terça-feira, 24 de junho de 2008

A fuga do gato azul

Acordei com o sonho pegado na memória: reprodução exata da cena do quadro de Chagall exceto pelo movimento, visível e não apenas sugerido, uma sensação de evasão. O gato azul caminha pelo chão do quarto, pula para cima da cômoda enorme, esgueira-se por detrás das cortinas da janela e some por ela, semi-aberta que estava. Tudo muito nítido, a seqüência dos matizes, o azul esplêndido do gato de rosto quase humano, a Paris adivinhada pela janela e, é claro, o nome do quadro martelando em minha cabeça, “A fuga do gato azul”.

Desconhecido de Freud, não pude atinar o porquê de Chagall. Gosto dele, mas não está entre os preferidos. Aliás, mais conheço-o pelo motivo de sua amizade com o brasileiro Ismael Nery, esse sim, muitíssimo apreciado. Confesso, inclusive, que me lembro mesmo é das pouquíssimas pinturas que vão no livro da Adélia Bezerra de Meneses (Figuras do feminino na canção de Chico Buarque. Ateliê Editorial. 2001) e não muito mais. Então fui à bendita internete procurar a tela dos sonhos.

O quadro “A fuga do gato azul” de Marc Chagall não é um quadro de Marc Chagall. Na verdade, esse quadro não existe. O mais próximo que encontrei foi uma pintura que está no Guggenheim de Nova Iorque e se chama “Paris pela janela”. Não me recordo de alguma vez ter topado com essa tela, mas é claro que já devia tê-la visto. Lá está um gato com cara de gente, mas é amarelo. Lá não tem cômoda, não tem cortina, não parece que o gato vá saltar pelo vão (parece ser um prédio e o gato não tem modos de suicida). E, finalmente, lá sim Paris se deixa ver toda pela janela franqueada. Não me perguntem, eu não sei do que se trata. A precisão da lembrança do meu quadro no sonho só me fez ter certeza de que não é um Chagall. Mesmo porque o meu quadro não era, no sonho, um quadro, e sim uma cena em movimento que eu presenciava do aposento mesmo. Meu gato é azul, azul de fase de Picasso, o do Chagall é amarelado, cabeça branca, traseiro verde. Sobretudo, o gato de Chagall vê Paris, o meu gato saltou a janela e foi-se embora para uma paisagem que não se podia enxergar.

Num belíssimo conto chamado “Eva está dentro de seu gato” (Olhos de cão azul. Record. 1998), Gabriel Garcia Marques conta uma história de inadequação: Eva é a mulher mais linda do mundo, mas não suporta sua beleza, sua beleza lhe é o maior fardo, como uma doença. E antes disso, ela sabe que sua beleza não é sua, é ancestral, ela tem de carregar algo que não a permite ser ela mesma no mundo. E todos lha olham extasiados, e todos a apontam e lambem os beiços pela beleza dela, que não é dela. Então ela resolve que só pode experimentar o mundo indo para dento do seu gato, já que ela, em sua beleza, não é ela: pois que seja o gato, mais legitimo que ela ela. E lá vai ela.

Como já disse, não sei quem é Freud, portanto me escuso de fazer uma análise do meu sonho: o que acontece é que bem acordado, senti na minha pele feia (não sou Eva), sem pêlos amarelos (não sou o gato do Chagall), nem azuis (não sou o gato do meu sonho), a inadequação de ser apontado por algo que não se é (como se não bastasse o que se nos apontam e de fato somos), e ter vontade de saltar fora a janela e ir embora. Podíamos ficar quietinho, ronronando no tapete da sala, lambendo o pelo azul triste com as pulgas que de fato são nossas, sem que nos apontassem coceiras que não existem. Pois se junta tudo, o que é culpa de nossa condição felina e mais o que não é, voltamos a ser o homem que não se encontra do poema de Pessoa (Eva que volta a ser Eva?):



Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.


Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.


Fernando Pessoa, Cancioneiro, 1931.






