terça-feira, 10 de junho de 2008

Divino

O boteco do seu Divino fica na Marechal Deodoro da Fonseca esquina com a avenida Cientista Frederico de Marco. Chama-se Divino´s Bar, pois. Todos os dias, logo que o dia começa a querer ir embora, por volta das dezessete e trinta e oito, formam-se as mesas de truco com os ébrios presentes. Evidente que o grau de embriaguez varia de freguês para freguês, mas não se tem notícia de jogador ou torcida que tenham pedido groselha (não conta o Geraldinho, que foi buscar uma coca-cola pet para a mãe e aproveitou para escutar um seis e comprar chiclete). As pelejas seguem até por volta das onze da noite, horário limite convencionado mais ou menos naturalmente, uma vez porque a vizinhança tranquilha do bairro tolera até com boa vontade a rapaziada, outra vez porque a pinga ingerida é tamanha que a essas horas muitos heróis já tombaram.

As portas do boteco do seu Divino têm com freqüência aparecido fechadas. Cruz na porta do Divino´s. Quem morreu? O próprio Alves. Seu Alves foi o primeiro de uma série de seis fechamentos no lapso de um mês. O dono do lugar explicou que chega uma certa hora em que a idade e os maus tratos da cachaça começam a furtar os bons amigos aos borbotões. Argumentou, com pesar divido, que não podia abrir o boteco no dia do falecimento de um companheiro de sina. Especula-se que talvez funcione como em Mangueira, onde ao morrer um poeta todos choram, de modo que seu Divino viva feliz em Divino´s porque alguém há de chorar quando ele morrer. Esse afastamento do medo de morrer sozinho faz a paga do prejuízo amealhado com o dia de trabalho perdido nos dias do velório: porque é assim, fecha-se o bar somente no dia mesmo do velório. O data da morte e do enterro são convenções de outra burocracia.

Estando assente e facilmente verificável no dia-a-dia dos convivas que se estava a morrer amiúde no boteco, cotizaram-se os companheiros a reunir recursos financeiros destinados à compra das coroas de flores dos futuros finados (isso foi lá pela altura do passamento do seu Mário, terceiro ou quarto contando a partir do Alves, embora ninguém o saiba ao certo). Ao contrário dos mortos, que nunca o estavam meio, a empresa deu mais ou menos certo, pois: a) houve certa dificuldade em arrecadar uns trocados, porque diminuíam a quantidade dos tragos, mas seu Divino com tino, comercial, baixou um desconto na cachaça correspondente à diferença entre a idade do defunto e cem anos, nos três dias de luto oficial subseqüentes (esse fato gerou também uma renda extra por meio de um bolão não sobre os defuntos, mas a somatória das diferenças das últimas três mortes, já que virou moda ninguém mais lembrar a ninguém com quantos anos andava); b) as coroas passaram a ser entregues à cabaceira dos ataúdes com as inscrições de praxe seguidas da seguinte frase: “dos amigos do Divino´s ainda do lado de cá, esperando que o Divino Senhor o receba contente”. Em princípio as famílias aplaudiram o gesto de boa vontade e lembrança dos companheiros de copo, mas então um parente do Julio Andochama (o Julinho das Canelas), rapaz novo mas já observador dos bons costumes, achou de perguntar quem houvera criado a frase. A má sorte foi que seu Juarez, um dos truqueiros mais antigos do Divino´s, apontou para o Chiqunho, que efetivamente fora o criador da sentença, bem no momento em que este caia em cima do colo de duas primas do falecido de ocasião, sendo que no estabanado movimento de desvencilhar-se das senhoras, a uma levantou-lhe largamente as saias. Chiquinho era o mais frequentemente bêbado entre todos os freqüentadores do boteco, e recebeu, por ironia, a última coroa de flores dos amigos do bar, alguns meses depois. Após o sucedido, a homengem florística era aceita ainda, mas nunca bem recebida.

