Acordei com o sonho pegado na memória: reprodução exata da cena do quadro de Chagall exceto pelo movimento, visível e não apenas sugerido, uma sensação de evasão. O gato azul caminha pelo chão do quarto, pula para cima da cômoda enorme, esgueira-se por detrás das cortinas da janela e some por ela, semi-aberta que estava. Tudo muito nítido, a seqüência dos matizes, o azul esplêndido do gato de rosto quase humano, a Paris adivinhada pela janela e, é claro, o nome do quadro martelando em minha cabeça, “A fuga do gato azul”.
Desconhecido de Freud, não pude atinar o porquê de Chagall. Gosto dele, mas não está entre os preferidos. Aliás, mais conheço-o pelo motivo de sua amizade com o brasileiro Ismael Nery, esse sim, muitíssimo apreciado. Confesso, inclusive, que me lembro mesmo é das pouquíssimas pinturas que vão no livro da Adélia Bezerra de Meneses (Figuras do feminino na canção de Chico Buarque. Ateliê Editorial. 2001) e não muito mais. Então fui à bendita internete procurar a tela dos sonhos.
O quadro “A fuga do gato azul” de Marc Chagall não é um quadro de Marc Chagall. Na verdade, esse quadro não existe. O mais próximo que encontrei foi uma pintura que está no Guggenheim de Nova Iorque e se chama “Paris pela janela”. Não me recordo de alguma vez ter topado com essa tela, mas é claro que já devia tê-la visto. Lá está um gato com cara de gente, mas é amarelo. Lá não tem cômoda, não tem cortina, não parece que o gato vá saltar pelo vão (parece ser um prédio e o gato não tem modos de suicida). E, finalmente, lá sim Paris se deixa ver toda pela janela franqueada. Não me perguntem, eu não sei do que se trata. A precisão da lembrança do meu quadro no sonho só me fez ter certeza de que não é um Chagall. Mesmo porque o meu quadro não era, no sonho, um quadro, e sim uma cena em movimento que eu presenciava do aposento mesmo. Meu gato é azul, azul de fase de Picasso, o do Chagall é amarelado, cabeça branca, traseiro verde. Sobretudo, o gato de Chagall vê Paris, o meu gato saltou a janela e foi-se embora para uma paisagem que não se podia enxergar.
Num belíssimo conto chamado “Eva está dentro de seu gato” (Olhos de cão azul. Record. 1998), Gabriel Garcia Marques conta uma história de inadequação: Eva é a mulher mais linda do mundo, mas não suporta sua beleza, sua beleza lhe é o maior fardo, como uma doença. E antes disso, ela sabe que sua beleza não é sua, é ancestral, ela tem de carregar algo que não a permite ser ela mesma no mundo. E todos lha olham extasiados, e todos a apontam e lambem os beiços pela beleza dela, que não é dela. Então ela resolve que só pode experimentar o mundo indo para dento do seu gato, já que ela, em sua beleza, não é ela: pois que seja o gato, mais legitimo que ela ela. E lá vai ela.
Como já disse, não sei quem é Freud, portanto me escuso de fazer uma análise do meu sonho: o que acontece é que bem acordado, senti na minha pele feia (não sou Eva), sem pêlos amarelos (não sou o gato do Chagall), nem azuis (não sou o gato do meu sonho), a inadequação de ser apontado por algo que não se é (como se não bastasse o que se nos apontam e de fato somos), e ter vontade de saltar fora a janela e ir embora. Podíamos ficar quietinho, ronronando no tapete da sala, lambendo o pelo azul triste com as pulgas que de fato são nossas, sem que nos apontassem coceiras que não existem. Pois se junta tudo, o que é culpa de nossa condição felina e mais o que não é, voltamos a ser o homem que não se encontra do poema de Pessoa (Eva que volta a ser Eva?):
Desconhecido de Freud, não pude atinar o porquê de Chagall. Gosto dele, mas não está entre os preferidos. Aliás, mais conheço-o pelo motivo de sua amizade com o brasileiro Ismael Nery, esse sim, muitíssimo apreciado. Confesso, inclusive, que me lembro mesmo é das pouquíssimas pinturas que vão no livro da Adélia Bezerra de Meneses (Figuras do feminino na canção de Chico Buarque. Ateliê Editorial. 2001) e não muito mais. Então fui à bendita internete procurar a tela dos sonhos.
O quadro “A fuga do gato azul” de Marc Chagall não é um quadro de Marc Chagall. Na verdade, esse quadro não existe. O mais próximo que encontrei foi uma pintura que está no Guggenheim de Nova Iorque e se chama “Paris pela janela”. Não me recordo de alguma vez ter topado com essa tela, mas é claro que já devia tê-la visto. Lá está um gato com cara de gente, mas é amarelo. Lá não tem cômoda, não tem cortina, não parece que o gato vá saltar pelo vão (parece ser um prédio e o gato não tem modos de suicida). E, finalmente, lá sim Paris se deixa ver toda pela janela franqueada. Não me perguntem, eu não sei do que se trata. A precisão da lembrança do meu quadro no sonho só me fez ter certeza de que não é um Chagall. Mesmo porque o meu quadro não era, no sonho, um quadro, e sim uma cena em movimento que eu presenciava do aposento mesmo. Meu gato é azul, azul de fase de Picasso, o do Chagall é amarelado, cabeça branca, traseiro verde. Sobretudo, o gato de Chagall vê Paris, o meu gato saltou a janela e foi-se embora para uma paisagem que não se podia enxergar.
Num belíssimo conto chamado “Eva está dentro de seu gato” (Olhos de cão azul. Record. 1998), Gabriel Garcia Marques conta uma história de inadequação: Eva é a mulher mais linda do mundo, mas não suporta sua beleza, sua beleza lhe é o maior fardo, como uma doença. E antes disso, ela sabe que sua beleza não é sua, é ancestral, ela tem de carregar algo que não a permite ser ela mesma no mundo. E todos lha olham extasiados, e todos a apontam e lambem os beiços pela beleza dela, que não é dela. Então ela resolve que só pode experimentar o mundo indo para dento do seu gato, já que ela, em sua beleza, não é ela: pois que seja o gato, mais legitimo que ela ela. E lá vai ela.
Como já disse, não sei quem é Freud, portanto me escuso de fazer uma análise do meu sonho: o que acontece é que bem acordado, senti na minha pele feia (não sou Eva), sem pêlos amarelos (não sou o gato do Chagall), nem azuis (não sou o gato do meu sonho), a inadequação de ser apontado por algo que não se é (como se não bastasse o que se nos apontam e de fato somos), e ter vontade de saltar fora a janela e ir embora. Podíamos ficar quietinho, ronronando no tapete da sala, lambendo o pelo azul triste com as pulgas que de fato são nossas, sem que nos apontassem coceiras que não existem. Pois se junta tudo, o que é culpa de nossa condição felina e mais o que não é, voltamos a ser o homem que não se encontra do poema de Pessoa (Eva que volta a ser Eva?):
Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.
És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.
Fernando Pessoa, Cancioneiro, 1931.
(na imagem, "Paris pela janela", Marc Chagall, 1913. Óleo sobre tela 174x172 cm, Guggenheim, Nova Iorque)