dizer.



(na imagem, a única coisa que vale a pena do poste: "O grito", de Edvard Munch)

terça-feira, 1 de julho de 2008

Café

Agora que cheguei até aqui percebo o significado de tomar o café que eu mesmo preparei. Só pode ser coincidência que seja inverno, mas o vento frio insiste em dizer que de nada adianta cobrir o peito com algum casaco. Por sorte sou dado a falar sozinho, o que evita um desconforto bucal que surgiria a partir da nenhuma articulação vocálica. À ausência de interlocutor a saliva seca, grudam-se as mucosas nas gengivas e a língua fica pegajosa. Isto é de fato estar sozinho, a despeito do celular que tocou para perturbar o silêncio, único benefício deste vácuo. Mas era engano, ou entorse de joelho da alma, e mesmo, quem sabe? uma apendicite do ânimo.

Há uns afazeres ridículos e humilhantes dos quais não se pode fugir: os eflúvios da noite mal dormida têm-se que eliminar com banho e escovação. Mesmo que mal e mal (também é conta da estação) as apócrinas funcionem, parece então que as écrinas destilam um odor que não lhes cabe. Sobejam, vencedores, palrando espicaçados os pêlos: a barba toma a cara e se junta ao pé do cabelo e demais pilosidades do corpo esbranquiçado. A alimentação e suas decorrências tenho vergonha de contar. Há dignidade na solidão de quem prepara um café e o sorve lentamente, observando as danças dos vapores e o chiado do calor, não a há, no entanto, quando se mexe uns ovos e chouriço no azeite velho, à guisa de sal, só para que o estômago deixe de alanzoar.

Devolvo demasiadamente rápido os lances das partidas e as vou vencendo, sim, embora me pareça sempre promover peão a apenas peão (e sempre, sempre, sempre jogando R1T – rei na primeira casa da torre). Livro da música os ouvidos, rememoro só ao longe, cantarolando, as canções que me dizem o óbvio da situação, e leio. Leio sempre, leio muito. Já nem sei o que estou lendo, os olhos não chegam a estar baços mas são vagos, e são, como se os pudessem ver, tristes de si mesmos nessa única função monocromática de seguir letras atrás de letras.

Se soubesse a maneira de, explicaria a sensação de ser oco. Descanso os óculos no braço direito da poltrona, deponho o tomo no esquerdo membro de pano, levanto-me e penso num próximo café. Como numa história bonita de amor, faço a indigna frigideira suja ganhar, no fogão roto dos despojos do chouriço, a companhia da chaleira brilhante de inox (não acreditam em gênero quando tudo é ausência). Meto-lhe água para dentro, ela aquece ligeira e exclama o ar quente numa melodia de ternura e afeto. A frigideira cora, os outros utensílios sorriem, crentes ambos de que a música é de conciliação e carinho. Não reparam que, alheio ao romance, assovio o adagio cantabile da sonata número oito em dó menor, opus treze,
de Beethoven. Pathetique.

terça-feira, 24 de junho de 2008

A fuga do gato azul

Acordei com o sonho pegado na memória: reprodução exata da cena do quadro de Chagall exceto pelo movimento, visível e não apenas sugerido, uma sensação de evasão. O gato azul caminha pelo chão do quarto, pula para cima da cômoda enorme, esgueira-se por detrás das cortinas da janela e some por ela, semi-aberta que estava. Tudo muito nítido, a seqüência dos matizes, o azul esplêndido do gato de rosto quase humano, a Paris adivinhada pela janela e, é claro, o nome do quadro martelando em minha cabeça, “A fuga do gato azul”.

Desconhecido de Freud, não pude atinar o porquê de Chagall. Gosto dele, mas não está entre os preferidos. Aliás, mais conheço-o pelo motivo de sua amizade com o brasileiro Ismael Nery, esse sim, muitíssimo apreciado. Confesso, inclusive, que me lembro mesmo é das pouquíssimas pinturas que vão no livro da Adélia Bezerra de Meneses (Figuras do feminino na canção de Chico Buarque. Ateliê Editorial. 2001) e não muito mais. Então fui à bendita internete procurar a tela dos sonhos.

O quadro “A fuga do gato azul” de Marc Chagall não é um quadro de Marc Chagall. Na verdade, esse quadro não existe. O mais próximo que encontrei foi uma pintura que está no Guggenheim de Nova Iorque e se chama “Paris pela janela”. Não me recordo de alguma vez ter topado com essa tela, mas é claro que já devia tê-la visto. Lá está um gato com cara de gente, mas é amarelo. Lá não tem cômoda, não tem cortina, não parece que o gato vá saltar pelo vão (parece ser um prédio e o gato não tem modos de suicida). E, finalmente, lá sim Paris se deixa ver toda pela janela franqueada. Não me perguntem, eu não sei do que se trata. A precisão da lembrança do meu quadro no sonho só me fez ter certeza de que não é um Chagall. Mesmo porque o meu quadro não era, no sonho, um quadro, e sim uma cena em movimento que eu presenciava do aposento mesmo. Meu gato é azul, azul de fase de Picasso, o do Chagall é amarelado, cabeça branca, traseiro verde. Sobretudo, o gato de Chagall vê Paris, o meu gato saltou a janela e foi-se embora para uma paisagem que não se podia enxergar.

Num belíssimo conto chamado “Eva está dentro de seu gato” (Olhos de cão azul. Record. 1998), Gabriel Garcia Marques conta uma história de inadequação: Eva é a mulher mais linda do mundo, mas não suporta sua beleza, sua beleza lhe é o maior fardo, como uma doença. E antes disso, ela sabe que sua beleza não é sua, é ancestral, ela tem de carregar algo que não a permite ser ela mesma no mundo. E todos lha olham extasiados, e todos a apontam e lambem os beiços pela beleza dela, que não é dela. Então ela resolve que só pode experimentar o mundo indo para dento do seu gato, já que ela, em sua beleza, não é ela: pois que seja o gato, mais legitimo que ela ela. E lá vai ela.

Como já disse, não sei quem é Freud, portanto me escuso de fazer uma análise do meu sonho: o que acontece é que bem acordado, senti na minha pele feia (não sou Eva), sem pêlos amarelos (não sou o gato do Chagall), nem azuis (não sou o gato do meu sonho), a inadequação de ser apontado por algo que não se é (como se não bastasse o que se nos apontam e de fato somos), e ter vontade de saltar fora a janela e ir embora. Podíamos ficar quietinho, ronronando no tapete da sala, lambendo o pelo azul triste com as pulgas que de fato são nossas, sem que nos apontassem coceiras que não existem. Pois se junta tudo, o que é culpa de nossa condição felina e mais o que não é, voltamos a ser o homem que não se encontra do poema de Pessoa (Eva que volta a ser Eva?):



Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.


Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.


Fernando Pessoa, Cancioneiro, 1931.






(na imagem, "Paris pela janela", Marc Chagall, 1913. Óleo sobre tela 174x172 cm, Guggenheim, Nova Iorque)

terça-feira, 17 de junho de 2008

O velho mistério da essência

Há um conto do João Guimarães Rosa — ou talvez um ensaio, não o tenho muito certo — chamado “Uns Índios (Sua Fala)” que conta uma histórinha sobre o contato do escritor com os Terenos, justamente uma tribo ali das bandas do Mato Grosso e arredores. Sendo sincero, desconheço o que há de ficção e realidade no relato do mestre, embora o que se conheça de Guimarães Rosa leve a chutar que as duas coisas podem ser verdade, sendo o mais provável uma mistura muito coerente de realidade e ficção (o termo coerente sou eu quem uso arbitrariamente, porque o faço num sentido literário, querendo exprimir coesão e coerência na prosa, e no caso dele, uma prosa-poética tão particular). O caso é que o conto trata do contato do narrador com alguns moradores dessa tribo, mas principalmente do contato do narrador com a língua falada desse povo e sua estupefação ante a novidade. Rosa diz que a língua dos Terenos é rápida, ríspida, e segue dizendo: “uma língua não propriamente gutural, não guarani, não nasal, não cantada; mas firme, contida, oclusiva e sem molezas”. Conclui, por fim, que tão logo a ouviu respeitou-a, assim como respeitou seus falantes, como se eles representassem alguma cultura velhíssima. Rosa então cita no conto várias palavras deste idioma que ele foi anotando em seu “caderninho” com a ajuda dos nativos, e espanta-se com algo que observa no nome das cores: vermelho – a-ra-ra-i’ti; verde –ho-no-no-i’ti; amarelo –he-ya-i’ti; Observa, como nós o podemos fazer, que o elemento i’ti devia significar “cor”. Resolvido a se embrenhar na língua estranha, Rosa vai entrevistar velhos moradores, os mais antigos Terenos vivos em Aquidauana: lá descobre que o elemento i’ti , afinal, não significava cor, mas sim sangue, e que portanto vermelho seria sangue de arara; verde, sangue das plantas; amarelo, sangue do sol e assim por diante. Guimarães Rosa se angustia, porém, porque não conseguiu descobrir o sentido de algumas palavras e de outras cores, pois os moradores antigos lhe diziam apenas que aquilo não tinha mais sentido nenhum, que não significavam nada, que diziam assim porque assim o diziam. Então João destila: “Toda língua são rastros de velho mistério”.

