terça-feira, 29 de julho de 2008

A Carta

Araraquara, 05 de setembro de 2011
Tenho gostado quando chove. De minha escrivaninha ouço a chuva bater nas folhas secas que irremediavelmente sobejam no quintal. Ainda não descobri qual é a árvore que plantei há quantos anos e caduca em agosto (e derruba flores brancas que em verdade duram somente dois dias, na metade de setembro). Não sei se quero descobrir. Hoje tenho medo de saber de que espécie é, como sempre soube no caso do oiti. Essa dúvida me parece bondosa porque percebo que quando tudo faltar, e faltará, terei algo ainda a procurar. Está anoitecendo, a bátega forte me dá a sensação de ilha. Então eu campeio o marcador de livro, aquele com o molequinho negro sorrindo (eu tenho tantos molequinhos negros sorrindo), fecho o tomo e vou ver da área da casa o vento folhear as ramas da hera. Estou vestindo uma calça jeans, meias marrons e um ridículo chinelo velho. Estou sem camisa. Tenho ficado muito em casa sem camisa, e imagino que você saiba disso (não se lembra disso porque não se lembra de nada, mas vai saber quando a carta chegar).

A chuva aumentou. Curioso como a evidência física da água, até mesmo os borriços que respingam para o meu rosto e o meu peito, tem a competência de me tirar a noção de tempo: sei que estou pensando em você há muito, sei que só deixei o romance e fui ver o corisco porque penso em você, mas não sei mais quando foi que perdi você. É como se os calendários se esboroassem, ou as convenções e fatos banais do cotidiano não tivessem data, pois não consigo raciocinar temporalmente enquanto penso em você. Freqüentemente, então, tenho de voltar às fotografias. Tenho muitas fotografias. Tenho fotos reveladas, tenho tantas em nossa pasta no computador. Prefiro sempre as que você está sozinha. Depois delas, as que está com outras pessoas, mas não gosto de ver as que estamos juntos. É covardia, eu sei, mas é a demonstração evidente de que se estivemos juntos naquelas fotos, não estamos mais agora. Não tenho dificuldade em admitir a minha culpa, mas tê-la perdido pesa tão doloridamente porque eu a tive, e só existe essa vida.

Pensara em telefonar, mas sei que o telefonema resultaria inútil. Em primeiro lugar, é impossível que você fosse me atender, e em segundo lugar, não sei mais quais sejam os seus números (é claro que eu poderia descobri-los mais facilmente do que se chega ao número da pizzaria da esquina, mas a necessidade de buscar algo que deveria ser memória latente me acabrunha). Eu me encolho e encosto numa das paredes. Estico a mão até ao ponto em que algumas gotas mais pesadas me toquem. A chuva recrudesceu ainda mais, o céu está escuro e mais belo.

Esta noite pensei em deixar o trabalho, fazer uma viagem, ir para a França. Preparei um uísque e vim cá escrever esta carta. Se o serviço e os amigos (ou a falta deles) fossem um problema realmente sério, seria muito fácil resolver: largaria o trabalho, abandonaria os amigos e iria para Paris ( e o dinheiro nunca foi problema). Mas fugir do que não está perto é uma angústia tão imaterial que se torna em angústia da angústia, numa figura de sentimento, metáfora ou comparação que não sei inventar para lhe explicar. Também concedo afinal que não se interesse em saber o que diabos eu sinto de qualquer porcaria das ninharias de minha vida.

Agora considero que terei de descobrir o seu endereço e me deparo com uma constatação incomoda: eu tenho o seu endereço e sei que está correto e é atual. E sei disso porque ouvi de relance num evento estúpido de pessoas conhecidas. É evidente que não posso saber se você está em sua cidade ou viajando, mas mesmo que sua última estada em sua última morada seja para despachar as bagagens, se envio a carta de agora amanhã cedo pelo serviço de urgência, você a irá receber, invariavelmente, nalgum momento (aqui mecanicamente excluo as possibilidades da minha e da sua morte nesse intervalo que separaria o meu envio do seu recolhimento da missiva, além de outras desgraças desnecessárias pelo óbvio motivo de que morrer seria covarde demais até para a minha vileza).

Reli os outros parágrafos e percebo que não posso mais protelar o que tenho a dizer: eu ainda amo você. O morto-vivo em que me transformei, e que só tem por prazer ler romances e olhar a chuva cair quer saber se você ainda se lembra do meu nome e do meu rosto. E porque não faço a menor idéia de como saberei isso já que não terei respostas às minhas perguntas, calculo que talvez deva ser mais severo nas palavras que, afinal, se foram lidas, não serão respondidas.

Mas não serei. Estou cansado e infelizmente parece que a chuva vai amainar. Decidi então enviar estas folhas para outro endereço. O endereço dos seus pais. Não tenho a menor dúvida de que estou enlouquecendo e agora acredito que posso ao menos me furtar do ridículo da vergonha se aparentar insanidade. Sua mãe me disse uma vez que a melhor parte de nossa separação era não ter mais de olhar para mim. Eu era muito bonito e não quis compreender a afirmação. Como sei que seus pais não abrirão a carta e lha enviarão a você, acho que posso finalmente contar a verdade.
Estou indo para Londres. Sei onde você mora e chego uma semana depois da carta. Vou procurá-la, vou devolver o que você me pede desde então. Não quero mais manter um objeto que não tem valor para mim, exceto pela função indispensável de me colocar na sua frente pela última vez. Calculo que seja um preço justo, o seu desespero por reavê-lo, o meu desespero por vê-la novamente. Ninguém saberá disso, e apesar da minha loucura, e da chuva que nunca cessa, calculei todos os movimentos (por isso seus pais recebem a carta primeiro). Vou querer abraçá-la antes de lhe entregar o que é afinal seu, se eu não estiver num estágio muito avançado de um sonho bom.
Vemo-nos em breve,
J.