(na imagem, "Paris pela janela", Marc Chagall, 1913. Óleo sobre tela 174x172 cm, Guggenheim, Nova Iorque)

terça-feira, 17 de junho de 2008

O velho mistério da essência

Há um conto do João Guimarães Rosa — ou talvez um ensaio, não o tenho muito certo — chamado “Uns Índios (Sua Fala)” que conta uma histórinha sobre o contato do escritor com os Terenos, justamente uma tribo ali das bandas do Mato Grosso e arredores. Sendo sincero, desconheço o que há de ficção e realidade no relato do mestre, embora o que se conheça de Guimarães Rosa leve a chutar que as duas coisas podem ser verdade, sendo o mais provável uma mistura muito coerente de realidade e ficção (o termo coerente sou eu quem uso arbitrariamente, porque o faço num sentido literário, querendo exprimir coesão e coerência na prosa, e no caso dele, uma prosa-poética tão particular). O caso é que o conto trata do contato do narrador com alguns moradores dessa tribo, mas principalmente do contato do narrador com a língua falada desse povo e sua estupefação ante a novidade. Rosa diz que a língua dos Terenos é rápida, ríspida, e segue dizendo: “uma língua não propriamente gutural, não guarani, não nasal, não cantada; mas firme, contida, oclusiva e sem molezas”. Conclui, por fim, que tão logo a ouviu respeitou-a, assim como respeitou seus falantes, como se eles representassem alguma cultura velhíssima. Rosa então cita no conto várias palavras deste idioma que ele foi anotando em seu “caderninho” com a ajuda dos nativos, e espanta-se com algo que observa no nome das cores: vermelho – a-ra-ra-i’ti; verde –ho-no-no-i’ti; amarelo –he-ya-i’ti; Observa, como nós o podemos fazer, que o elemento i’ti devia significar “cor”. Resolvido a se embrenhar na língua estranha, Rosa vai entrevistar velhos moradores, os mais antigos Terenos vivos em Aquidauana: lá descobre que o elemento i’ti , afinal, não significava cor, mas sim sangue, e que portanto vermelho seria sangue de arara; verde, sangue das plantas; amarelo, sangue do sol e assim por diante. Guimarães Rosa se angustia, porém, porque não conseguiu descobrir o sentido de algumas palavras e de outras cores, pois os moradores antigos lhe diziam apenas que aquilo não tinha mais sentido nenhum, que não significavam nada, que diziam assim porque assim o diziam. Então João destila: “Toda língua são rastros de velho mistério”.

Fiz uma enorme introdução para contar a história bonita que o Rosa contou, mas também para chegar nestes pontos que me interessaram sobremaneira: a essência das coisas e a ligação que tudo tem com um passado remoto, com um velho mistério. A figura dos Terenos me parece excelente, o sol tem um sangue amarelo, uma essência amarela, as plantas tem uma essência verde, logo um sangue verde. Claro que isso sendo figuras de uma linguagem lá deles, não saberemos qual seria a cor do homem, se bem que — ponto que eu queria chegar —, como haveremos de saber qual a essência do homem? Talvez o não saibamos pelo “velho mistério”, pelo “passado remoto”, porque a nossa essência se perdeu num passado em que se perderam as línguas também. E não que primordialmente não existissem sentidos para todas as palavras, como para todas as essências, mas por que isso se vai tornando num mistério indecifrável quando presentes se sobrepõem a presentes numa fila inexorável.

Seria o caso, lugar comum, de cada vez mais olhar para dentro de si a buscar essa essência perdida? Ou seria o caso de, dinâmicos como as línguas, buscarmos novos entendimentos ou novas estruturas para denominar coisas que simplesmente não sabemos o significado? Creio, entretanto, que aquela angústia ancestral que domina o primeiro e dominará o último homem — assim já sentenciado que qualquer que seja a busca, não logrará êxito —, essa angústia está no passado remotíssimo da existência, e se imiscui tão sorrateiramente em tantos presentes que como os significado das velhas palavras, não se deixará conhecer, embora a sintamos aqui e ali, como usamos palavras que nem sonhamos o significado no dia-a-dia de todos os dias.

p.s. – lamentavelmente não sei dar indicações de onde encontrar o texto do Guimarães Rosa, eu tinha uma cópia xerocada que arrumei alhures, provavelmente do primeiro ano de letras. Prometo que procuro este xerox, e se achar, fica à disposição de quem por ventura se interessar.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Divino

O boteco do seu Divino fica na Marechal Deodoro da Fonseca esquina com a avenida Cientista Frederico de Marco. Chama-se Divino´s Bar, pois. Todos os dias, logo que o dia começa a querer ir embora, por volta das dezessete e trinta e oito, formam-se as mesas de truco com os ébrios presentes. Evidente que o grau de embriaguez varia de freguês para freguês, mas não se tem notícia de jogador ou torcida que tenham pedido groselha (não conta o Geraldinho, que foi buscar uma coca-cola pet para a mãe e aproveitou para escutar um seis e comprar chiclete). As pelejas seguem até por volta das onze da noite, horário limite convencionado mais ou menos naturalmente, uma vez porque a vizinhança tranquilha do bairro tolera até com boa vontade a rapaziada, outra vez porque a pinga ingerida é tamanha que a essas horas muitos heróis já tombaram.