Seu Divino ouviu de alguns dos familiares da vizinhança que era melhor acabassem com aquela carpideira poupança, pois todos por ali andavam a torcer o nariz para a idéia de receber a coroa dos bêbados do bar. Houve até uma senhora que especulou não seria a palavra “contente” do excerto uma galhofa que remetesse a uma possível embriaguez de Deus no recebimento do defunto da dita confraria. Foi quando João morreu, o sétimo ou oitavo tomando por início o Alves. Por um daqueles instantes de afinidade mental quase inacreditável reuniram-se ao mesmo tempo os fregueses à frente das portas fechadas do bar Divino´s. Deu-se assembléia em que ficou decidido que não mandariam, afinal, a coroa de flores, e que o dinheiro seria juntado ao montante das apostas do truco do dia seguinte. Seu Divino concordou, mas obstou que era necessário que então se fizesse, de alguma maneira, uma homenagem ao falecido que não receberia as flores: comprariam um troféu (simples), que receberia o nome do morto. Tomado o gosto pelas deliberações, propôs-se ao seu Divino que abrisse o bar no dia do velório dos próximos chamados por Jesus, comprometendo-se aqueles desclassificados no torneio oficial em homenagem ao falecido a comparecerem o mais depressa possível no velório, a representar o bar.

O Divino´s bar agora não fecha mais as portas quando algum freguês vai dessa para a melhor. Como em Mangueira, que chora os poetas quando morrem, o bar da Marechal Deodoro da Fonseca com a Cientista Frederico de Marco não deixa seus irmãos sozinhos na hora do último adeus. A pinga tem o desconto da diferença da idade, o total da aposta do truco é bom dinheiro mesmo descontado o troféu que carrega o nome do defunto, as portas só se fecham quando o trio vencedor vai embora. Se calhar de alguém arranjar um violão, acredita-se que um sambinha até vá nascer a quando dos futuros passamentos.

4 Pitacos:

Unknown disse...

(Fuvest/2162)
Literatura

1-) Que intenção teve o escritor Juliano Machado em seu conto Divino(encontrado na obra Bazofia-coletânea de textos) ao movimetar seus personagens para trocar a coroa de flores por um trof�u?

Dura na queda disse...

Quando eu morrer não quero choro nem vela
Quero uma fita amarela gravada com o nome dela
Se existe alma, se há outra encarnação
Eu queria que a mulata sapateasse no meu caixão
Não quero flores, nem coroa de espinho
Só quero choro de flauta, violão e cavaquinho
Estou contente consolado por saber
Que as morenas tão formosas a terra um dia vai comer
Não tenho herdeiros, não possuo um só vintém
Eu vivi devendo a todos mas não paguei nada a ninguém
Meus inimigos que hoje falam mal de mim
Vão dizer que nunca viram uma pessoa tão boa assim
Quero que o sol não visite o meu caixão
Para a minha pobre alma não morrer de insolação

...

pra um lugar de 'passagens',como o Divino's, talvez seja melhor mesmo manter uma prateleira de troféus. A coroa de flores murcha e tem fim certo lá no cemitério, talvez até no velório mesmo. Com um nome gravado no troféu, o ébrio defunto tem mais chances de ser menção honrosa ao menos em alguma partida de truco regada a samba e muita cachaça.
Antes receber lá do além um brinde cambaleante do grande companheiro de boteco ao saber de um fofocar das vizinhas dizendo que o "bebum já foi é tarde".

e como você já pode se meter a morrer, acho que os amigos já podem irem-se organizando pra comprar o troféu! rs...

beijo

Juliano Machado disse...

Annie, torço para quem em 2162 os critérios de ingresso em faculdades (ou lá o que sejam no futuro) não sejam estes de hoje, péssimos e pouco interessados na diversidade e no conhecimento.

Quanto o que teria querido o escritor (que não é escritor) com a troca de um pelo outro, provavelmente, divertir o leitor.

Obrigado por vir ao blogue e comentar.

Juliano Machado disse...

Livia, a canção é melhor que o texto. Mas a idéia de uma galeria de troféu de ébrios não me parece ruim: ficávamos ainda divertidos de imaginar o que se bebeu no tal passamento.

Quanto aos meus amigos prepararem o meu troféu: deusmelivre, quero viver até aos cento e noventa anos.

beijo.