9 Pitacos:

Jú Pacheco disse...

Ai que lindo!!!
O texto me deu uma rasteira... temas de amores distantes e viajens de reencontros sempre me derrubam sem aviso.

Lindo, lindo.

PS. quem é juliano machado? não faço a MENOR idéia. e não faz diferença... pra mim bastam os textos, a intimidd que me trazem e se em algum momento isso incomodar, pare de escrever um blog! rs...

Tatiana Machado disse...

Lindo, Juliano, lindo. Assim como Jú Pacheco, gosto muito desses seus temas de amor em forma de cartas e reflexões chuvosas. A trama que vai se desenrolando e não termina. Terá um próximo capítulo? Gosto muito das sensações que seus textos provocam, a solidão aqui, a angústia acolá. Mas nesse, em especial, é o porvir. Haverá continuação? Cenas do próximo capítulo? Eles se encontrarão? Que objeto é esse? Tudo o que não é dito e que no fundo não importa criam um clima muito interessante no conto: a possibilidade de prever uma intimidade, imaginar um carinho, fantasiar uma história passada, pensar no que virá. E nada disso pertence ao leitor, nada ele pode acessar. Mas o sentimento que leva o eu-lírico a escrever a carta e que talvez seja o que de nela há de mais íntimo, está aí, disponível, para quem quiser ler e sentir.
Se não almeja o poético, azar o seu. Ele está aqui, como estava lá, sendo almejado ou não.

Tatiana Machado disse...

Voltei, perdoe-me. Mas não poderia deixar de dizer o quanto gostei dessa passagem: "Mas fugir do que não está perto é uma angústia tão imaterial que se torna em angústia da angústia, numa figura de sentimento, metáfora ou comparação que não sei inventar para lhe explicar."

E, com isso, penso não ser necessário explicar a arrogância possivelmente atribuída ao ato de definir taxativamente o que seja ou não poético. Está aí, é só olhar.

Elcio Machado disse...

Em setembro, 2011, num especial dia 5. :o) Não sei bem qual a discussão que rola, mas concordo de pronto com a Tatiana: poético é. Ainda antes, no texto, da passagem que a Tatiana destacou, chamou-me a atenção esta outra: "Então eu campeio o marcador de livro, aquele com o molequinho negro sorrindo (eu tenho tantos molequinhos negros sorrindo), fecho o tomo e vou ver da área da casa o vento folhear as ramas da era." Hera, acho, mas o caso é que era também cabe. Folhear não é, por acaso, também um marcador de tempo? E quanta intimidade com o verbo "campear", campear algo que se tem aos montes! Se está a restar dúvida sobre o que é poético, quanto à beleza não resta alguma: é lindo.
Beijo

Anônimo disse...

Uau... m a r a v i l h a de texto!
Encadeamento perfeito que nos conduz a sensações vívidas e emocionantes demais. Este desfecho em aberto resultou num efeito impar e que Tatiana ressaltou tão bem.
Aliás, a sensibilidade dos comentários anteriores, os destaques de alguns primores, também mobilizam muito.
Afora o ônus que lhe possa porventura pesar, de minha parte (e certamente de muitos que lhe querem bem e admiram sua produção), reafirmo: bendita decisão essa sua de se comprometer a publicar semanalmente, o que nos brinda com a possibilidade de pegar uma carona poética - sim!!! - e, me desculpe, mas esse sentir é nosso, você querendo ou não, como disse a Tatiana.
beijo, Juliano.

Unknown disse...

Jú, há tempos não visitava seu blogue, como você sempre diz, eu estou sempre envolvida em trabalho, trabalho e trabalho. Mas, confesso que depois de ler este poste não vou conseguir deixar de apreciar os próximos.
O dia chuvoso que nos foi presenteado hoje em Araraquara e a tua incrível habilidade com as palavras me torna muito mais sensível aos efeitos da literatura e, por isso, mais chorona também.
É, realmente, um texto lindíssimo. Ficaria muito contente, assim como a sua irmã, se houvesse um próximo capítulo.
Beijo no coração.
Patrícia.
Ps.: Obrigada pelas sensações maravilhosas que seus textos trazem.

Anônimo disse...

Parabéns garoto.
Como lhe disse uma vez, estarei sempre presente! mesmo vc achando que estou longe !
Abraço Amigo.

Juliano Machado disse...

Ju Pacheco, temas de viagens e amores acabam cativando sempre, né? Sacanagem do escriba. Viu que quase segui seu conselho de parar com o blogue, né? Mas foram outros os motivos, tanto que aqui estou. Me desculpe por demorar a responder.

Anônimo disse...

... desconhecia esse texto,mas confesso que me emocionou...