terça-feira, 1 de julho de 2008

Café

Agora que cheguei até aqui percebo o significado de tomar o café que eu mesmo preparei. Só pode ser coincidência que seja inverno, mas o vento frio insiste em dizer que de nada adianta cobrir o peito com algum casaco. Por sorte sou dado a falar sozinho, o que evita um desconforto bucal que surgiria a partir da nenhuma articulação vocálica. À ausência de interlocutor a saliva seca, grudam-se as mucosas nas gengivas e a língua fica pegajosa. Isto é de fato estar sozinho, a despeito do celular que tocou para perturbar o silêncio, único benefício deste vácuo. Mas era engano, ou entorse de joelho da alma, e mesmo, quem sabe? uma apendicite do ânimo.

Há uns afazeres ridículos e humilhantes dos quais não se pode fugir: os eflúvios da noite mal dormida têm-se que eliminar com banho e escovação. Mesmo que mal e mal (também é conta da estação) as apócrinas funcionem, parece então que as écrinas destilam um odor que não lhes cabe. Sobejam, vencedores, palrando espicaçados os pêlos: a barba toma a cara e se junta ao pé do cabelo e demais pilosidades do corpo esbranquiçado. A alimentação e suas decorrências tenho vergonha de contar. Há dignidade na solidão de quem prepara um café e o sorve lentamente, observando as danças dos vapores e o chiado do calor, não a há, no entanto, quando se mexe uns ovos e chouriço no azeite velho, à guisa de sal, só para que o estômago deixe de alanzoar.

Devolvo demasiadamente rápido os lances das partidas e as vou vencendo, sim, embora me pareça sempre promover peão a apenas peão (e sempre, sempre, sempre jogando R1T – rei na primeira casa da torre). Livro da música os ouvidos, rememoro só ao longe, cantarolando, as canções que me dizem o óbvio da situação, e leio. Leio sempre, leio muito. Já nem sei o que estou lendo, os olhos não chegam a estar baços mas são vagos, e são, como se os pudessem ver, tristes de si mesmos nessa única função monocromática de seguir letras atrás de letras.

Se soubesse a maneira de, explicaria a sensação de ser oco. Descanso os óculos no braço direito da poltrona, deponho o tomo no esquerdo membro de pano, levanto-me e penso num próximo café. Como numa história bonita de amor, faço a indigna frigideira suja ganhar, no fogão roto dos despojos do chouriço, a companhia da chaleira brilhante de inox (não acreditam em gênero quando tudo é ausência). Meto-lhe água para dentro, ela aquece ligeira e exclama o ar quente numa melodia de ternura e afeto. A frigideira cora, os outros utensílios sorriem, crentes ambos de que a música é de conciliação e carinho. Não reparam que, alheio ao romance, assovio o adagio cantabile da sonata número oito em dó menor, opus treze,
de Beethoven. Pathetique.

12 Pitacos:

Jú Pacheco disse...

Concordo com Veridiana de que o que mais me encanta nos seus textos são seu caráter confessional, que prende a atenção (e de lambuja nos faz pensar o quão interessante seria o personagem - você? - do cena ou do depoimento) e que, ao mesmo tempo, dispara um milhão de sensações.
Acho a solidão encantadora.
E sou uma absoluta apaixonada por cafés.
Portanto - e "por óbvio" - me deliciei com o texto.

Elcio Machado disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Elcio Machado disse...

Juliano, precisei visitar o dicionário, ao ler seu texto. Mas não precisei me ater a minúcias das palavras para senti-lo, com evocações em muito semelhantes às da Veridiana -- a dignidade do preparo do café da manhã, posto que sou sempre o primeiro a levantar. Isto é novo, já que sempre fui (continuo sendo, mas em horários mais nobres) dorminhoco.
Entretanto, R1T? O que há de tão tenebroso em mantê-lo em R1C? Penso que, encurralado, um tanto sufocado, assustado até, poderia estar o Rei, numa posição assim tão cheia de limites. Ou, ao contrário, se sentiria mais protegido? Não o sei, realmente.
Beijo

(Precisei excluir a primeira postagem do comentário porque, sou obrigdo a aceder, ainda não acordei por completo e não me acudiram naquele momento algumas regrinhas básicas da gramática. Primeiro, ao café, pois.)

Anônimo disse...

Adorei o texto e só você para dar o devido valor ao simples.
Beijokas.

Anônimo disse...

Que delícia de texto, Ju! Alguns de seus textos têm bem marcada essa riqueza,como bem observado nos comentários acima, que me encanta: as imagens saltam à medida que a leitura progride, despertando um mar de sensações.

Anônimo disse...

Puxa! Estou aqui maravilhada com a crua e pura, nua, bela e verdadeira realidade da expressão de tuas sensações...
Identifico-me...

Juliano Machado disse...

Veridiana, eu não consigo enxergar Kafka neste texto, embora por ser o meu escritor predileto dê pra supor que eu sugo tudo o que puder dele, ainda que jamais imagine que posso alcança-lo, exceto em quase plágios descarados. No entanto, fico pensando que a ficção que ele produziu poderia dar uma idéia de confissão, em algum momento, como alguns dos textos que vão aqui no blogue. E que serão confissões, sim, das personagens. Eu mesmo odeio café.

A melhor parte do textinho, que é a idéia da solidão de se tomar um café não é minha, claro, mas sim do Manuel Bandeira, nuns versos de poema lindíssimo: "Bebi o café que eu mesmo preparei".

De minha parte já fico feliz demais que o texto cause emoções.

Obrigado por sempre ler e sempre comentar.

um beijo.

Juliano Machado disse...

Jú (nunca entendo este assunto) Pacheco, causar sensações e desatar pensamento curiosos à cerca do personagem é só a intenção do texto. E ter ou não ter caráter confessional não necessariamente me liga ao texto. Porque não sou eu. Eu não gosto, aliás chego mesmo a odiar café, embora seja sozinho e a solidão me comova.

obrigado por vir aqui ler sempre e comentar sempre.

Juliano Machado disse...

Elcio, R1T, após o roque menor era a o jogada que brincávamos, nos estudos com o professor Jarbas há quantos anos quando não sabíams que lance dar nas análises das partidas. Algo mais ou menos assim: como não sabemos o que fazer, posto que fazer alguma coisa supostamente útil podia tirar pontos, jogava-se R1T. Uma piadinha do meio, que no texto quer dizer que se move a peça sem que isso tenha qualquer efeito. A força é pra ser a mesma que promover peão sempre a peão, exceto que, concordo, a segunda seja mais alcançavel.

obrigado por sempre vir ao blogue.
beijo

Juliano Machado disse...

Telma, obrigado por achar que dou devido valor ao que quer que seja! Mas confesso de que olhar para as coisas simples envolto numa qualquer solidão traz reflexão interessante.
beijokas.

Juliano Machado disse...

Marlene, isso sim me deixa tão contente. É despertar algo no leitor a única vontade. E eu fico assim assustado, porque eu mesmo não acho que consiga criar imagens suficientemente interessantes. Mas se quem me lê acha, e gente como você que sabe ler acha, só posso ficar tão feliz.

Juliano Machado disse...

Laura, seja bem vinda. É tão prazeroso quando novos leitores aqui vem dar com os olhos que sinto tentado a pedir que continuem a vir, torcendo pra que tenha feito isso efetivamente nos textos. Que bom que se identifica com as sensações.

Espero que torne.