A cidadezinha que se chama Poço das Ovelhas deve ser um reduto do diabo. E verificar isso é simples quando se olha para este chão calcinado, para estas plantas sem ramas, aquela pastagem seca, a horta sem verde. Um quadro estéril pintado por uma mão cansada que só chegou para rabiscar esqueletos e carcaças de bichos mortos pela sede e pela fome. Os animais vivos são todos magros, cambaleantes, e escarafuncham a chã a ver se encontram na terra algo que o céu não mandou. Magros e cambaleantes são os homens e mulheres e crianças que aqui vivem, também têm fome, também têm sede e da mesma maneira olham para a terra a ver, neste caso, se há um reflexo do que o céu deveria lhes dar. Muito embora lhes pese a cabeça, lhes doa o estômago e a alma, ainda mantém, sabeládeus a que custo, a propalada altivez humana, como se o fato de saberem-se vivos e humildes, os fizessem soerguer mais os corpos do que um cabrito famélico poderia fazer. Os sorrisos muito raramente assomam na face destas pessoas, a risada aberta, nunca. Ademais, o cenário não leva que o comum das caatingas, das terras secas, da paisagem árida e caramelada, tantas vezes cantada em versos, em prosa, novamente em versos e finalmente em prosa. Mas a estes confins de nordeste seco, como aliás a todo o resto do país imenso, a televisão chegou porque houve eletricidade. Olhando-se as casas de pau-a-pique e cercas de madeira mal cortada, também se podem ver os fios da energia elétrica saindo dos postinhos — de mesma mal talhada árvore — e indo ter para dentro dos casebres. Acesa fica uma luz, um rádio toca, muito raramente uma geladeira gela, sendo o comum alumiar-se a escuridão com as imagens clarividentes dos aparelhos de televisão. Do mesmo modo vêem-se os fios brancos, encapadinhos, fugirem do interior das casinhas e caminharem para os tetos a se ligarem nuns pedaços de alumínio, numas espinhas de peixe de metal. O que há também nesta cidade é o advento interessante da união de tecnologias. A capital fica a uma porção de quilômetros afastada, e como toda capital, guarda os sonhos úmidos dos sertanejos. De cada família que em Poço das Ovelhas vive, não há sequer uma que não tenha ao menos um ente querido morando para outras bandas, caçando os sonhos e tentando fazer com que a vida lhe acene com mais carinho. Ora, que suprema ventura foi quando colocaram na frente do único Armazém da cidadela um orelhão para as exortações do dia-a-dia e o desafogo das saudades de toda a gente. Pois que agora além de assistir às novelas, de quando em quando ir ter notícias dos parentes que estão para longe, saber como lhes corre a vida, se está precisando de uma reza, de um conselho, dinheiro é difícil, se calhar, mandar um beijo, as vezes poucas palavras, estar em silêncio apenas, e ao fundo, o som inconfundível de uma lágrima de amor ou de condescendência. Mas, sempre pouco tempo de prosa, já as tarifas não estão para casos muito compridos, veja-se que lá para lá das Minas Gerais qualquer bocadinho de minuto é uma fortuna. Assim, a vida não melhorou, mas ficou mais tragável, e não há quem negue que saber do mundão pela TV e saber do mundinho pelo telefone fez desabrochar sorrisos, mesmo que fugazes, nas faces povo. Foi quando aconteceu o sucedido. Sem que ninguém desse pelo motivo, os moradores de Poço das Ovelhas começaram a captar as conversas do orelhão público pelo aparelho de televisão, fato este inusitado, mas que não chega a ser fantástico, mormente quando se sabe que no final das contas estas todas ondas eletromagnéticas são da mesma origem e família. Quem descobriu o estranho sucesso foi uma mocinha noveleira que, nos intervalos da programação, ficava passeando pelos canais. Imediatamente após o achado, contou à mãe que contou à vizinha que sintonizou o canal e passou o número à sogra que assim o fez à nora, e sendo parco o terreno, todo o povo já sabia onde ir ouvir as notícias particulares deles próprios. Foi a diversão geral, bastava que se ouvisse o trim, trim, trim da campainha do telefone ou se avistasse pelas janelinhas alguém caminhando em direção ao orelhão azul e os moradores corriam para frente das caixinhas de TV. Era simples, apertava-se o botão para ir subindo os canais e pronto, lá pela altura do número 27 surgia uma imagem difusa, chuviscada que, atentamente olhada, era reflexo desconexo da transmissora da capital, e emitia as interessantes conversas de quem se utilizava do telefone público. Contrariamente à imagem, o som era nítido, absolutamente audível o que concorreu sobremaneira para que se tornasse muito divertido o novo entretenimento da cidade. Como deixar de falar no orelhão não se podia, e proibir que se escutassem as conversas aos aparelhos menos ainda, ficou-se assim a saber de quem houvera casado, separado, se empregado, se desempregado, da grávida, do pai da criança, da infecção de bexiga da tia e até dos cornos de um alguém, caso este que bem poderia ter virado sangue, não fossem as palavras sempre meras palavras e passíveis de reconsiderações e de provas materiais contrárias a elas, quando não um facão ao pé da jugular declinando todo e qualquer comentário maledicente. Num lugar assim como Poço das