Não cumprir um dever
Ter um livro pra ler
E não o fazer!
Ler é maçada.
Estudar é nada(...)
(...)Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma(...)"
Fernando Pessoa in "Liberdade"
Tuberculose
Tomei contato com a obra de Critovão Tezza em meados de 2009, ano em que seu livro "O Filho Eterno" açambarcou todos os prêmios possíveis em língua portuguesa (o que rendeu ao autor além de fama e reconhecimento uma considerável – considerável mesmo – quantia em dinheiro). Encantei-me pelo livro, e em conseqüência pelo escritor, de maneira que lhe fui ler outras obras. Num dos livros que campeei, "Trapo", história de um jovem poeta que se suicida (não atrapalho a leitura de ninguém, isso é dito na primeira página do livro), achei lá um trecho em que o protagonista deixa escrito que lhe falta uma tuberculose. Batata: lembrei-me que, também adolescente, metido a escrever versos (não bons como nos faz supor o narrador do livro do Tezza seriam o do poeta suicida) também pedia, num poemeto pacóvio, um lustre e uma tuberculose (o lustre tinha que ver lá com o tema do meu poema e é absolutamente desnecessário citar aqui). Imagino que nove entre dez adolescentes que foram razoáveis leitores em suas épocas de colégio (e razoavelmente tristes também), escreveram versos e pensaram em tuberculoses e nos poetadas malditos, Alvarez de Azevedo da vida. Então, achar aí alguma grande coincidência literária seria ingênuo, o que não fez da leitura e da comparação menos gostosa (pô, fui um adolescente metido a poeta e triste, e queria ter tuberculose, cara!). Deixo a dica de um excelente escritor contemporâneo: recomendo vivamente Cristovão Tezza nos livros "O Filho Eterno" e "Trapo", ao menos.
Altura
Na última terça-feira li na Folha de S. Paulo uma interessante matéria a respeito de um rapaz, morador de rua em São Paulo, que por medo da violência (ele se refere ao menos a dois episódios marcantes, quando queimaram sete mendigos na Sé em 2004 e da execução de cinco moradores de rua no Jaçanã em 2010 – pausa: Por que diabos Adoniran Barbosa diz na famosa canção "moro EM Jaçanã, se eu perder esse trem..."? Não sou paulistano, mas estou muito enganado ou se chama o bairro aí por no Jaçanã?), retomo. André Luís Rodrigues Agusto, 23 anos, analfabeto puríssimo, como ele mesmo se autodefine, resolveu morar a seis metros de altura do chão numa figueira-branca no centro da capital. Embora não se sinta exatamente feliz por lá morar, diz que a altura não o incomoda, que as pessoas embaixo falam com ele, suas namoradas sobem na árvore à noite, mas que, obviamente, pretende ainda mudar de vida "porque ninguém quer morar numa arvore pra sempre".
Acrofobia. É nome que se dá para quem tem medo de altura. Eu tenho, muito. Não chego perto de para-peitos nem de sacadas de prédio. Cenas em filmes e pessoas em locais altos e desprotegidos me causam mal estar grande. A ciência não explica perfeitamente o porquê, mas pode ser algum trauma de infância, embora haja uma linha de pesquisa ainda bem inicial que relaciona à um problema genético, uma certa alteração que se verificou em pessoas com medo de altura (em Portugal chamam graciosamente a essas pessoas de sofredores da atracção do abismo). É claro me lembrei de Kafka. E fui ao conto preciso, assim que terminei de ler a matéria. "A Primeira Dor", do livro "Um artista da fome/A Construção". Nesse conto o protagonista é um trapezista que, para aperfeiçoar infinitamente sua arte, vive no trapézio. Nunca sai de lá. É apenas abordado pelos que trabalham nos reparos das estruturas superiores do circo e por outros trapezistas menores a quando do espetáculo. Não vou contar o resto para não estragar a história, mas a patente diferença entre a metáfora kafkiana da solidão relacionada à altura e a incompreensão de quem não vê o outro fica evidente como o paradoxo dos moradores de rua: no chão, deitados, são parte da paisagem da metrópole e nem notados, quando um subiu na vida, foi visto e saiu até no jornal. Recomendo vivamente a leitura do livro do Kafka e desse conto em questão, para que saibam que fim toma o nosso herói trapezista (do nosso herói da figueira duvido que ouviremos falar novamente). Em tempo: no mesmo dia, o jornal publicou matéria em que pesquisas indicam que a aplicação de cortisol em pacientes em tratamento contra fobias (sobretudo acrofobia) tem resultados porcentuais muito melhores do que o grupo de controle tomando placebo, como se o cortisol servisse para ajudar a concentração do cérebro para aprender a lidar com a fobia.
Comuns
Essa literatura feita de homens comuns, de gente ordinária, me interessa sobremaneira. Não é uma crítica aos clássicos, aos Hamlets e Odisseus, até porque venero os clássicos. Mas há ótima literatura (até nos clássicos) tratando a gente ordinária e colocando a vida em seu devido lugar: passageira, tênue, precária e breve. Se considero banal que um jovem escreva versos quando triste na adolescência e digo que eu mesmo passei por isso, se trago ao nível da percepção do isolamento e da inadequação um morador de rua que escolhe uma árvore para viver, se trato um trapezista maluco como apenas um solitário sem par é porque somos homens comuns, tentando sobreviver em meio à "opacidade do mundo". Quando esses meninos envelhecem, ainda continuam banais.