Fiz uma enorme introdução para contar a história bonita que o Rosa contou, mas também para chegar nestes pontos que me interessaram sobremaneira: a essência das coisas e a ligação que tudo tem com um passado remoto, com um velho mistério. A figura dos Terenos me parece excelente, o sol tem um sangue amarelo, uma essência amarela, as plantas tem uma essência verde, logo um sangue verde. Claro que isso sendo figuras de uma linguagem lá deles, não saberemos qual seria a cor do homem, se bem que — ponto que eu queria chegar —, como haveremos de saber qual a essência do homem? Talvez o não saibamos pelo “velho mistério”, pelo “passado remoto”, porque a nossa essência se perdeu num passado em que se perderam as línguas também. E não que primordialmente não existissem sentidos para todas as palavras, como para todas as essências, mas por que isso se vai tornando num mistério indecifrável quando presentes se sobrepõem a presentes numa fila inexorável.

Seria o caso, lugar comum, de cada vez mais olhar para dentro de si a buscar essa essência perdida? Ou seria o caso de, dinâmicos como as línguas, buscarmos novos entendimentos ou novas estruturas para denominar coisas que simplesmente não sabemos o significado? Creio, entretanto, que aquela angústia ancestral que domina o primeiro e dominará o último homem — assim já sentenciado que qualquer que seja a busca, não logrará êxito —, essa angústia está no passado remotíssimo da existência, e se imiscui tão sorrateiramente em tantos presentes que como os significado das velhas palavras, não se deixará conhecer, embora a sintamos aqui e ali, como usamos palavras que nem sonhamos o significado no dia-a-dia de todos os dias.

p.s. – lamentavelmente não sei dar indicações de onde encontrar o texto do Guimarães Rosa, eu tinha uma cópia xerocada que arrumei alhures, provavelmente do primeiro ano de letras. Prometo que procuro este xerox, e se achar, fica à disposição de quem por ventura se interessar.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Divino

O boteco do seu Divino fica na Marechal Deodoro da Fonseca esquina com a avenida Cientista Frederico de Marco. Chama-se Divino´s Bar, pois. Todos os dias, logo que o dia começa a querer ir embora, por volta das dezessete e trinta e oito, formam-se as mesas de truco com os ébrios presentes. Evidente que o grau de embriaguez varia de freguês para freguês, mas não se tem notícia de jogador ou torcida que tenham pedido groselha (não conta o Geraldinho, que foi buscar uma coca-cola pet para a mãe e aproveitou para escutar um seis e comprar chiclete). As pelejas seguem até por volta das onze da noite, horário limite convencionado mais ou menos naturalmente, uma vez porque a vizinhança tranquilha do bairro tolera até com boa vontade a rapaziada, outra vez porque a pinga ingerida é tamanha que a essas horas muitos heróis já tombaram.

As portas do boteco do seu Divino têm com freqüência aparecido fechadas. Cruz na porta do Divino´s. Quem morreu? O próprio Alves. Seu Alves foi o primeiro de uma série de seis fechamentos no lapso de um mês. O dono do lugar explicou que chega uma certa hora em que a idade e os maus tratos da cachaça começam a furtar os bons amigos aos borbotões. Argumentou, com pesar divido, que não podia abrir o boteco no dia do falecimento de um companheiro de sina. Especula-se que talvez funcione como em Mangueira, onde ao morrer um poeta todos choram, de modo que seu Divino viva feliz em Divino´s porque alguém há de chorar quando ele morrer. Esse afastamento do medo de morrer sozinho faz a paga do prejuízo amealhado com o dia de trabalho perdido nos dias do velório: porque é assim, fecha-se o bar somente no dia mesmo do velório. O data da morte e do enterro são convenções de outra burocracia.

Estando assente e facilmente verificável no dia-a-dia dos convivas que se estava a morrer amiúde no boteco, cotizaram-se os companheiros a reunir recursos financeiros destinados à compra das coroas de flores dos futuros finados (isso foi lá pela altura do passamento do seu Mário, terceiro ou quarto contando a partir do Alves, embora ninguém o saiba ao certo). Ao contrário dos mortos, que nunca o estavam meio, a empresa deu mais ou menos certo, pois: a) houve certa dificuldade em arrecadar uns trocados, porque diminuíam a quantidade dos tragos, mas seu Divino com tino, comercial, baixou um desconto na cachaça correspondente à diferença entre a idade do defunto e cem anos, nos três dias de luto oficial subseqüentes (esse fato gerou também uma renda extra por meio de um bolão não sobre os defuntos, mas a somatória das diferenças das últimas três mortes, já que virou moda ninguém mais lembrar a ninguém com quantos anos andava); b) as coroas passaram a ser entregues à cabaceira dos ataúdes com as inscrições de praxe seguidas da seguinte frase: “dos amigos do Divino´s ainda do lado de cá, esperando que o Divino Senhor o receba contente”. Em princípio as famílias aplaudiram o gesto de boa vontade e lembrança dos companheiros de copo, mas então um parente do Julio Andochama (o Julinho das Canelas), rapaz novo mas já observador dos bons costumes, achou de perguntar quem houvera criado a frase. A má sorte foi que seu Juarez, um dos truqueiros mais antigos do Divino´s, apontou para o Chiqunho, que efetivamente fora o criador da sentença, bem no momento em que este caia em cima do colo de duas primas do falecido de ocasião, sendo que no estabanado movimento de desvencilhar-se das senhoras, a uma levantou-lhe largamente as saias. Chiquinho era o mais frequentemente bêbado entre todos os freqüentadores do boteco, e recebeu, por ironia, a última coroa de flores dos amigos do bar, alguns meses depois. Após o sucedido, a homengem florística era aceita ainda, mas nunca bem recebida.

Seu Divino ouviu de alguns dos familiares da vizinhança que era melhor acabassem com aquela carpideira poupança, pois todos por ali andavam a torcer o nariz para a idéia de receber a coroa dos bêbados do bar. Houve até uma senhora que especulou não seria a palavra “contente” do excerto uma galhofa que remetesse a uma possível embriaguez de Deus no recebimento do defunto da dita confraria. Foi quando João morreu, o sétimo ou oitavo tomando por início o Alves. Por um daqueles instantes de afinidade mental quase inacreditável reuniram-se ao mesmo tempo os fregueses à frente das portas fechadas do bar Divino´s. Deu-se assembléia em que ficou decidido que não mandariam, afinal, a coroa de flores, e que o dinheiro seria juntado ao montante das apostas do truco do dia seguinte. Seu Divino concordou, mas obstou que era necessário que então se fizesse, de alguma maneira, uma homenagem ao falecido que não receberia as flores: comprariam um troféu (simples), que receberia o nome do morto. Tomado o gosto pelas deliberações, propôs-se ao seu Divino que abrisse o bar no dia do velório dos próximos chamados por Jesus, comprometendo-se aqueles desclassificados no torneio oficial em homenagem ao falecido a comparecerem o mais depressa possível no velório, a representar o bar.

O Divino´s bar agora não fecha mais as portas quando algum freguês vai dessa para a melhor. Como em Mangueira, que chora os poetas quando morrem, o bar da Marechal Deodoro da Fonseca com a Cientista Frederico de Marco não deixa seus irmãos sozinhos na hora do último adeus. A pinga tem o desconto da diferença da idade, o total da aposta do truco é bom dinheiro mesmo descontado o troféu que carrega o nome do defunto, as portas só se fecham quando o trio vencedor vai embora. Se calhar de alguém arranjar um violão, acredita-se que um sambinha até vá nascer a quando dos futuros passamentos.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Eu vou morrer

Eu vou morrer. "Tô terminando a prestação do meu buraco, meu lugar no cemitério pra não me preocupar de não mais ter o onde morrer. Ainda bem que nos mês que vem posso morrer, já tenho o meu tumbão" (Raul Seixas, Fim de Mês). Hoje eu descobri que vou morrer. Pois é, eu vou. Não sei exatamente quando, porque sou novo e minha saúde é irritantemente boa. Alimento-me muito bem e faço ginástica com regularidade de modo a manter minha pressão arterial apta a vencer qualquer escada sem precisar de um coração de três motores. Na minha idade, nunca me havia preocupado em começar a pagar jazigo ou cova com palmos ou sem palmos medida. É claro que já imaginara (se por acaso então cogitasse falecer) que um dia seria enterrado junto aos meus, de aqui ou acolá, e é bem verdade que sempre me interessou a idéia de ser depositado no mesmo cemitério do meu avô paterno, local ecumênico, bonito gramado salpicado de símbolos em concreto pintados de branco. Aliás, esse meu avô Joel, que lá sepultado não é mais que pó, sequer crânio de Yorick, foi quem me cantou a musiquinha do avião de pouco uso precisado de três amores.

Mas hoje soube que vou morrer. E descobri isso da maneira mais simples: já tenho onde ser enterrado. Cuidando das coisas de vovó, verifiquei ser beneficiário de plano funerário que cobre traslado, velório e jazigo, tudo quitadinho à espera silenciosa de eu bater as botas. Não é mordomia ou mau agouro para com a minha exclusiva pessoa: Vó Isabel cuida com desvelo dos tramites do passamento de todos os netos, além, é claro, dos três filhos que ainda estão bem vivinhos da Silva, Machado Silva. Eu não sei bem o que pense: ela que cuidou como lhe foi possível e bem (e tem cuidado) enquanto estamos todos vivos, resolveu estender os carinhos até, ao menos, o túmulo (é preciso, por dever de consciência, dizer que se dependesse dela, religiosa como poucas, também cuidaria do além-túmulo, intercendendo por nós junto a Ele, que segundo ela a tem em alta conta. Não respondo pelos demais dependentes do plano funerário, mas de minha parte pretendo entrar sem referências ou deferências na sala de deus, devendo, a meter-lhe pelas fuças o dedo em riste cobrando um pouquinho mais do meu demenso).