Ovelhas e com um povo assim, como o de Poço das Ovelhas, ainda agora com essa atribuição tecnológica de espionagem, pode-se imaginar que o diabo trabalha à vontade. Já vimos que calcina o chão, emagrece os bezerros, faz as crianças chorarem da fome e das picadas dos insetos. Deixa os homens sem trabalho porque bloqueia a chuva, e usa a televisão para contar e mostrar estórias e imagens de uma vida e de um país que será para o futuro, o futuro dele, entenda-se. Sendo o homem homem e a curiosidade atributo inerente, que mal não faria um povo a si mesmo tendo em conta todos os segredos uns dos outros, ainda mais quando o demo fica por detrás cutucando de vara curta. E era isso que andava a suceder na cidadela, como visto, houve até um quase caso de morte por fuxico sobre a vida íntima dum casal. De qualquer maneira, e embora as intrigas e comentários maldosos causassem algum desconforto, não era motivo de grandes preocupações. O diabo lá brincava com uns e com outros, provocava daqui, atiçava de lá, mas nada de muito, nada de grave, nada que valesse tirar o sorriso tão caro dos sertanejos. Ocorre que Deus, que não anda para brincadeiras e nestas alturas estava sem nada para fazer, por acaso espiou estas paragens e se apercebeu do que acontecia em Poço das Ovelhas. Em Sua sabedoria imensa, não poderia deixar de tomar uma atitude corretiva àquelas tentações do demônio. Assim estabeleceu uma proposta de ação. Como o diabo, embora ficasse endiabrando todo o povo, não havia tomado as rédeas do público telefone (não precisava ele diabo de interferir nas conversas e nas falas, bastava-lhe soprar as fagulhas riscadas pelo orelhão) assumiu o controle das emissões sonoras que saiam do aparelho de telefone e iam para o aparelho televisor, de maneira que agora podia ditar o conteúdo da programação. A Celestial medida cumpria duas funções, uma primeira e imediata que era desarticular o pobre diabo, não permitindo que ele ficasse abanando as tais fagulhas das conversas alheias a ver se arranjava um incêndio, e uma segunda e de longo prazo, que era difundir a tão malhada palavra Divina pelos confins desse mundo de meudeus. Houve no princípio um estranhamento geral na cidade, buscou-se outros canais, procurou-se posicionar as antenas para captar novamente as conversas dos outros, e somente quando se notou que o caso não era de nitidez e sim de conteúdo, o povo deixou-se ater pelos novos ruídos, a saber enfim de que se tratava. Deus, que já se considerava a si próprio um gênio, meteu nas transmissões passagens bíblicas, conversas entre pastores, os diálogos dos apóstolos, o Sermão da Montanha e tudo quanto de santo e de belo havia na palavra Dele. Mas logo o populacho pensou que eram interferências de um programa Evangélico na interferência do telefone público, e novas e insistentes mudanças foram tentadas para se voltar a escutar as antigas conversas da vida alheia, isso com palhas de aço, com espinhas maiores de peixes de metal, e até um improvisado guarda-chuvas virado ao contrário, todo de arame, com umas placas de alumínio (estranho instrumento) foi utilizado. Debalde. Ninguém desconhece que o pobre e fraco homem nada pode contra a Indelével e Onipotente vontade Divina, motivo pelo qual, desde a primeira emissão das palavras do Senhor, ninguém nunca mais veio a saber um pio sequer da privacidade dos convivas, o que, num primeiro momento, causou um arrefecimento da animosidade entre alguns moradores, mas que depois veio a despejar a cidade num profundo e insondável silêncio, retirado assim como o fora entretenimento tão largo. O diabo, quando viu enfiar-se Deus na sua empresa, deixou-se ir atarefar com seu afazeres comuns de diabo, não logrou voltar à cena, uma vez que não possuía recursos tecnológicos suficientes para fazer captarem os moradores de Poço das Ovelhas umas ondas piratas, piratas e satânicas, deixando a cidadela à mercê da programação Divina. Os fugazes sorrisos sumiram-se do povo e Deus, que não costumava utilizar-se de pesquisas de audiência, não se apercebeu quando retiraram, algum tempo depois, o telefone público, que público havia tornado-se das traças, mantendo a Sua reta palavra no canal 27. Não sobra dúvida de que a maledicência na cidade diminuiu, os casos de brigas e desavenças são o comum das cidades comuns. Pode-se dizer também para o lado de Deus que, na verdade, o telefone nem muita falta anda fazendo, e isso prova que a intervenção Divina veio trazer paz ao vilarejo, e finalmente meter o diabo no seu devido lugar, calcinando a terra e secando as folhas e emagrecendo os animais, que aliás, de barriga vazia e sem sorriso no rosto, se esturricam como nunca antes. (este texto foi originalmente publicado a seis de abril de dois mil e sete)
quarta-feira, 26 de dezembro de 2007
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1 Pitacos:
Veridiana, pois é. Eu também tenho essa sensação de fluidez do texto. Mas ao contrário de outras experiências, em que há forma de escrever é bastante atenta ao objetivo que se pretende, neste simplesmente saiu assim e assim foi. Amadores são normamente uma porcarias...rs
beijo
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