Araraquara, 05 de setembro de 2011
Tenho gostado quando chove. De minha escrivaninha ouço a chuva bater nas folhas secas que irremediavelmente sobejam no quintal. Ainda não descobri qual é a árvore que plantei há quantos anos e caduca em agosto (e derruba flores brancas que em verdade duram somente dois dias, na metade de setembro). Não sei se quero descobrir. Hoje tenho medo de saber de que espécie é, como sempre soube no caso do oiti. Essa dúvida me parece bondosa porque percebo que quando tudo faltar, e faltará, terei algo ainda a procurar. Está anoitecendo, a bátega forte me dá a sensação de ilha. Então eu campeio o marcador de livro, aquele com o molequinho negro sorrindo (eu tenho tantos molequinhos negros sorrindo), fecho o tomo e vou ver da área da casa o vento folhear as ramas da hera. Estou vestindo uma calça jeans, meias marrons e um ridículo chinelo velho. Estou sem camisa. Tenho ficado muito em casa sem camisa, e imagino que você saiba disso (não se lembra disso porque não se lembra de nada, mas vai saber quando a carta chegar).
A chuva aumentou. Curioso como a evidência física da água, até mesmo os borriços que respingam para o meu rosto e o meu peito, tem a competência de me tirar a noção de tempo: sei que estou pensando em você há muito, sei que só deixei o romance e fui ver o corisco porque penso em você, mas não sei mais quando foi que perdi você. É como se os calendários se esboroassem, ou as convenções e fatos banais do cotidiano não tivessem data, pois não consigo raciocinar temporalmente enquanto penso em você. Freqüentemente, então, tenho de voltar às fotografias. Tenho muitas fotografias. Tenho fotos reveladas, tenho tantas em nossa pasta no computador. Prefiro sempre as que você está sozinha. Depois delas, as que está com outras pessoas, mas não gosto de ver as que estamos juntos. É covardia, eu sei, mas é a demonstração evidente de que se estivemos juntos naquelas fotos, não estamos mais agora. Não tenho dificuldade em admitir a minha culpa, mas tê-la perdido pesa tão doloridamente porque eu a tive, e só existe essa vida.
Pensara em telefonar, mas sei que o telefonema resultaria inútil. Em primeiro lugar, é impossível que você fosse me atender, e em segundo lugar, não sei mais quais sejam os seus números (é claro que eu poderia descobri-los mais facilmente do que se chega ao número da pizzaria da esquina, mas a necessidade de buscar algo que deveria ser memória latente me acabrunha). Eu me encolho e encosto numa das paredes. Estico a mão até ao ponto em que algumas gotas mais pesadas me toquem. A chuva recrudesceu ainda mais, o céu está escuro e mais belo.
Esta noite pensei em deixar o trabalho, fazer uma viagem, ir para a França. Preparei um uísque e vim cá escrever esta carta. Se o serviço e os amigos (ou a falta deles) fossem um problema realmente sério, seria muito fácil resolver: largaria o trabalho, abandonaria os amigos e iria para Paris ( e o dinheiro nunca foi problema). Mas fugir do que não está perto é uma angústia tão imaterial que se torna em angústia da angústia, numa figura de sentimento, metáfora ou comparação que não sei inventar para lhe explicar. Também concedo afinal que não se interesse em saber o que diabos eu sinto de qualquer porcaria das ninharias de minha vida.
Agora considero que terei de descobrir o seu endereço e me deparo com uma constatação incomoda: eu tenho o seu endereço e sei que está correto e é atual. E sei disso porque ouvi de relance num evento estúpido de pessoas conhecidas. É evidente que não posso saber se você está em sua cidade ou viajando, mas mesmo que sua última estada em sua última morada seja para despachar as bagagens, se envio a carta de agora amanhã cedo pelo serviço de urgência, você a irá receber, invariavelmente, nalgum momento (aqui mecanicamente excluo as possibilidades da minha e da sua morte nesse intervalo que separaria o meu envio do seu recolhimento da missiva, além de outras desgraças desnecessárias pelo óbvio motivo de que morrer seria covarde demais até para a minha vileza).
Reli os outros parágrafos e percebo que não posso mais protelar o que tenho a dizer: eu ainda amo você. O morto-vivo em que me transformei, e que só tem por prazer ler romances e olhar a chuva cair quer saber se você ainda se lembra do meu nome e do meu rosto. E porque não faço a menor idéia de como saberei isso já que não terei respostas às minhas perguntas, calculo que talvez deva ser mais severo nas palavras que, afinal, se foram lidas, não serão respondidas.
Mas não serei. Estou cansado e infelizmente parece que a chuva vai amainar. Decidi então enviar estas folhas para outro endereço. O endereço dos seus pais. Não tenho a menor dúvida de que estou enlouquecendo e agora acredito que posso ao menos me furtar do ridículo da vergonha se aparentar insanidade. Sua mãe me disse uma vez que a melhor parte de nossa separação era não ter mais de olhar para mim. Eu era muito bonito e não quis compreender a afirmação. Como sei que seus pais não abrirão a carta e lha enviarão a você, acho que posso finalmente contar a verdade. Estou indo para Londres. Sei onde você mora e chego uma semana depois da carta. Vou procurá-la, vou devolver o que você me pede desde então. Não quero mais manter um objeto que não tem valor para mim, exceto pela função indispensável de me colocar na sua frente pela última vez. Calculo que seja um preço justo, o seu desespero por reavê-lo, o meu desespero por vê-la novamente. Ninguém saberá disso, e apesar da minha loucura, e da chuva que nunca cessa, calculei todos os movimentos (por isso seus pais recebem a carta primeiro). Vou querer abraçá-la antes de lhe entregar o que é afinal seu, se eu não estiver num estágio muito avançado de um sonho bom.