As portas do boteco do seu Divino têm com freqüência aparecido fechadas. Cruz na porta do Divino´s. Quem morreu? O próprio Alves. Seu Alves foi o primeiro de uma série de seis fechamentos no lapso de um mês. O dono do lugar explicou que chega uma certa hora em que a idade e os maus tratos da cachaça começam a furtar os bons amigos aos borbotões. Argumentou, com pesar divido, que não podia abrir o boteco no dia do falecimento de um companheiro de sina. Especula-se que talvez funcione como em Mangueira, onde ao morrer um poeta todos choram, de modo que seu Divino viva feliz em Divino´s porque alguém há de chorar quando ele morrer. Esse afastamento do medo de morrer sozinho faz a paga do prejuízo amealhado com o dia de trabalho perdido nos dias do velório: porque é assim, fecha-se o bar somente no dia mesmo do velório. O data da morte e do enterro são convenções de outra burocracia.

Estando assente e facilmente verificável no dia-a-dia dos convivas que se estava a morrer amiúde no boteco, cotizaram-se os companheiros a reunir recursos financeiros destinados à compra das coroas de flores dos futuros finados (isso foi lá pela altura do passamento do seu Mário, terceiro ou quarto contando a partir do Alves, embora ninguém o saiba ao certo). Ao contrário dos mortos, que nunca o estavam meio, a empresa deu mais ou menos certo, pois: a) houve certa dificuldade em arrecadar uns trocados, porque diminuíam a quantidade dos tragos, mas seu Divino com tino, comercial, baixou um desconto na cachaça correspondente à diferença entre a idade do defunto e cem anos, nos três dias de luto oficial subseqüentes (esse fato gerou também uma renda extra por meio de um bolão não sobre os defuntos, mas a somatória das diferenças das últimas três mortes, já que virou moda ninguém mais lembrar a ninguém com quantos anos andava); b) as coroas passaram a ser entregues à cabaceira dos ataúdes com as inscrições de praxe seguidas da seguinte frase: “dos amigos do Divino´s ainda do lado de cá, esperando que o Divino Senhor o receba contente”. Em princípio as famílias aplaudiram o gesto de boa vontade e lembrança dos companheiros de copo, mas então um parente do Julio Andochama (o Julinho das Canelas), rapaz novo mas já observador dos bons costumes, achou de perguntar quem houvera criado a frase. A má sorte foi que seu Juarez, um dos truqueiros mais antigos do Divino´s, apontou para o Chiqunho, que efetivamente fora o criador da sentença, bem no momento em que este caia em cima do colo de duas primas do falecido de ocasião, sendo que no estabanado movimento de desvencilhar-se das senhoras, a uma levantou-lhe largamente as saias. Chiquinho era o mais frequentemente bêbado entre todos os freqüentadores do boteco, e recebeu, por ironia, a última coroa de flores dos amigos do bar, alguns meses depois. Após o sucedido, a homengem florística era aceita ainda, mas nunca bem recebida.

Seu Divino ouviu de alguns dos familiares da vizinhança que era melhor acabassem com aquela carpideira poupança, pois todos por ali andavam a torcer o nariz para a idéia de receber a coroa dos bêbados do bar. Houve até uma senhora que especulou não seria a palavra “contente” do excerto uma galhofa que remetesse a uma possível embriaguez de Deus no recebimento do defunto da dita confraria. Foi quando João morreu, o sétimo ou oitavo tomando por início o Alves. Por um daqueles instantes de afinidade mental quase inacreditável reuniram-se ao mesmo tempo os fregueses à frente das portas fechadas do bar Divino´s. Deu-se assembléia em que ficou decidido que não mandariam, afinal, a coroa de flores, e que o dinheiro seria juntado ao montante das apostas do truco do dia seguinte. Seu Divino concordou, mas obstou que era necessário que então se fizesse, de alguma maneira, uma homenagem ao falecido que não receberia as flores: comprariam um troféu (simples), que receberia o nome do morto. Tomado o gosto pelas deliberações, propôs-se ao seu Divino que abrisse o bar no dia do velório dos próximos chamados por Jesus, comprometendo-se aqueles desclassificados no torneio oficial em homenagem ao falecido a comparecerem o mais depressa possível no velório, a representar o bar.

