Há um conto do João Guimarães Rosa — ou talvez um ensaio, não o tenho muito certo — chamado “Uns Índios (Sua Fala)” que conta uma histórinha sobre o contato do escritor com os Terenos, justamente uma tribo ali das bandas do Mato Grosso e arredores. Sendo sincero, desconheço o que há de ficção e realidade no relato do mestre, embora o que se conheça de Guimarães Rosa leve a chutar que as duas coisas podem ser verdade, sendo o mais provável uma mistura muito coerente de realidade e ficção (o termo coerente sou eu quem uso arbitrariamente, porque o faço num sentido literário, querendo exprimir coesão e coerência na prosa, e no caso dele, uma prosa-poética tão particular). O caso é que o conto trata do contato do narrador com alguns moradores dessa tribo, mas principalmente do contato do narrador com a língua falada desse povo e sua estupefação ante a novidade. Rosa diz que a língua dos Terenos é rápida, ríspida, e segue dizendo: “uma língua não propriamente gutural, não guarani, não nasal, não cantada; mas firme, contida, oclusiva e sem molezas”. Conclui, por fim, que tão logo a ouviu respeitou-a, assim como respeitou seus falantes, como se eles representassem alguma cultura velhíssima. Rosa então cita no conto várias palavras deste idioma que ele foi anotando em seu “caderninho” com a ajuda dos nativos, e espanta-se com algo que observa no nome das cores: vermelho – a-ra-ra-i’ti; verde –ho-no-no-i’ti; amarelo –he-ya-i’ti; Observa, como nós o podemos fazer, que o elemento i’ti devia significar “cor”. Resolvido a se embrenhar na língua estranha, Rosa vai entrevistar velhos moradores, os mais antigos Terenos vivos em Aquidauana: lá descobre que o elemento i’ti , afinal, não significava cor, mas sim sangue, e que portanto vermelho seria sangue de arara; verde, sangue das plantas; amarelo, sangue do sol e assim por diante. Guimarães Rosa se angustia, porém, porque não conseguiu descobrir o sentido de algumas palavras e de outras cores, pois os moradores antigos lhe diziam apenas que aquilo não tinha mais sentido nenhum, que não significavam nada, que diziam assim porque assim o diziam. Então João destila: “Toda língua são rastros de velho mistério”.
Fiz uma enorme introdução para contar a história bonita que o Rosa contou, mas também para chegar nestes pontos que me interessaram sobremaneira: a essência das coisas e a ligação que tudo tem com um passado remoto, com um velho mistério. A figura dos Terenos me parece excelente, o sol tem um sangue amarelo, uma essência amarela, as plantas tem uma essência verde, logo um sangue verde. Claro que isso sendo figuras de uma linguagem lá deles, não saberemos qual seria a cor do homem, se bem que — ponto que eu queria chegar —, como haveremos de saber qual a essência do homem? Talvez o não saibamos pelo “velho mistério”, pelo “passado remoto”, porque a nossa essência se perdeu num passado em que se perderam as línguas também. E não que primordialmente não existissem sentidos para todas as palavras, como para todas as essências, mas por que isso se vai tornando num mistério indecifrável quando presentes se sobrepõem a presentes numa fila inexorável.
Seria o caso, lugar comum, de cada vez mais olhar para dentro de si a buscar essa essência perdida? Ou seria o caso de, dinâmicos como as línguas, buscarmos novos entendimentos ou novas estruturas para denominar coisas que simplesmente não sabemos o significado? Creio, entretanto, que aquela angústia ancestral que domina o primeiro e dominará o último homem — assim já sentenciado que qualquer que seja a busca, não logrará êxito —, essa angústia está no passado remotíssimo da existência, e se imiscui tão sorrateiramente em tantos presentes que como os significado das velhas palavras, não se deixará conhecer, embora a sintamos aqui e ali, como usamos palavras que nem sonhamos o significado no dia-a-dia de todos os dias.
p.s. – lamentavelmente não sei dar indicações de onde encontrar o texto do Guimarães Rosa, eu tinha uma cópia xerocada que arrumei alhures, provavelmente do primeiro ano de letras. Prometo que procuro este xerox, e se achar, fica à disposição de quem por ventura se interessar.
Fiz uma enorme introdução para contar a história bonita que o Rosa contou, mas também para chegar nestes pontos que me interessaram sobremaneira: a essência das coisas e a ligação que tudo tem com um passado remoto, com um velho mistério. A figura dos Terenos me parece excelente, o sol tem um sangue amarelo, uma essência amarela, as plantas tem uma essência verde, logo um sangue verde. Claro que isso sendo figuras de uma linguagem lá deles, não saberemos qual seria a cor do homem, se bem que — ponto que eu queria chegar —, como haveremos de saber qual a essência do homem? Talvez o não saibamos pelo “velho mistério”, pelo “passado remoto”, porque a nossa essência se perdeu num passado em que se perderam as línguas também. E não que primordialmente não existissem sentidos para todas as palavras, como para todas as essências, mas por que isso se vai tornando num mistério indecifrável quando presentes se sobrepõem a presentes numa fila inexorável.