Philip Roth escreve um belíssimo romance chamado "Homem Comum" em que descreve e destila a vida de um sujeito absolutamente normal, imerso num cotidiano cercado pelas mazelas do dia a dia, as frustrações das más escolhas, as pequenas felicidades e tudo quanto forma a vivência de todos os dias. Roth se concentra, na verdade, na velhice. Mesmo durante a juventude da personagem, o questionamento sobre a existência é um totalizante mal estar quanto ao fim inexorável da vida. Mas Roth vai além. Explica como a velhice não é uma batalha, mas um massacre, e um massacre que tende a se tornar solitário (como melhor ainda explica Norbert Elias em "A Solidão dos Moribundos"). Recomendo vivamente a leitura de "Homem Comum", de Philip Roth.
Morte
Quando forem ler o livro de Philip Roth, na primeira página encontrarão a descrição de seu enterro. Portando nada estrago dizendo que ele morre. Assim como em "A Morte de Ivan Ilitch", uma estupenda novela de Tolstói (na qual não tenho a menor dúvida Roth bebeu para escrever seu romance), pelo título nada atrapalharei a quem for se aventurar a ler dizendo que Ivan vem a falecer. Ivan Ilitch é um homem desprezível e banal. Mas enfermo, passa a reparar em coisas que antes não prestava atenção. Aqui se trata de notar que diante da fragilidade da existência (a tuberculose e o suicídio dos poetas, a solidão dos esquecidos, o massacre acachapante aos idosos) é o momento em que nos tornamos ainda mais parte de uma coisa só, mais comuns, mais banais, mais atados ao medo ontológico que nos define, e então conscientes do quão ingente é o caráter transitório da vida. Não vou contar as mudanças ou não mudanças na atitude das personagens todas descritas na hora de morrer (exceto nosso amigo da figueira que ainda deve – saberá deus – estar vivo), mas dou uma dica para Ilitch: Tolstói ainda não era um benevolente e recluso pastor de almas como foi ser no final de sua vida. Recomendo vivamente a leitura da novela "A Morte de Ivan Ilitch" de Liev Tolstói.
Rir
Euclydes da Cunha, embora tenha sido quem foi, se sentia um homem ordinário e dizia: "nunca perdi este traço de filho da roça que me desequilibra intimamente ao tratar com quem quer que seja". Apesar de tudo quanto produziu, Euclydes sofreu com as pequenas coisas comezinhas do cotidiano avassalador que assola a todos nós e sua morte foi, dizem-no muitos, mais um suicídio do que um assassinato (morreu num duelo com o amante de sua esposa). Só como curiosidade, seus parceiros, incentivadores da república, Raul Pompéia: também se matou; Silva Jardim: acreditem – caiu dentro do Vesúvio. Manuel Bandeira dizia "tenho medo de ter medo na hora de morrer". Alguns têm, outros não terão, isso mais nos afasta como homens comuns do que nos aproxima. O que, então?
Bergson nos ensina que "o riso de si mesmo é capacidade somente humana" (eu acrescento: o jacaré chora, por exemplo). Bakhtin e Freud disseram cada um a sua maneira que o riso zombeteiro pode enfrentar a dor e a obscuridade de encarar a morte. E por fim, recentemente, o Roberto Damatta retomando outros grandes contou-nos que o riso ou rir dos poderosos, dos políticos poderia ser aquilo que como a morte nos coloca a todos como seres humanos comuns. Há um poeta de que cada vez gosto mais que se chama Nelson Ascher. Contemporâneo, vivíssimo e em plena atividade, publicou seu último livro de poesias em 2005. A poesia de Ascher é irônica sem ser cínica e nos convida, sabendo que "todos os trilhos vão dar no matadouro", a olhar para o fim silencioso e brutal com a única das armas possíveis: o humor. A sátira, então, para estes pensadores e para o nosso poeta seria a maneira de lidar com a banalidade da vida e com a conformidade de que todos somos, de alguma maneira, comuns em momentos pontuais de nossas vidas. Ao final, o que eu pretendia dizer é que não há respostas para perguntas que se refiram ao sentido das coisas e da existência humana, que a vida é miserável e comum, mas que ao menos podemos aproveitar para ler uns bons livros enquanto ainda nos resta a visão e um tempinho cá na Terra (que como tudo, vai acabar também). Recomendo vivamente a leitura de "Parte Alguma" de Nelson Ascher.
"O FILHO ETERNO". TEZZA, Cristovam, Record, 2009.
"TRAPO". IDEM.
"UM ARTISTA DA FOME/A CONSTRUÇÃO". KAFKA, Franz, Companhia das Letras, 1998
"HOMEM COMUM". ROTH, Philip, Companhia das Letras, 2006
"A MORTE DE IVAN ILITCH". TOLSTOI, Liev, Edições Saraiva, 1963
"PARTE ALGUMA". ASCHER, Nelson, Companhia das Letras, 2005.