O Divino´s bar agora não fecha mais as portas quando algum freguês vai dessa para a melhor. Como em Mangueira, que chora os poetas quando morrem, o bar da Marechal Deodoro da Fonseca com a Cientista Frederico de Marco não deixa seus irmãos sozinhos na hora do último adeus. A pinga tem o desconto da diferença da idade, o total da aposta do truco é bom dinheiro mesmo descontado o troféu que carrega o nome do defunto, as portas só se fecham quando o trio vencedor vai embora. Se calhar de alguém arranjar um violão, acredita-se que um sambinha até vá nascer a quando dos futuros passamentos.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Eu vou morrer

Eu vou morrer. "Tô terminando a prestação do meu buraco, meu lugar no cemitério pra não me preocupar de não mais ter o onde morrer. Ainda bem que nos mês que vem posso morrer, já tenho o meu tumbão" (Raul Seixas, Fim de Mês). Hoje eu descobri que vou morrer. Pois é, eu vou. Não sei exatamente quando, porque sou novo e minha saúde é irritantemente boa. Alimento-me muito bem e faço ginástica com regularidade de modo a manter minha pressão arterial apta a vencer qualquer escada sem precisar de um coração de três motores. Na minha idade, nunca me havia preocupado em começar a pagar jazigo ou cova com palmos ou sem palmos medida. É claro que já imaginara (se por acaso então cogitasse falecer) que um dia seria enterrado junto aos meus, de aqui ou acolá, e é bem verdade que sempre me interessou a idéia de ser depositado no mesmo cemitério do meu avô paterno, local ecumênico, bonito gramado salpicado de símbolos em concreto pintados de branco. Aliás, esse meu avô Joel, que lá sepultado não é mais que pó, sequer crânio de Yorick, foi quem me cantou a musiquinha do avião de pouco uso precisado de três amores.

Mas hoje soube que vou morrer. E descobri isso da maneira mais simples: já tenho onde ser enterrado. Cuidando das coisas de vovó, verifiquei ser beneficiário de plano funerário que cobre traslado, velório e jazigo, tudo quitadinho à espera silenciosa de eu bater as botas. Não é mordomia ou mau agouro para com a minha exclusiva pessoa: Vó Isabel cuida com desvelo dos tramites do passamento de todos os netos, além, é claro, dos três filhos que ainda estão bem vivinhos da Silva, Machado Silva. Eu não sei bem o que pense: ela que cuidou como lhe foi possível e bem (e tem cuidado) enquanto estamos todos vivos, resolveu estender os carinhos até, ao menos, o túmulo (é preciso, por dever de consciência, dizer que se dependesse dela, religiosa como poucas, também cuidaria do além-túmulo, intercendendo por nós junto a Ele, que segundo ela a tem em alta conta. Não respondo pelos demais dependentes do plano funerário, mas de minha parte pretendo entrar sem referências ou deferências na sala de deus, devendo, a meter-lhe pelas fuças o dedo em riste cobrando um pouquinho mais do meu demenso).

Sabe, eu não pretendia morrer. Tinha decidido firmemente transpor os séculos, impassível, soberbo e observando os tolos mortais deitarem papéis de sorvetes de limão pelo passeio. Mas diante da descoberta de que tenho já lugar cativo debaixo da terra, e melhor ainda, com serviço completo das fainas envolvidas, vou citar Manuel Carneiro de Sousa Bandeira: sei que é grande maçada morrer, mas morrerei. E lembrando também o meu parente Machado de Assis (Lívia, ele se chama Joaquim Maria), agradeço à Vó Isabel esse conforto plácido de saber-me onde descansar a carcaça nada hamletiana: que a terra me seja leve, já que está quitada.
p.s. - peço desculpas aos leitores por não ter publicado o texto na terça, e depois atrasado quando disse que o faria na quinta. Realmente tive contratempos, mas espero que isso não se repita.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Falha

Em virtude de uma breve viagem a São Paulo, o texto sairá na quinta-feira. Peço desculpas aos leitores.

Um abraço.