Sabe, eu não pretendia morrer. Tinha decidido firmemente transpor os séculos, impassível, soberbo e observando os tolos mortais deitarem papéis de sorvetes de limão pelo passeio. Mas diante da descoberta de que tenho já lugar cativo debaixo da terra, e melhor ainda, com serviço completo das fainas envolvidas, vou citar Manuel Carneiro de Sousa Bandeira: sei que é grande maçada morrer, mas morrerei. E lembrando também o meu parente Machado de Assis (Lívia, ele se chama Joaquim Maria), agradeço à Vó Isabel esse conforto plácido de saber-me onde descansar a carcaça nada hamletiana: que a terra me seja leve, já que está quitada.
p.s. - peço desculpas aos leitores por não ter publicado o texto na terça, e depois atrasado quando disse que o faria na quinta. Realmente tive contratempos, mas espero que isso não se repita.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Falha

Em virtude de uma breve viagem a São Paulo, o texto sairá na quinta-feira. Peço desculpas aos leitores.

Um abraço.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Minc no Meio

Nada contra o Carlos Minc (nem a favor, a despeito de achar um absurdo a forma dispensada pelo nosso querido Mestre Lula para com a discreta e regular Marina Silva), mas a melhor da semana passada foi o Elio Gaspari, na Folha de domingo: “um veste-se como um saltimbanco, o outro fala como gringo de programa humorístico” (Folha de S. Paulo, 25 de maio de 2008. Brasil. A12). O outro em questão é o Mangabeira Unger. Jornalista bom é o que escolhe o mote certo: o circo está montado.

Todos os sabores o sabor*

Ela é feiosa, tem uma capa cheia de espinhos moles que mais lembram uns cabelos endurecidos, parece rota, é sem dúvida opaca. Confesso que tive até um pouco de medo quando ela me foi mostrada, elas foram, porque na verdade seriam nove ou dez. Estavam, por cuidado, juntadas numa tigelinha toda delicada: branca, desenhos bonitos e singelos. A lichia (estranho nome!) abriu na primeira mordida mostrando-se-me toda alva no por dentro. Saborosa, adocicadinha, amarguinha, mas tépida como só o poderia ser o sorriso arregalado de quem tinha levado a frutinha para mim.

Todos os sabores o sabor. Já eu não sabia, então, se fruta ou sorriso e tudo amanheceu. Fiquei com cara de caso a olhar quem me dera a lichia. E isso não era senão o sabor. Experimentei sabores muitas vezes no sabor do sorriso de lichia, vez vendo o Joaquim brincar para sorrir, vez vendo o sorriso sorrindo por sorrir, vez vendo a lichia com a boca, gostando-a aos poucos para perceber no gosto tão peculiar e genérico o alcance de todos os sabores dos sorrisos a partir de ali. Ipês têm sabor de lichia. Barulho incompreensível da boca ao dormir tem sabor de lichia. Osso tem sabor de lichia. Todos os sabores o sabor tem sabor de lichia no sorriso. As coisas todas no caminho vão passando, a visão se cansa, o olfato e o paladar se cansam. Esquecem-se e apagam-se as imagens, os gostos, os cheiros, o sabor. Mas Todos os sabores o sabor não mingua, não some, não se olvida, não deixa de ser sabor pela boca, olhos, cheiro, menos ainda pelo coração.
* - obrigado a Júlio Cortázar pelo empréstio forçado do título.
p.s. - Mas sobeja que o poeta é um fingidor, finge tão completamente que chega a fingir sabor, o sabor que sequer experimente. De lichia, claro.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Aniversário

Hoje é aniversário de meu pai, o Elcio Machado. Vinte de maio, terça-feira, fiquei com vontade de deixar aqui uma singela lembrança. Porque me comprometi a publicar sempre às terças-feiras e por essa terça ser a data de aniversário dele, já caberia uma menção, mas é mais significativo pelo conjunto da obra. Explico.

Vejam aí em cima o título e subtítulo do blogue. Literatura e outras presunções. Sim, nada disso que venho dizendo seria possível se não fosse pelo incentivo e influência dele. Não exatamente a presunção, que foi vício adquirido algures (vá lá, também aprendido com o progenitor, vai...), mas a literatura. O gosto pelo livro não nasceu pegado comigo, como o cabelo loiro e os olhos azuis, nem o nariz de africano. Veio pela mão paterna, pelo incentivo à curiosidade, pela provocação que me fazia querer pensar. Nunca fui um bom aluno, nem bom ouvinte, porque desde muito novo aprendia mais a ser presunçoso e rebelde do que atento e perscrutador. Mas mesmo assim, com insistência, amor e vontade sincera de mostrar que a vida tinha coisas mais interessantes que a televisão e o futebol, ele foi me incutindo a idéia da leitura, de pensar criticamente, de conhecer.

Das maluquices que inventou, duas me divertem demais até hoje. Se lhe fazíamos uma pergunta (minha irmã ou eu) a resposta não era pronta que nem papinha de nenê: “formule uma hipótese”. Antes de nos explicar o que era um cirros, um estrato, um cumulus, pedia para que pensássemos a respeito, que nós mesmos formulássemos uma possibilidade para aquilo. Com o “formule uma hipótese” aprendi muita coisa, sobretudo que a preguiça de pensar era o que mais podia afastar a gente de entender coisas simples do dia-a-dia. A outra maluquice foi oferecer aos seus filhos a possibilidade de que lhe chamássemos de Élcio. Ele dizia: “além de pai sou amigo, então vocês podem me chamar como queiram”. Moleques que éramos, claro que optamos pela transgressão divertida a chamar o papai de igual para igual, ainda mais em frente de coleguinhas ou primos atônitos (“é seu padrasto?”). Ele não sabe, ou talvez não se lembre, mas fora do tratamento direto para ele, continuou sendo chamado de papai em qualquer referência à sua pessoa para terceiros ou no trato comum da casa.

É claro que também herdei coisas complicadas, porque a vida não é conto de fadas. É claro que a distância e as circunstâncias nos afastaram ou aproximaram em determinadas situações e é claro que somos pessoas muito diferentes, ainda bem. Mas entre muitas outras coisas, o gosto que hoje tenho por literatura e outras inutilidades como a astronomia e a geografia me foram provocadas pelo Élcio (estou provocando com inutilidades, nem próximas de ter em casa um fatiador de frios).

Bom, apesar de ser aniversário do meu pai, o blogue é meu, por isso disse pouco dele e mais dele no que diz respeito a mim (porque aqui quem fala sou eu). Mas calma! Ele não tem culpa das tolices que escrevo. Sempre foi meu exemplo de cultura e conhecimento, além de inteligência lógica. Mas herdei mesmo foram os cabelos brancos.

De parabéns, peço licença a ele (que lerá este poste) para tornar pública uma dedicatória que está no meu volume das poesias completas do Fernando Pessoa, presente que ganhei num aniversário de muitos anos atrás:

“Ao meu filho e amigo Juliano, desejando que sinta o prazer de se envolver com a mais alta qualidade estética que o espírito humano pode produzir. Com amor e carinho, de seu amigo e pai. Elcio.”
Como se nota, com mimos desse tipo e palavras bonitas assim, o mínimo que eu poderia fazer era me apaixonar pelos livros. Obrigado e parabéns pelo seu aniversário, Elcio.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Las Quince Líneas

A primeira vez que tomei contato com esse negócio de microestórias foi por volta do ano 1999. Hoje a balbúrdia que já foi grande serenou e no final nem mesmo as iniciativas de microcontos do Marcelino Freire vingaram muito.

Não me recordo onde vi, nem como cheguei até ele, mas o nome que me apresentou a novidade foi Luis Landero, um escritor espanhol nascido por volta da metade do século passado que certo dia inventou um tal “Círculo Cultural Faroni” (que tão pouco sei do que se trata). O caso é que foi lá que eu conheci a idéia de construir histórias em quinze linhas. Havia um prêmio anual em língua espanhola e me recordo que o vencedor de um dos anos descreveu em quinze linhas como Gregor Samsa teria ido, afinal, depois de se transformar num inseto monstruoso trabalhar em sua empresa, onde logo foi congratulado por chegar mais cedo (foi voando) e depois realocado em nova função em função de suas novas características.

Envolvido que estava pela “Jangada de Pedra” do Saramago, à época, me aventurei nas quinze linhas, saiu o que se segue:



O Discóbolo

Ninguém ignora ser Joaquim Sassa um exímio discóbolo, como ficou provado quando lançou uma pedra pesada qual fosse ela dessas maneirinhas. Cansou-se pois de esperar aonde iria ter a península Ibérica, mudada em bote de pedras e resolveu tornar à praia onde um dia descobriu jazer em seu corpo forças que não poderia supor. Então apanhou uma pedra grande, com esforço acomodou-a na mão direita, deixando-a assente em toda a parcela da mão e também por um pedaço do pulso. Com os movimentos de discóbolo, não experiente, mas convencido por resultados de sua competência, tencionou, e o fez, jogar a pedra ao mar cuidando que como outrora fosse ela chapar na água três vezes antes de afundar, já numa distância maior que o singelo recorde mundial dessa modalidade. Não lhe saiu feliz a empresa. A pedra escapou-se-lhe da mão uns centímetros e foi cair no seu pé esquerdo. Irritadíssimo, chutou violentamente a pedra, atitude antes de adolescente lunático do que de homem cabal. Feriu também o pé direito, e não consta que a península tenha parado.