Seria o caso, lugar comum, de cada vez mais olhar para dentro de si a buscar essa essência perdida? Ou seria o caso de, dinâmicos como as línguas, buscarmos novos entendimentos ou novas estruturas para denominar coisas que simplesmente não sabemos o significado? Creio, entretanto, que aquela angústia ancestral que domina o primeiro e dominará o último homem — assim já sentenciado que qualquer que seja a busca, não logrará êxito —, essa angústia está no passado remotíssimo da existência, e se imiscui tão sorrateiramente em tantos presentes que como os significado das velhas palavras, não se deixará conhecer, embora a sintamos aqui e ali, como usamos palavras que nem sonhamos o significado no dia-a-dia de todos os dias.
p.s. – lamentavelmente não sei dar indicações de onde encontrar o texto do Guimarães Rosa, eu tinha uma cópia xerocada que arrumei alhures, provavelmente do primeiro ano de letras. Prometo que procuro este xerox, e se achar, fica à disposição de quem por ventura se interessar.
8 Pitacos:
Vc fez letras?
Hummm...
Acabei de ir na velha Bazófi roubar o texto dos Ipês... viu como eles andam lindos dominando amplas áreas por ai?!
...
A propósito essa idéia das cores serem o sangue de outras coisas que as contém é linda demais!!
Não sei o que dizer, faltam palavras quando mobiliza profundamente. Vai muito além do texto.
A eterna busca! :o-
beijo, saudade.
Fiquei aqui pensando em Clarice Lispector:"E não adianta explicar porque a explicação exige uma outra explicação que exigiria uma outra explicação e que se abriria de novo para o mistério."
Juliano, acho que já disse isto em algum comentário anterior: muitas vezes leio seus escritos só com os olhos da emoção, porque é o que causam. Nem sempre consigo estabelecer um diálogo ou debate com a essência do que foi dito. É que você, por vezes, mergulha em profundezas que não alcanço direito. O presente texto, muito bem escrito, é uma bela reflexão, tocante. Para repetir a Marlene, vai muito além do texto.
Não obstante (às vezes tenho vontade de rir, quando me pego escrevendo "não obstante" e que tais), como não consigo me desvencilhar de velhas manias, vou ranhetar com uma palavra que você usou: "Terenos". É uma referência aos índios Terena, vizinhos dos Kadiwéu. Foi numa pesquisa sobre estes últimos, por causa de um filme (Brava Gente Brasileira, de Lúcia Murat), que topei com uma informação: a grafia de grupos indígenas é "sempre no singular por uma convenção antropológica, em razão de que, na maioria dos casos, são palavras que estão em língua indígena e acrescentar um ‘s’ resultaria em hibridismo, além da possibilidade de as palavras já estarem no plural, ou, ainda, que o plural nem exista nas línguas indígenas correspondentes". Ouvi o galo cantar, mas não sei bem onde. Tentei refazer a pesquisa, sem muito sucesso, exceto um texto de Marina Vinha (de onde copiei a citação acima), em
http://www.sed.ms.gov.br/index.php?templat=vis&site=98&id_comp=284&id_reg=76&voltar=lista&site_reg=98&id_comp_orig=284
Ela cita extensa bibliografia, que inclui Lévi-Strauss, Darcy Ribeiro, e mais um punhado de gente que não conheço nem de nome. Então, e como passei a observar, parece ser uma convenção obedecida nos textos acadêmicos. Acho que faz sentido, sem, entretanto, poder garantir isso.
Saudade. Muita.
Beijo
Missisquici. Me interesso. Se achar a cópia do texto do João mande-a para mim, tá?
Beijo
Jú Pacheco, de certa maneira, ainda que bem particular, eu ainda faço letras.
O texto do ipê é um bocado melhorzinho que este, então a escolha me deixa feliz.
Muito poético o sangue das coisas, logo só poderia ser de um povo captado por um mestre.
obrigado por vir ao blogue.
Marlene, as palavras quando faltam e são ditas em comentários singelos e bons como os seus, são-me mais que suficientes.
Obrigado.
beijo.
Elcio, desconfio muito seriamente que não alcance as 'profundidades' a que alude nos textos. O bem as alcance (porque também não são tão profundas assim), ou elas estão tão à superfície que seu olhar profundo vai procurar algo que não existe.
Quanto ao plural dos nomes indígenas, já tinha passado por isso num livrinho da década de setenta dos irmãos Boas (e também, depois, mas só percebido, num Strauus). Ocorreram, então, duas coisas: primeiro eu não me lembrei mesmo da questão do plural, segundo, e talvez mais importante, eu copiei as formas assim como o Guimarães usou em seu conto, de modo que não criei nenhuma expressão ou palavra (criar no sentido de utilizar para o meu texto) que não fosse uma reprodução, inclusive na argumentação, do que estava no texto do Rosa. Escusas furadas, mas verdadeiras.
Em tempo: excelente que comente os problemas dos textos e dos blogues, assim se aprendo.
beijo.
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