A chuva aumentou. Curioso como a evidência física da água, até mesmo os borriços que respingam para o meu rosto e o meu peito, tem a competência de me tirar a noção de tempo: sei que estou pensando em você há muito, sei que só deixei o romance e fui ver o corisco porque penso em você, mas não sei mais quando foi que perdi você. É como se os calendários se esboroassem, ou as convenções e fatos banais do cotidiano não tivessem data, pois não consigo raciocinar temporalmente enquanto penso em você. Freqüentemente, então, tenho de voltar às fotografias. Tenho muitas fotografias. Tenho fotos reveladas, tenho tantas em nossa pasta no computador. Prefiro sempre as que você está sozinha. Depois delas, as que está com outras pessoas, mas não gosto de ver as que estamos juntos. É covardia, eu sei, mas é a demonstração evidente de que se estivemos juntos naquelas fotos, não estamos mais agora. Não tenho dificuldade em admitir a minha culpa, mas tê-la perdido pesa tão doloridamente porque eu a tive, e só existe essa vida.
Pensara em telefonar, mas sei que o telefonema resultaria inútil. Em primeiro lugar, é impossível que você fosse me atender, e em segundo lugar, não sei mais quais sejam os seus números (é claro que eu poderia descobri-los mais facilmente do que se chega ao número da pizzaria da esquina, mas a necessidade de buscar algo que deveria ser memória latente me acabrunha). Eu me encolho e encosto numa das paredes. Estico a mão até ao ponto em que algumas gotas mais pesadas me toquem. A chuva recrudesceu ainda mais, o céu está escuro e mais belo.
Esta noite pensei em deixar o trabalho, fazer uma viagem, ir para a França. Preparei um uísque e vim cá escrever esta carta. Se o serviço e os amigos (ou a falta deles) fossem um problema realmente sério, seria muito fácil resolver: largaria o trabalho, abandonaria os amigos e iria para Paris ( e o dinheiro nunca foi problema). Mas fugir do que não está perto é uma angústia tão imaterial que se torna em angústia da angústia, numa figura de sentimento, metáfora ou comparação que não sei inventar para lhe explicar. Também concedo afinal que não se interesse em saber o que diabos eu sinto de qualquer porcaria das ninharias de minha vida.
Agora considero que terei de descobrir o seu endereço e me deparo com uma constatação incomoda: eu tenho o seu endereço e sei que está correto e é atual. E sei disso porque ouvi de relance num evento estúpido de pessoas conhecidas. É evidente que não posso saber se você está em sua cidade ou viajando, mas mesmo que sua última estada em sua última morada seja para despachar as bagagens, se envio a carta de agora amanhã cedo pelo serviço de urgência, você a irá receber, invariavelmente, nalgum momento (aqui mecanicamente excluo as possibilidades da minha e da sua morte nesse intervalo que separaria o meu envio do seu recolhimento da missiva, além de outras desgraças desnecessárias pelo óbvio motivo de que morrer seria covarde demais até para a minha vileza).
Reli os outros parágrafos e percebo que não posso mais protelar o que tenho a dizer: eu ainda amo você. O morto-vivo em que me transformei, e que só tem por prazer ler romances e olhar a chuva cair quer saber se você ainda se lembra do meu nome e do meu rosto. E porque não faço a menor idéia de como saberei isso já que não terei respostas às minhas perguntas, calculo que talvez deva ser mais severo nas palavras que, afinal, se foram lidas, não serão respondidas.
Mas não serei. Estou cansado e infelizmente parece que a chuva vai amainar. Decidi então enviar estas folhas para outro endereço. O endereço dos seus pais. Não tenho a menor dúvida de que estou enlouquecendo e agora acredito que posso ao menos me furtar do ridículo da vergonha se aparentar insanidade. Sua mãe me disse uma vez que a melhor parte de nossa separação era não ter mais de olhar para mim. Eu era muito bonito e não quis compreender a afirmação. Como sei que seus pais não abrirão a carta e lha enviarão a você, acho que posso finalmente contar a verdade. Estou indo para Londres. Sei onde você mora e chego uma semana depois da carta. Vou procurá-la, vou devolver o que você me pede desde então. Não quero mais manter um objeto que não tem valor para mim, exceto pela função indispensável de me colocar na sua frente pela última vez. Calculo que seja um preço justo, o seu desespero por reavê-lo, o meu desespero por vê-la novamente. Ninguém saberá disso, e apesar da minha loucura, e da chuva que nunca cessa, calculei todos os movimentos (por isso seus pais recebem a carta primeiro). Vou querer abraçá-la antes de lhe entregar o que é afinal seu, se eu não estiver num estágio muito avançado de um sonho bom.
Vemo-nos em breve,
J.