Não por agora, que ando sem paciência, mas pretendo ainda aqui na Bazófia copiar um concurso de relatos breves, mais ou menos dessa maneira para que vocês leitores participem e quem sabe se divirtiam.
p.s. - já sei, já sei que a história do discóbolo tem dezesseis linhas. Mas calculo que seja algum problema com a formatação ou qualquer coisa que o valha. Se não for corrigido prometo desclassificar a história da competição.

terça-feira, 6 de maio de 2008

Um pouco de respeito

Dez leitores

Tenho tratado com muito descaso os afinal não tão poucos leitores deste blogue. Digo não tão poucos porque no último poste anotei dez ou doze comentários ao texto, e ainda faltaram alguns visitantes contumazes, que suponho ainda estejam por aí. É claro que mesmo que apenas um leitor houvesse, deveria eu tratá-lo com respeito e consideração. Portanto, é feliz que informo acreditar ter, vamos lá, uns quinze leitores, e que estes leitores, freqüentes e participantes, merecem mais atenção.

Periodicidade

Não tenho tido muito o que dizer para que possa atualizar o blogue todos os dias (para a sorte de todos nós, convenhamos). E não me apetece escrever qualquer tolice (a despeito das tolices que mesmo assim são escritas) só para deixar o blogue movimentado. Mas, de qualquer forma, nada justifica que não desenvolva uma periodicidade para que os leitores ao menos saibam quando é que podem encontrar, se o desejarem, algo novo por aqui, para não os fazer gastar precioso ou ocioso tempo de internete entrando numa página desatualizada. Esta Bazófia, então, terá textos postados todas as terças-feiras, o que dará um inédito por semana no mínimo (exceto se surgir algo que anseie ser publicado urgentemente). Se por algum motivo não puder publicar na terça-feira (não se está isento de percalços os mais variados possíveis), um dia antes, portanto na segunda, farei aqui o aviso do sucedido.

Pitacos

O diálogo que se estabelece nos comentários é muito importante, sobretudo para o blogueiro, já que é, em última instância, a possibilidade de alcançar, de fato, a audiência do blogue. Ora, se a primeira coisa que o leitor pode fazer de mais especial para quem escreve o texto é lê-lo, a segunda é comentar. Logo, não faz sentido o também desrespeitoso tempo que o escrevente demora para responder aos comentários, diminuindo, dessa forma, o espaço para um debate que pode ser muitas vezes bastante melhor que o próprio texto. Pretendo, pois, responder aos comentários tão logo os veja na página, comprometendo-me a responder a todos até no máximo a terça-feira seguinte à publicação.

Louvoso

Gratidão não é uma boa palavra, mas louvoso, à moda do Manoel de Barros, talvez seja. Fico muito feliz que vocês leitores continuem vindo a este singelo espaço, e muito satisfeito também que comentem os textos. Aqui na Bazófia não tem essa de que blogue é do blogueiro e ele faz o que quiser. Não, eu escrevo o que quiser, mas não pretendo fazer o que quiser, porque a única e exclusiva utilidade deste blogue é se fazer ler. Sem leitores, não há blogue. Por isso gostava de convidar a que se manifestassem quanto as formas e agora sobre essa questão da periodicidade, ajudando-me a fazer um blogue mais palatável para a leitura. Os textos eu prometo melhorar, mas como os diletos leitores já sabem, isso ainda vai longe de produzir um bom efeito.

Obrigado por virem e prestigiarem as palavras que não muito firmes vou deixando por aqui. Um abraço terno.
Juliano

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Enquête do picolé de limão

(na foto, picolé de limão bastante parecido com o que deu ensejo à peleja verbal)
Foi sábado. Contraí bate boca na rua com uma moça e um rapaz. Quero opiniões sobre o ocorrido. Quero contar o que houve e expor à apreciação meus atos públicos.


Decidi-me por ir ao encontro dos amigos, no bar tradicional, a pé. Tenho caminhado muito. Ocorreu-me numa dessas caminhadas um conto do Isaac Asimov, ou teria sido uma adaptação para tv? Ou seriam os Jetsons? Enfim, nessa história de que mal me lembro, as pessoas ficavam doentes de tão sedentárias, porque os automóveis (ou naves?) as levavam para todos os lugares, e nos lugares escadas rolantes e esteiras as transportavam de aqui para acolá: ninguém caminhava. Eu caminho, mas a saúde que mais se beneficia é de longe a mental. Foi sábado. Resolvi ir ao boteco caminhando. Sustentava, como de praxe, o jornal debaixo da axila. A rua era a de maior movimento do centro da cidade, escolhera-a de propósito, interessava-me, neste dia, ver a gente. Ia lento e as sandálias confortáveis deixavam o vento interceder favoravelmente nas passadas.

A moça e o rapaz vinham ao meu encontro (e o que mais atrapalha é essa sempre mão dupla). Ela, bonita e bastante acima do peso, trajava uma blusa colorida muito agradável, discreta, a despeito das muitas cores. Ele, obeso também, vestia qualquer coisa que de tão parda não retive na memória. Nós três estávamos lentos, e a quando de quase nos cruzarmos a moça (de não mais que seus trinta anos) abriu um picolé (que depois verifiquei ser de limão)atirando para a calçada o papel que o envolvia. Ato contínuo, falei em tom de voz baixo, mas severo:

— Mas que coisa feia, moça, jogando lixo na rua. Ela hesitou só um tiquinho e devolveu:
— E você podia cuidar da sua vida, imbecil.

Não respondi à jovem. Não respondi porque concordo com ela nos dois termos que usou. Eu sou mesmo um imbecil e ando cuidando bastante pouco e mal da minha vida. Mas, imediatamente depois, o rapaz não se conteve (não acredito que tenha sido pela minha atitude de voltar-me para o papel do sorvete e apanhá-lo, amassando-o):

— Isso mesmo seu bosta, pega você o papel. Então eu me virei e redargui:
— Será que sou eu mesmo o bosta dessa história?

Bem, não irei reproduzir a quantidade de xingamentos que me ofereceu o rapaz gordinho. Não foram poucos, mas também não alcançaram nenhum requinte diferente do imbecil e bosta anteriores. Não respondi mais nada a ele. Enfiei o papel do sorvete no bolso da bermuda e dei-lhes as costas. Segui no caminho, ouvindo os insultos se afastarem. Acabrunhei-me.

Serei um imbecil, um bosta que não tem nada de útil a fazer da própria vida e anda a se meter na de outrem? Serei um Norbert Elias em campo zelando pelas mesquinharias da civilidade urbana? Ou sou um hipócrita que comete seus pecados às escuras e arranca fio de barba indignado com as caganitas dos outros?

Tola a enquête. Sou um rematado idiota, não me resta agora dúvida. E minha vida é um bocado sem sentido para que tenha de ficar cuidando da alheia. Além disso, não suporto as patrulhas, tenho bronca dos ambientalistas e abomino o IPCC. Portanto, um hipócrita, de fato. E quase me esquecia; ainda por cima, covarde e subserviente: queria ver fosse um grupo de rapazes voltando da aula de karatê se a minha investida para com a limpeza pública iria ter a espontaneidade soberba com que me dirigi à moça bonita e obesa e ao seu amigo redondo e vociferante. Bom, se numa hipóteses dessa eu me tivesse calado, talvez estivesse, afinal, mesmo e mesmo cuidando finalmente da minha vida.


segunda-feira, 31 de março de 2008

Domingo no Parque Infantil

"Ainda existem almas para as quais o amor é o contato de duas poesias, a fusão de dois devaneios".

Gaston Bachelard, "A Poética do Devaneio".

Já agora, aos domingos, vou ler numa praça que se chama Parque Infantil. Um lugar bastante aprazível, bancos de madeira pintados em verde-musgo nada confortáveis, mas com sombras de árvores frondosas tão gostosas que a coluna mal percebe a dureza do assento. Há gente correndo, crianças, cães. Idosos caminhando e alguns casais tomando sorvete. Uns meninos pedalam a bicicleta. Sento-me sempre no mesmo banco, debaixo da copa de uma carnaúba. Levo comigo o jornal do domingo, um e outro livro, às vezes uma revista. Não tenho horário para chegar, e volto normalmente quando a luz natural cessa, mas isso não é uma regra. Não há regras. Sento-me sempre no mesmo banco.

Nietzsche dizia que Xantipa, esposa de Sócrates, azucrinou tanto a vida doméstica do ateniense que acabou por empurrá-lo mais e mais à filosofia, ajudando-o também a expandi-la pela cidade. Sócrates não agüentava ficar em casa e saia pelas ruas falando com todo o mundo. Aos domingos, é costume a casa estar vazia. Não há ninguém me impelindo a ganhar a rua para me dar a solidão que muitas vezes, em outros dias da semana, eu desejo. Então junto do Manuel Bandeira tomo o café que eu mesmo preparei e saio para a caminhada, os petrechos de palavrórios debaixo das axilas. São vinte e tantos minutinhos até as árvores e os passarinhos (que muito polidamente, sem algazarra, me presenteiam com sua evacuação que só me faz pensar na tautologia dessa minha vida que é uma merda porque só se faz cagada).

