sexta-feira, 6 de junho de 2008

Eu vou morrer

Eu vou morrer. "Tô terminando a prestação do meu buraco, meu lugar no cemitério pra não me preocupar de não mais ter o onde morrer. Ainda bem que nos mês que vem posso morrer, já tenho o meu tumbão" (Raul Seixas, Fim de Mês). Hoje eu descobri que vou morrer. Pois é, eu vou. Não sei exatamente quando, porque sou novo e minha saúde é irritantemente boa. Alimento-me muito bem e faço ginástica com regularidade de modo a manter minha pressão arterial apta a vencer qualquer escada sem precisar de um coração de três motores. Na minha idade, nunca me havia preocupado em começar a pagar jazigo ou cova com palmos ou sem palmos medida. É claro que já imaginara (se por acaso então cogitasse falecer) que um dia seria enterrado junto aos meus, de aqui ou acolá, e é bem verdade que sempre me interessou a idéia de ser depositado no mesmo cemitério do meu avô paterno, local ecumênico, bonito gramado salpicado de símbolos em concreto pintados de branco. Aliás, esse meu avô Joel, que lá sepultado não é mais que pó, sequer crânio de Yorick, foi quem me cantou a musiquinha do avião de pouco uso precisado de três amores.

Mas hoje soube que vou morrer. E descobri isso da maneira mais simples: já tenho onde ser enterrado. Cuidando das coisas de vovó, verifiquei ser beneficiário de plano funerário que cobre traslado, velório e jazigo, tudo quitadinho à espera silenciosa de eu bater as botas. Não é mordomia ou mau agouro para com a minha exclusiva pessoa: Vó Isabel cuida com desvelo dos tramites do passamento de todos os netos, além, é claro, dos três filhos que ainda estão bem vivinhos da Silva, Machado Silva. Eu não sei bem o que pense: ela que cuidou como lhe foi possível e bem (e tem cuidado) enquanto estamos todos vivos, resolveu estender os carinhos até, ao menos, o túmulo (é preciso, por dever de consciência, dizer que se dependesse dela, religiosa como poucas, também cuidaria do além-túmulo, intercendendo por nós junto a Ele, que segundo ela a tem em alta conta. Não respondo pelos demais dependentes do plano funerário, mas de minha parte pretendo entrar sem referências ou deferências na sala de deus, devendo, a meter-lhe pelas fuças o dedo em riste cobrando um pouquinho mais do meu demenso).

Sabe, eu não pretendia morrer. Tinha decidido firmemente transpor os séculos, impassível, soberbo e observando os tolos mortais deitarem papéis de sorvetes de limão pelo passeio. Mas diante da descoberta de que tenho já lugar cativo debaixo da terra, e melhor ainda, com serviço completo das fainas envolvidas, vou citar Manuel Carneiro de Sousa Bandeira: sei que é grande maçada morrer, mas morrerei. E lembrando também o meu parente Machado de Assis (Lívia, ele se chama Joaquim Maria), agradeço à Vó Isabel esse conforto plácido de saber-me onde descansar a carcaça nada hamletiana: que a terra me seja leve, já que está quitada.
p.s. - peço desculpas aos leitores por não ter publicado o texto na terça, e depois atrasado quando disse que o faria na quinta. Realmente tive contratempos, mas espero que isso não se repita.

4 Pitacos:

Dura na queda disse...

Gostei. Dentre tantas maneiras de dar com a cara na Morte, de descobrir-se vivo sempre a morrer, essa sua descoberta veio tão simples que deixa mesmo a terra mais leve, não apenas por estar quitada, mas especialmente por ser artimanha de vovó.

"A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres."

Não vá, então, meter o dedo na fuça do senhor a cobrar o pão! Deixe tamanha impavidez para os outros últimos impassíveis que por aqui ainda caminharem, rapaz! Será que nem morto vai deixar de questionar as complexidades mundanas? rs...

Beijo.
p.s.: cumpri direitinho o meu dever e fui procurar 'demenso'no dicionário. Longe de mim acabar igual a essa Lívia que nem sabe o nome do Machado!

Anônimo disse...

Não resisti e pedi ao filho do avô para cantar a musiquinha do avião de pouco uso e só então entendi a legenda de uma específica foto do orkut do cantador. Assim como lá na foto, aqui são tantas as referências no texto que é impossível ler sem fortes emoções e evocações, ainda que a
beleza da construção do texto, por si só, em nada perca sem tais referências (as por mim identificadas, claro).
Um beijo

Juliano Machado disse...

Lívia, mas olha o poema maravilhoso do Bandeira vindo pôr as coisas nos seus devidos lugares.

O dedo em riste não me escuso de enfiar: ora, se nem isso puder reclamar com quem de verdade manda, estou bem arrumado.

Que bom que foi ao dicionário, inclusive, não sei se lá diz o quanto, como de costume, deixei o termo anacrônico.

obrigado pelos sempre ótimos comentários.

beijo.

Juliano Machado disse...

Marlene, não sei que escritor disse que vivemos para dizer quem somos. Logo, escrevemos para isso também. As referências estão todas aí, mas ouvir que sem elas, ou mesmo alcançadas a meio, fica o texto valendo a pena. Obrigado.

beijo.