terça-feira, 27 de maio de 2008

Todos os sabores o sabor*

Ela é feiosa, tem uma capa cheia de espinhos moles que mais lembram uns cabelos endurecidos, parece rota, é sem dúvida opaca. Confesso que tive até um pouco de medo quando ela me foi mostrada, elas foram, porque na verdade seriam nove ou dez. Estavam, por cuidado, juntadas numa tigelinha toda delicada: branca, desenhos bonitos e singelos. A lichia (estranho nome!) abriu na primeira mordida mostrando-se-me toda alva no por dentro. Saborosa, adocicadinha, amarguinha, mas tépida como só o poderia ser o sorriso arregalado de quem tinha levado a frutinha para mim.

Todos os sabores o sabor. Já eu não sabia, então, se fruta ou sorriso e tudo amanheceu. Fiquei com cara de caso a olhar quem me dera a lichia. E isso não era senão o sabor. Experimentei sabores muitas vezes no sabor do sorriso de lichia, vez vendo o Joaquim brincar para sorrir, vez vendo o sorriso sorrindo por sorrir, vez vendo a lichia com a boca, gostando-a aos poucos para perceber no gosto tão peculiar e genérico o alcance de todos os sabores dos sorrisos a partir de ali. Ipês têm sabor de lichia. Barulho incompreensível da boca ao dormir tem sabor de lichia. Osso tem sabor de lichia. Todos os sabores o sabor tem sabor de lichia no sorriso. As coisas todas no caminho vão passando, a visão se cansa, o olfato e o paladar se cansam. Esquecem-se e apagam-se as imagens, os gostos, os cheiros, o sabor. Mas Todos os sabores o sabor não mingua, não some, não se olvida, não deixa de ser sabor pela boca, olhos, cheiro, menos ainda pelo coração.
* - obrigado a Júlio Cortázar pelo empréstio forçado do título.
p.s. - Mas sobeja que o poeta é um fingidor, finge tão completamente que chega a fingir sabor, o sabor que sequer experimente. De lichia, claro.

8 Pitacos:

Jú Pacheco disse...

Ai, ai, ai...
(suspiro)
Achei lindo e roubei!

Anônimo disse...

Que lindo, Ju.
Belíssima construção. Que perfeição isso:"Mas Todos os sabores o sabor não mingua, não some, não se olvida, não deixa de ser sabor pela boca, olhos, cheiro, menos ainda pelo coração." Que gosto de bolinho de pinga da minha avó materna!

Anônimo disse...

algo saiu errado: "anônimo" acima -> Marlene
beijo

Dura na queda disse...

Adorei o correr do texto. O segundo parágrafo veio assim do jeito que vêm as lembranças quando nos assaltam os sentidos- de uma só vez, tirando o fôlego e amainando a euforia do coração diante de um momento, sorriso, imagem ou qualquer outra coisa que já foi mas não deixou de ser.
E no finalzinho essa construção gostosa que todo mundo adorou, atestando que algumas coisas permanecem, independentemente dos sentidos, do caminho, dos tombos.
Pra mim isso tudo tem uma significância enorme,pensando no tamanho do recipiente colorido que a minha cidade natal recheia de sabores - não de lichia, e sem fingimento!

gostei muito, ju. mas me afastei do texto e me aproximei de mim.
beijo.

Juliano Machado disse...

Jú Pacheco, chama-se furto! furtou mesmo, estou sempre no Contra o vício, logo comento. Obrigado por vir aqui gostar.

Juliano Machado disse...

Marlene, que bom que gostou! Em tempo: essa receita do bolo de pinga ainda está na família? Apetece expermintar, não?

beijo.

Juliano Machado disse...

Lívia, os seus comentários já me deixam inquietos: são mais interessantes, mais bem escritos e mais gostosos do que o texto! Mas é um prazer ter uma leitora competente me lendo assim, e melhor, gostando.

O texto é seu, aproprie-se ou afaste-se ou faça o que bem quiser dele. E para o leitor que ele foi escrito.

Obrigado por vir sempre, e comentar sempre.

beijo.

Unknown disse...

Amei!