Mas claro, eu vejo os entes vivos que se cruzam (vejo as pessoas que cruzam por mim e não creio que meditem na segunda leia da termodinâmica, Ascher, eu não medito). E ver a gente toda de meu banco solitário é a forma mais sóbria (e justa) de poder ficar só. Sorrio muitas vezes. Sorrio mais nas poucas horas que lá permaneço do que em todas as horas dos dias anteriores da semana que me levaram ao domingo. Sorrio porque vejo a gente correndo, e as crianças e os cães e os idosos. Os casais que tomam sorvete. E sorrio porque sei que nunca serei como eles. E sorrio porque nunca poderei ser feliz como eles. E finalmente sorrio porque isso tudo me leva ao único instante de serenidade quase pacífica que é o “momento de grande reconciliação com a falta de sentido de tudo”, como me disse o Luis, no Natureza do Mal.

A luz rareou, posso ir-me embora. Já não faz sombra a fronde da árvore. Não há nada que importe na praça, nada havia que importasse no jornal, não faz diferença o que haverá em casa. Escureceu e amanhã amanhecerá. Virá um tanto coeso de dias e será domingo novamente quando os jornais assim o assinalarem. Então poderei sempre tornar ao Parque. Exceto se chove num outro qualquer domingo. Se chove, fico em casa porque as gotas que invariavelmente as folhas da árvore não poderão conter fazem borrões nas páginas impressas e as notícias não podem ser lidas, assim. E os velhos e os pais das crianças e os donos dos cachorros não gostam de se ensoparem na bátega que cairá num outro próximo domingo.

terça-feira, 25 de março de 2008

Um beijo no seu coração

A Veri, com quem primeiro conversei sobre essa expressão
Não suporto doce. Chocolate, bolos, tortas, nada disso me interessa. Chego mesmo muitas vezes a não me entender com frutas, exceções àquelas bastante azedas ou amargas. No entanto, resolvi nos últimos tempos me alimentar mais saudavelmente (lá o que isso signifique) e passei a incluir as tais no meu cardápio. Na escolha de qual comer, o primeiro critério foi o quão adocicada a bendita era, e o segundo a maneira convencional de ingeri-la. Explico. Acabei optando por frutas que são melhor apreciadas comendo com a mão e extraindo as partes à dentada, arrancando nacos. Manga (apesar de doce), caju (apesar da sazonalidade), uvas, lichias podem ser frutas divertidíssimas de se comer. A palavra é lúdico. Lambuzar-se na manga, comer com as mãos, arrancar a casquinha da lichia no dente, as uvas dos cachos (eu me entretenho muito em morder a uva e abri-la de forma que a casca se esconda atrás da polpa). Normalmente não é fácil brincar com os alimentos e algumas frutas se prestam muito bem a isso, poder senti-las no tato. Há quem prefira comer uma pêra com garfo e faca.

Agora me lembro de uma passagem de Tornino i Volti, do Ítalo Mancini: “O nosso mundo, para nele vivermos, amarmos e santificarmo-nos, não é dado por uma neutra teoria do ser, não é dado pelos acontecimentos da história ou pelos fenômenos da natureza, mas é dado pelo existir desses inauditos centros de alteridade que são os rostos, rostos a serem olhados, respeitados, acarinhados”.

O que é um beijo? Para além do dicionário, todo mundo sabe que beijar alguém ou algo é encostar os lábios nesse alguém ou coisa, como demonstração de amor, afeto, carinho etc (clichê a osculação como marca de traição). Quando mandamos um beijo para alguém, seja por telefone, emeio, carta, mensagem de celular, entrevista na tv, estamos querendo dizer que, se estivéssemos por perto, beijaríamos. É por isso que não consigo entender a agora tão difundida expressão “um beijo no coração”. Eu tenho certeza de que foi a Xuxa que inventou isso. Ou a Ana Maria Braga, ou então a Hebe Camargo. O fato é que principalmente nesse meio televisivo a expressão pulula. E, como de costume, contamina os demais mortais. Recados de orkut, despedida de msn, fim de emeio e até recadinho de celular já chegam com beijos no coração.

Senão vejamos: a importância e a força constitutiva de um beijo está na toque cúmplice e íntimo de pousar os lábios na pele de alguém. Esse contato físico é a razão única de ser do beijo, e a intensidade e profundidade dele são flagrantes se comparadas, por exemplo, a um aperto de mão. Logo, a abstração de enviar um beijo a quem está longe, deveria querer representar, na impossibilidade prática momentânea, a comunhão dos lábios com o outro, na demonstração física mais íntima possível, depois do sexo (há algo maravilhoso que é entrelaçar as mãos — embrasse-moi chéri — , que assim como os abraços, é terno, meigo e profundo, mas ainda assim anterior ao beijo). Claro que sexo, beijo, abraço e tudo o mais que o ser humano é capaz de fazer pode ser feito sem sentimento, mas não é essa a discussão.

Então eu mando um beijo no seu coração. Transformo o ato íntimo de encostar minha boca em você numa abstração impossível. Não dá pra beijar o coração (exceto se se for cirurgião cardiovascular ou fizer-se parte de seitas extratoras do órgão ainda pulsando de dentro do peito do sacrificado). Imagina-se que quem manda um beijo no coração quer tocar fundo, ir ao âmago (o coração é sempre considerado o detentor dos sentimentos), mas o incauto não alcança que o beijo não se presta a isso, ou se presta por outro meio que é justamente o tato. E se não dá pra beijar o coração de fato, enviar um beijo no coração se torna algo então muito impessoal.

O beijo é o beijo. Não é voto de paz, expensas de contrição, augúrio de saúde, desejos de felicidade. É beijo. Demonstração de amor que só pode ter sentido na contundência do toque. Se não podemos dar um beijo porque o emeio ou o telefone não permitem, mandá-lo significa dizer que quando nos encontrarmos, vamos nos beijar. Vale até fazer o barulho de smack no telefone, ou som estalado dos lábios comprimidos. Vale ainda desenhar ou mandar boquinhas vermelhas nas cartas. Só não vale mandar beijo no coração. O coração fica dentro do peito e antes dele a nossa pele é que gosta de sentir o quentinho úmido dos lábios de quem amamos, nem que seja só imaginando quando será.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Faz frio

Subo a alameda perpendicular ao estabelecimento onde quitei a dívida. Faz frio, o dia está escuro, venta. Num primeiro momento imagino que a ruas estejam tanto mais vazias que o comum por conta da feiúra do clima. Me engano. Apenas a travessa em que eu estava é que não tinha movimento. Quando chego ao movimento, há. As pessoas agasalhadas não caminham nem mais nem menos rapidamente do que o usual, mas os gestos, sim, são um tanto contidos, as mãos se retesam ou dormitam nos bolsos, as cabeças pendem um pouco mais para as pedras do passeio, os ombros e as costas acompanham a postura.
Optei por não levar uma blusa. Gosto de sentir o vento gelado. Ainda não é inverno, mas já defendi muitas vezes a tese de que o refletir, o penoso refletir é tanto melhor no frio. Levo comigo o recibo e não experimento qualquer sensação de alívio por não ser mais devedor. Há uma dívida inaudita que não me lançará nos mecanismos de proteção ao crédito, francamente conhecidos por siglas. Ainda que rasgue o CPF ou perca o seu número, ainda que fosse possível — e não é, mudar de nome. Dobro o papel e meto-o no bolso (a algibeira da calça soaria pessoano demais), o peso não diminui nem aumenta, apenas a mão está livre para não fazer nada.
Não posso destilar minha tristeza, não posso pensar no pedido que ela me fez para não ligar mais, porque os pedestres se atropelam pela calçada com uma pressa que não faz sentido, embora tenha sentido (e o que mais atrapalha é essa sempre mão-dupla). Eu não quereria flanar, o meu olhar tem pouca comoção para algo tão etéreo. E eu podia, sim, como fiz, escolher ruas mais tranqüilas para caminhar; mas para chegar até elas passo por estas e não posso pensar nestas, e não posso não pensar nestas.
Com nenhuma fé peço para que chova, mas não chove. As calçadas ficam vazias quando chove. A agitação da rua se engalfinha com a minha resignação. Eu estou lento, e como não tenho horário ou lugar para voltar, é lento que pretendo continuar. Ao menos, por sorte, faz frio (se não fizesse, a dívida já solvível ficaria à espera, pois não me poria à pé na rua).
Faz frio e escurece. Não preciso, mas vou voltar para casa. Poderia ficar, a intensidade do tráfego de pedestres por certo diminuiria, poderia destilar com mais paz a minha amargura. Mas não vale a pena. Não vale a pena voltar, não vale a pena ficar. Se escolho o sentido do quarto é porque quando for bastante mais gelado, à noite, sem a blusa que não trouxe, também não poderia mais refletir com tristeza, a energia mal me sobraria para aquecer o corpo. Pela mesma sorte ainda estará frio debaixo de qualquer cobertor.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Homenagem ao José Saramago em resposta à pergunta "que você faria se encontrasse um outro você?"

Errava desatento pelo passeio e soergui repentinamente a cabeça a ver como ia o tempo dando comigo mesmo parado em minha frente. Olhei a perscrutar-me no homem defronte a mim tal fosse um espelho, e reparei na exatidão de nossas formas idênticas quando ele metamorfoseou-se no José Saramago. Foi depois Jesus de Nazaré, Joaquim Sassa, Constante, Ricardo Reis, Blimunda, Sr. José, a Conservatória, Raimundo Silva, a mulher do médico. Num átimo, foi Tertuliano Máximo Afonso para novamente transmudar-se no José da Azinhaga que era eu próprio. Nessa miríade vi a humanidade concedendo que somos todos pedaços de uma coisa só.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Mas é carnaval

Terminei hoje a transição canalha dos textos do antigo endereço deste blogue (http://julianomachado.blog.terra.com.br/). Tudo quanto vai aí para trás e que contém nas etiquetas a palavra arquivo, não é senão texto requentado da página anterior. Oquei, eu realmente queria que o endereço novo contivesse os textos antigos, primeiro porque denotam um pouco do que foi o idéia original de criação deste espaço (uma vez que ofuturoadeuspertence), segundo porque não tenho tantas coisas razoáveis o suficiente para serem publicadas, se abro mão das quinquilharias anteriores, fico sem pai e mãe.

Chamei de canalha a transição de textos porque ela foi mesmo canalha: lancei os postes da outra página mais ou menos um por dia, e mesmo assim com intervalos aos finais de semana. Isso me dava tempo de não produzir nada e manter o blogue porcamente atualizado (atualizado na data, para o incauto que lê lá o dia da semana seguido do mês e o ano).

A verdade é que não sei mais o que fazer com esta Bazófia. Ainda não quero desistir dela, tampouco sei como continuar. Aqui chegamos, então, no cerne desta explicação: acabaram-se os textos antigos, terei de escrever novos e não tenho tido paciência sequer para tomar banho, que dirá produzir.

Eu não tenho vergonha na cara. Então continuo com o blogue e peço uma licença, se os poucos leitores que sobraram (nem sei quantos são... a Veridiana, a Jú Pacheco?) me permitem: volto depois do carnaval, a sério, tentando manter o blogue vivo com novas tentativas de tentar dizer alguma coisa que preste.

Metáfora da Despedida Através da Escada

“Pois você sumiu no mundo sem me avisar
E agora eu era um louco a perguntar
O que é que a vida vai fazer de mim”
Chico Buarque in “João e Maria”


Fora sozinho e somente quando as luzes se acenderam ao final da récita foi que a vi, já no limiar do primeiro degrau, oscilando a fronte, passando as mãos no cabelo, satisfeita e lenta. Antes de principiar a subida virou-se uma vez para trás observando a turba e então me viu. Cortou o encontro visual com um aceno vertical de cabeça e precipitou-se na escadaria enorme. Fui ganhando espaço entre a multidão, Com licença, com licença, e quando consegui chegar ao primeiro degrau, ela devia estar mais ou menos no décimo, distância que se não era desprezível, não encerrava minha esperança. Falei-lhe, ainda assim pouco aumentando a intensidade da voz, Ei, espere um instante, poderíamos conversar, ela não se virou, não deixou de subir, mas respondeu, Sim, pode dizer, mesmo próximo, vacilei, Gostou do espetáculo, ela não respondeu, continuou, continuei, balbuciei, Achei incrível, há tempos não assistia a um assim. Silêncio. Passadas mais rápidas. Eu me tornara lento enquanto falava, percebi, com atraso, que não havia tempo para subterfúgios e insisti, Podemos conversar, espera um pouco, não se virou, apertou ainda o ritmo do movimento, e respondeu já com a voz se diluindo, Estou com pressa, preciso pegar o carro. A resposta era banal, todos precisávamos pegar o carro. Talvez fosse a hora de desistir, a distância havia crescido e aumentava, já que ela era lépida e jovem, e eu cansado e velho, não a poderia acompanhar. Não fiz caso, já quase a gritar, disse, Faz tanto tempo que não a vejo, e se conversássemos um pouco, numa reação que não compreendi bem, ela levantou o braço esquerdo e o abaixou em fração de segundo e depois disse, torcendo o rosto paralelo ao ombro direito, na intenção clara de que a voz lhe saísse mais forte, mais contundente, Eu realmente preciso ir.
A escadaria era imensa, não a poderia vencer de um fôlego só na velocidade em que eu estava, mas cri que houvesse um último sopro e continuei no encalço, que de encalço fora só uma figura, pois ela se afastava de mim, muito mais solta, como que adejando os degraus luzidios do mármore. Afrouxei a gravata, estava quase vencido, gritei para cima ainda contendo um desespero misturado num cansaço arfante, Espera, por favor, me deixa falar alguma coisa. Então ela parou. Lentamente mexeu nos cabelos, e olhando em princípio para o chão e depois, ainda calma, mirando em mim os lindos olhos verdes, disse, absolutamente ciente de que mesmo demorando-se alguns segundos ali, eu não a poderia alcançar, Olha, eu realmente preciso ir embora, não acho que tenha nada mais a ser dito, adeus. Enquanto ela falava, também estivera parado, ganhando fôlego inconscientemente, mas não podia precisar as palavras que se haviam reduzido ao adeus de uns olhos brilhantes, de uma testa que se franziu para cima num lamento de consternação, quem sabe se compaixão, porque eu não queria e não poderia suportar que fosse pena.
Tornou a ficar lépida, chacoalhou a minúscula bolsa negra pela alça e o vestido longo, liso, sóbrio, também negro atrasou-se em relação ao movimento das pernas, precipitou-se exagerado para o lado da rotação do corpo marcando ainda mais a silhueta esguia e insinuante, deixando ver por conta disso um pouco mais das pernas claras e imaculadas. O cabelo loiro, não houvesse sido cortado ao ombro, teria feito o mesmo movimento, e embora eu pudesse adivinhar de soslaio todas as danças do vestido, foram elas como que substituições das danças do cabelo que, este sim, por minha culpa, não estava mais ali. Festinando chegou ao cimo da escada, e tive a impressão de que uma vez mais olhou para baixo, mas posso ter me enganado, a luz em cima era frouxa, a distância já muito maior do que a minha competência em enxerga-la, e então desapareceu no escuro. Continuei subindo, agora sem qualquer visão, apenas buscando a boca do lobo que iria me tragar, o coruto da escada por onde poderia me lançar ao fim.
Chovia — sempre chove — e o pátio estava vazio de pessoas, repleto de coisas, nenhum traste. Cheguei em tempo de ver um carro saindo, o carro que eu conhecia, as luzes fugidias se afastando como uma lanterna na popa, e eu o mar sulcado, o rastro de barco que se perde na água que deixa de se ouvir. Não havia um precipício, então me sentei no último degrau — ou seria o primeiro. Por isto pensei em Bacon, depois tentei confortar o espírito lembrando felicitar-me, ridiculamente, de ainda vê-la assistindo a uma récita, tentei crer que o mundo não girasse em torno a mim, débil, ainda tentei acreditar que talvez tivesse mesmo pressa, mas o poema de Bandeira me assaltou, o verso fatídico, Adeus! amor, tu fazes bem, a mocidade quer a mocidade. Era inútil me enganar. Levantei-me, fui andar ao largo, passos muito quietos para sorver a bátega que aumentara. Eu estava ali, aquela cidade não era a minha, e sozinho pensava em voltar, mas já não havia para onde voltar. Menino ingênuo chapinhei numa poça d´água como fosse um pedido ritual, desejando que ela voltasse. Ela não voltou. Eu ainda esperei por o tempo em que as primeiras pessoas assomaram ao pátio, e parti para lugar algum, sem olvidar o tamanho da escada que ainda precisaria descer.
(este texto foi originalmente publicado em 26 de abril de 2007)

O Bilhete

Porque ele tinha achado o termo que considerava perfeito. Porque tinha decidido o palco e preparado o cenário. Hamlet contemporâneo, personagem de sim mesmo, sincero acima de tudo por seu fito justificar o meio. Era a mulher de sua vida e não poderia haver problema ético ou moral em se preparar, em estudar, em pensar nos pormenores que concorreriam para que voltassem a ficar juntos. Ele a amava, muito. Indescritivelmente. E qualquer uma sua ação não poderia causar protesto.
Escolheu o melhor ipê da cidade. Marcou um horário ameno, ao entardecer. Quisera fosse outro o dia da semana, mas a premência das coisas não permitia vacilo. Não se arrumou muito, não exagerou no perfume. Diretor calejado, sabia que os exageros agora só poderiam furtar atenção à cena principal. O que interessava era o texto. O texto que tão bem soubera encontrar dentro de suas entranhas. "Mentira", ele pensava: resultado de labor, de exame de consciência, de razão. “O amor tenho-no enorme, e é ele quem me impele a colocar a inteligência a formular os motivos que me poderão trazer de volta a razão única desse mesmo amor”.
Resolvera, no limiar do encontro marcado, que não bastaria apenas dizer tudo que há para dizer, e que podia se permitir. Por mais que sua capacidade oratória estivesse treinada para o momento, nada venceria a força assaz persuasiva de sua escrita. E não que se considerasse o maior escritor do mundo, mas todo o crescimento de sua relação com ela se dera permeado pela palavra escrita. Então escreveu um bilhete. Nesse bilhete sintetizou o argumento que considerava fundamental para que ficassem juntos. Foi trabalho hábil, talhado com suor e revisão.
Embaixo do ipê, no costado do jardim da praça do coreto, se abraçaram demoradamente. Ele falou primeiro:
— Eu te amo, te amo muito, não é possível que não vamos ficar juntos...
— Eu também te amo...
Seguiu-se um silêncio arfante e as sanvitálias, que em princípio queriam que eles dali saíssem para aproveitarem a última réstia do sol, ficaram mudas de um ventinho miúdo que trouxe uma poalha de despedida. Ela falou:
— Nós já sabemos que não dá mais... Por mais amor que ainda...
— Ainda existe! Eu não sei como dizer isso, não sei que palavras usar... Eu só queria estar do seu lado, cuidar de você. Nós somos muito parecidos, somos melancólicos e estranhos, mas ao mesmo tempo ninguém consegue se divertir como nós conseguimos quando estamos juntos...
— De que adianta tudo isso? Tudo isso já foi dito e repetido. Só vim entregar seu livro e suas coisas.
— É isso mesmo, eu não sei dizer quando tenho que dizer. Por isso escrevi um bilhete, era pra você ler agora, eu ficaria aqui quietinho esperando. Mas não está neste livro aqui, coloquei em outro, me confundi, ficou em casa.
— Adeus, suas coisas estão aqui. Eu preciso ir.
— Posso mandar o bilhete para o seu endereço?
— De que vai adiantar? Eu estou indo embora.
Ela estava sentada em minha frente, mas não me olhava. Reparava somente na capa do livro, e eu não queria incomodar o seu pensamento, mas precisava partir. Falei com tristeza e doçura, recuando a mão antes de completar o movimento de tocar a mão dela:
— Ele me contou essa história desse jeitinho, dois ou três dias antes daquela quinta-feira terrível. Eu não posso dizer que ele sabia o que iria acontecer, mas estava tão triste e entregue que eu adivinhava algum movimento muito difícil.
— Foi essa a primeira vez que ele falou do bilhete?
— Foi a primeira vez. Esse livro ficou em minha biblioteca por quatro anos, intocado, e mesmo depois de tudo quanto ele me disse, só ontem tive condições de vir aqui abri-lo, porque sabia que precisava entregá-lo a você.
— Ele não me disse que o livro em que tinha colocado o bilhete era seu, mas naquela altura eu também não dei nenhuma atenção.
— Agora mais nada importa. Eu só queria que você ficasse com o bilhete, e se não for pedir muito, com o livro também...
Ela pegou o livro de cima da mesa, leu em voz alta o título “Os sermões, Padre Antônio Vieira”. Alisou a capa dura e azul, um livro antigo mas bem cuidado, de impressão agradável aos olhos, um pouco ofuscados que estavam pela claridade da manhã. Abriu-o e encontrou o bilhete, desdobrou sua única dobra e tencionou ler em voz alta, ao que eu protestei:
— Isso não me diz respeito, é de vocês. Ela continuou sem se importar com o que eu houvera dito:
— “Às vezes tenta-se dizer coisas indizíveis como eu tentei agora há pouco. E tudo se confunde, porque não dá para precisar em palavras o encantamento da alma de quem quer, como eu quero, simplesmente, delicadamente, estar ao seu lado. Estar ao seu lado para qualquer coisa, cuidar de você como quem se roja aos pés de algum santo. É certo que não sou o mais forte do mundo, e nem incondicionalmente posso prometer ficar aqui, mas é contigo que quero ficar. Somos estranhos, diferentes, melancólicos, tristes. Ao mesmo tempo somos alegres, engraçados, e ninguém mais ri como nós rimos quando estamos um com o outro. Sabe o que eu acho? Que a nossa estranheza, nossa melancolia e nossa tristeza só podem ser vencidas quando aproximadas uma das outras, porque nem eu nem você queremos ser uns palhaços rindo à toa da vida, como todo mundo ri, não queremos ser felizes por nada. Pelo contrário, acho que nós queremos ser felizes com bons motivos, e queremos aproveitar e destilar nossa tristeza quando ela tiver de ser destilada. É por isso que acho que a gente se encaixa tão bem, pois talvez saibamos como rir quando o riso é válido e sofrer quando só podemos sofrer. Por isso, vamos sofrer juntos, porque a gente tem a capacidade de rir e de sermos felizes juntos.
Quando ela terminou de ler e olhou para mim, encontrou os meus olhos fixados nela. Parecia estar comovida, mas também poderia estar resignada. Permaneceu por brevíssimo instante me olhando e como eu não dissesse nada, falou com a voz firme, mas forçando um sorriso nos lábios:
— É lindo. Me vejo e vejo a ele aqui. Essa sensibilidade que ele tinha para nos perceber e para me mostrar essa percepção foi uma entre tantas coisas que fizeram me apaixonar. Gostaria de ter lido isso na época, mas mesmo se tivesse lido, eu não teria ficado.
Meu avião sairia em duas horas. Não havia mais tempo para estar ali. A ele jamais poderia voltar a ver e foi a última vez que a vi. Não ficou com o livro mas dobrou o bilhete na mesma única dobra, e guardou dentro de sua bolsa.
(este texto foi originalmente publicado em 04 de outubro de 2007)

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

O colecionador de ipê-rosa

Na metade do mês de junho os ipês-rosa começam a florir. Como disse algum o jornalista Marcelo Leite, citando por sua vez um cientista de cujo nome não me lembro, o Ipê deveria ser considerado a árvore símbolo do Brasil. Ipês nascem do Acre até ao Rio Grande Sul, possuem uma capacidade adaptativa a terrenos e variações climáticas enorme, são duros, como o José que não morre. Parece-me serem cerca de nove as espécies de árvores que abrangem a categoria, sendo que não há sítio do país em que não se possa encontrar alguma delas. Os ipês florescem em amarelo, rosa, roxo e branco (até onde sei) e proporcionam um espetáculo tão bonito de se ver, que não é necessário ser muito mais sensível do que um besouro para quedar-se ao pé dum. Ouvi dizer que a madeira é das boas, mas, cara-de-pau-de-ipê que sou, nunca pesquisei.
Normalmente quando gostamos de algo, procuramos ler sobre, conhecer-lhe os meandros, os sinônimos onomásticos (se é que essa construção existe) e por aí adiante. Mas o ipê me traz um prazer visual e táctil tão profundos que não perdi tempo pesquisando sobre ele. Já está lá no manual prático de olhar e ver que eles são lindos e farfalham como poucas árvores. No mesmo manual percebe-se no pé da página da rua tal esquina com tal e qual que eles variam muito de tamanho, não sendo raro encontrar troncos enormes que resultam em copas enormes, e ali adiante, na porteira do fim da estrada de terra, um miúdo. Ocorreu-me agora que a variação de tamanho pode ser por conta da idade, e não somente pela espécie. Mas não ligo. Como disse, jamais estudei.
Exceto o Tabebuia avellanedae, que não é senão o ipê-rosa do início, flos desta história. Aqui na minha cidade há ipês para todos os lados. Desconfio de que os amarelos sejam mais numerosos em relação aos outros, mas o que ocorre com o rosa é uma apropriação das prerrogativas dos planetas e estrelas: quando floresce, o ipê-rosa eclipsa as demais árvores. E arrisco dizer, o que mais houver ao redor. Mania de aparecer, talvez; essas árvores resolvem dar as cores à luz num momento translacional em que a própria luz é tímida e, por isso mesmo, as matizes ficam escondidinhas, a ver no que dá. Dá no inverno árvores cor-de-rosa surgindo para acariciar com beleza um frio que tanto faz se é frio.
A cidade tem muitos ipês-rosa, e eu os coleciono. Coleciono o cor-de-rosa e não os de pigmentação vária por dois motivos básicos: a) porque no inverno estou mais propenso à introspecção que o tempo (que se não é o frio desejado, ao menos dá mostras) predispõe; b) porque sim. No inverno é bom sair pela rua a observar as coisas com olhos de ver. E as árvores, habitualmente exibidinhas que são à tal introspecção (introspecção só ao desatento parecerá contraditória com o ato de observar), dão em ipê exibidão no meio delas todas opacas. Ocorre também de o olhar ser um pouco mais que introspectivo no inverno, tornando a palavra (ou sua derivação - citada neste parágrafo quatro vezes) num eufemismo. Não sei se a beleza é mais bela quando afaga uma tristeza qualquer, mas a tristeza é sem dúvida mais límpida quando afagada por alguma beleza.
Tal qual a minha coleção de miniaturas de santos católicos, que embora eu já possua, ainda não adquiri o primeiro exemplar, assim se dá a coleção de ipês-rosa. Não só não os catalogo, como não guardo registros fotográficos ou de outra natureza deles (parece óbvio que escaparia às minhas forças resgata-los de onde estivessem e planta-los num ipezário ao pé da janela do meu quarto). No princípio das câmeras digitais, saia a fotografa-los e depois organizava seus endereços, latitudes e longitudes numa pastinha do windows chamada ipês-rosa araraquara que foi deletada. A rentabilidade colecionadora sem dúvida demonstrava enormes ganhos, mas o déficit sentimental logo se mostrou impossível de arcar.
Não é mais nem menos bonito ver um ipê-rosa quando se está triste, como também não é melhor ou pior vê-lo quando se está feliz. Pegar uma câmera e sair a pé pela cidade fotografando árvores é trabalho gostoso, demorado e sem sentido. Por maior que seja a cidade, e esta não é, os ipês acabam-se e há locais em que não se quererá ir, por isto ou aquilo outro, e então sobram duas soluções: a) pegar a câmera, o carro e ir para as cercanias ou bairros mais afastados caçar a malditas árvores; b) fotografar sempre as mesmas, que estão, por assim dizer, ao alcance das pernas. Como eu já argumentei, do ponto de vista volumétrico o carro serviria excelentemente ao desenvolvimento da coleção, mas, como também já argumentei, a perda sentimental não vale a pena. Isso porque a coleção de ipês tem de ser como a coleção de santos católicos: as possuo, mas não tenho nenhum elemento individual que as possam comprovar. Parece complicado, mas é na verdade muito simples. É triste que gosto de ver ipês. É triste que posso caminhar devagar pelas ruas que me levarão a alguns deles, é triste que os posso colecionar juntinho de mim. E é por isso, sobretudo, que não faz sentido possuir fotografias deles, ou eles próprios, fosse isso possível.
Há o ipê-rosa da Faculdade de Ciências e Letras, ao lado do ponto de ônibus do campus. Há o ipê-rosa das costas do Senai, à rua Alto Garças. Também há, pertinhos, o da esquina da rua Itália com a avenida Portugal, ao lado do coreto da praça Pedro de Toledo, junto ao seu vizinho da mesma avenida Portugal com a rua Carlos Gomes, número 700, fundos. Há o da esquina da rua Padre Duarte com a avenida Duque de Caxias, dentro dos muros do colégio Progresso, e ainda o defronte à Faculdade de Farmácia, que aliás, é o primeiro da cidade a perder as flores todas, vários dias antes dos outros todos. E há, finalmente, porque muitos ainda há, o da avenida Hipólito José da Costa, tão pertinho do colecionador que serve muito bem quando a tristeza é pequenina, pequenina, ou tão grande que só dá pra chegar até a janela.
Hoje fui colecionar o ipê-rosa do colégio Progresso (sito ao endereço acima citado). Fiquei pensando que os ipês-rosa, embora dividam o nome com todos os outros ipês-rosa são sempre únicos, inconfundíveis, porque estão. Estão e de onde estão não podem sair. Por pior que isto seja, jamais serão estrangeiros aqui, como em toda a parte. Demorei-me olhando para o ipê-rosa e me aproximei para ficar bem debaixo de sua fronde: eu não contei a ninguém, mas o farfalhar dos ipês-rosa produz neve cor-de-rosa. As flores caem muito tranquilhas, como se a árvore estivesse chorando de mansinho. Chorando sem soluço um chorinho de criança feito uma poalha. Se a gente se deixa estar em baixo da árvore, recebe de encontro as flores que mal tocam o corpo, e assim parece um abraço mandado à distância, prometido na outra estação e que nunca se chegou a receber. É claro que sempre se pode abaixar, tomar uma flor cor-de-rosa da calçada e, já que se agachou, ficar no rés-do-chão deitado, olhando de outra perspectiva o esboroamento das formas reprodutivas do ipê-rosa. A tristeza então é tão bela, que nem é preciso fechar os olhos para escutar os galhos da árvore executarem em dó menor o adagio cantabile da Sonata número 8, Opus 13 do Beethoven. Pathetique.
(por óbvio, não há foto de um ipê-rosa).
(este texto foi originalmente publicado em 13 de julho de 2007)

As flores de plástico

"As flores de plástico não morrem..."

Há modalidades de flores de plástico. Mais comuns são, evidentemente, àquelas destinadas aos mausoléus, ataúdes e sepulturas. O trajeto dessas flores plásticas é claustrofóbico, porque saem da fábrica em caminhões que as transportam a distribuidores que as revendem às floriculturas que ladeiam os cemitérios. Carregam consigo sempre alguma poeira, que se vai amealhando logo mesmo na planta de produção, passando pelo já citado veículo até chegar ao depósito onde, enfim, alojam-se. Nas floriculturas sobram-lhes as câmaras traseiras escuras, pois é certo que à vista as flores vivas (ainda vivas. A maioria já foi desligada da terra) têm preferência de mostrar seu colorido. Contudo, uma outra espécie existe. São essas as flores de plástico decorativas. Fabricos usados em ornamentação do que se chama ambiente. Banheiros, salas, saletas, garagens, algumas sacadas, cozinhas e sobretudo nas áreas de convívio das chácaras, onde, aliás, elas são depositadas e ajeitadinhas, normalmente, juntas de flores e plantas de verdade, isto é, aquelas que possuem seiva a lhes correr.
É certo que ambas as modalidades não necessitam de água e não morrem com facilidade, visto que na maioria das vezes são realmente feitas de plástico, material este que leva, dizem-nos sempre os ecologistas, mais de 150 mil anos para se desintegrar. Embora elas tenham a mesma composição e método de manufatura, somente a um observador bastante desatento seria dado imaginar que não há diferenças entre umas e outras, apesar do jaez em comum.
As flores de plástico de cemitério têm matizes frias, tendentes sempre ao azul e ao preto na escala de valor. Daí se preferirem as madrepérolas, as geisas, as violetas, e sobretudo a boa-morte. Quando chegam aos jazigos, são depositadas com calma, e as lágrimas, quando as há, a despeito de salgadas, só servem para fazer limpar um pouco o pó supracitado, num efeito paliativo, ou antes, enganador: a superfície que se molhou com a gota será tanto mais convidativa para o acúmulo de outras mais sujidades a que estão sujeitos os cemitérios. Depois, são lá esquecidas, e só visitadas aniversariamente. À mercê do tempo e do clima, das bátegas diluvianas, do sol acachapante, do vento, da poalha de inverno, são desgastadas e corroídas pela força assaz persuasiva do tempo, tendo seu material compositivo sobejados motivos de se esboroar. Não nos esquecendo de que as cores escuras maior quantidade de luz absorvem, o que acelera o processo.
De maneira diferente, a outra modalidade de flores de plástico são de cores quentes da alegria, da diversão, do sangue, da vida. Por isso mesmo representações de rosas, dálias, copos-de-leite, sanvitálias, miosótis, quando não girassóis mesmo. Maneirinhas ao lado das flores de verdade em jardineiras e outros demais lugares mencionados, apanham o sol fracionado por janelas de vidros e outras proteções urbanísticas, mas se estão ao ar livre, primas espaciais das verdadeiras, nunca tomam o sol na fronte todo o dia, e não se esturricam. Também o pó não lhes bafeja, uma vez que dado o ambiente salubre em que vivem seja sempre higienizado, e ainda por vezes lhes sobram umas gotículas animadas do que é aspergido às suas companheiras reais.
Ante o exposto, seria de se esperar que as flores de plástico da primeira categoria — quais sejam as atávicas da celebração da morte, ou sua memória — deveriam durar bastante menos que suas irmãs festivas, pouco degeneradas no seu dia-a-dia contente, ao lado, não só de flores vivas, mas também de pessoas vivas. Entretanto, a verdade comprovada cientificamente nos manuais práticos de olhar e ver é que o lapso temporal de existência e durabilidade das flores plásticas dos cemitérios é maior, de modo que suas irmãs enfeitadoras de banheiros, copas, salas e jardineiras são trocadas amiúdes e substituídas muito mais rápido do que o seriam as outras, caso houvesse interesse premente na ação.
Por um mecanismo já bastante conhecido do evolucionismo, lograram as flores de plástico de cemitério uma adaptação, talvez por mimetismo, às condições hostis do ambiente em que vivem (e dos esqueletos que reverenciam), sobretudo do ponto de vista metafísico, quando puderam notar de que não se pode perder muito de um líquido que cai gota a gota. Da percepção prostrada do caráter transitório da vida, do desapego mecânico com que puderam ao longo dos anos comprovar que nem mesmo a memória resiste à morte, adaptaram-se fisiologicamente a viver sem nenhuma espécie de sorriso ou esperança — e por isso sem movimento, o que é largamente conhecido como uma eficiente maneira de economizar energia. Suas irmãs risonhas, flores de plástico de jardineiras e decorativas de ambientes, pelo mesmo processo destilado acima, amolgaram-se pelo modos vivendi de suas companheiras vivas, atentas a todo instante aos movimentos, cores e sons da festiva existência humana. Os homens duram pouco, e as flores que os homens plantam, duram menos ainda. Na tentativa de aproximação de seus pares, as flores de plástico dessa categoria passaram a viver bastante menos (ainda que imarcescíveis), o que se tornou num dos fatores da redução categórica de sua produção, por conta de terem correspondido com ineficiência na margem do lucro. Em contrapartida, pôde-se observar um aumento na luminosidade dessas flores de plástico, já que com as companheiras vivas aprenderam que aquilo que rápido se extingue mais brilho oferece. Essa tendência evolutiva das flores de plástico felizes vem se tornando num paradoxo da teoria, uma vez que o caminho natural é a aniquilação da espécie. Não obstante isso, parece ao final concorreu-se para que haja aí um primeiro e último gene de contato com as suas irmãs flores de plástico de cemitério, qual seja a percepção arrastada ao longo dos séculos de que afinal, à morte, ninguém pode fazer esperar eternamente, corroborando com isso o príncipe hamlet, que muito anteriormente havia dito que se não sabemos nada daquilo que aqui deixamos, que nos importa deixa-lo antes?
(este texto foi originalmente publicado em 17 de maio de 2007)