terça-feira, 25 de março de 2008

Um beijo no seu coração

A Veri, com quem primeiro conversei sobre essa expressão
Não suporto doce. Chocolate, bolos, tortas, nada disso me interessa. Chego mesmo muitas vezes a não me entender com frutas, exceções àquelas bastante azedas ou amargas. No entanto, resolvi nos últimos tempos me alimentar mais saudavelmente (lá o que isso signifique) e passei a incluir as tais no meu cardápio. Na escolha de qual comer, o primeiro critério foi o quão adocicada a bendita era, e o segundo a maneira convencional de ingeri-la. Explico. Acabei optando por frutas que são melhor apreciadas comendo com a mão e extraindo as partes à dentada, arrancando nacos. Manga (apesar de doce), caju (apesar da sazonalidade), uvas, lichias podem ser frutas divertidíssimas de se comer. A palavra é lúdico. Lambuzar-se na manga, comer com as mãos, arrancar a casquinha da lichia no dente, as uvas dos cachos (eu me entretenho muito em morder a uva e abri-la de forma que a casca se esconda atrás da polpa). Normalmente não é fácil brincar com os alimentos e algumas frutas se prestam muito bem a isso, poder senti-las no tato. Há quem prefira comer uma pêra com garfo e faca.

Agora me lembro de uma passagem de Tornino i Volti, do Ítalo Mancini: “O nosso mundo, para nele vivermos, amarmos e santificarmo-nos, não é dado por uma neutra teoria do ser, não é dado pelos acontecimentos da história ou pelos fenômenos da natureza, mas é dado pelo existir desses inauditos centros de alteridade que são os rostos, rostos a serem olhados, respeitados, acarinhados”.

O que é um beijo? Para além do dicionário, todo mundo sabe que beijar alguém ou algo é encostar os lábios nesse alguém ou coisa, como demonstração de amor, afeto, carinho etc (clichê a osculação como marca de traição). Quando mandamos um beijo para alguém, seja por telefone, emeio, carta, mensagem de celular, entrevista na tv, estamos querendo dizer que, se estivéssemos por perto, beijaríamos. É por isso que não consigo entender a agora tão difundida expressão “um beijo no coração”. Eu tenho certeza de que foi a Xuxa que inventou isso. Ou a Ana Maria Braga, ou então a Hebe Camargo. O fato é que principalmente nesse meio televisivo a expressão pulula. E, como de costume, contamina os demais mortais. Recados de orkut, despedida de msn, fim de emeio e até recadinho de celular já chegam com beijos no coração.

Senão vejamos: a importância e a força constitutiva de um beijo está na toque cúmplice e íntimo de pousar os lábios na pele de alguém. Esse contato físico é a razão única de ser do beijo, e a intensidade e profundidade dele são flagrantes se comparadas, por exemplo, a um aperto de mão. Logo, a abstração de enviar um beijo a quem está longe, deveria querer representar, na impossibilidade prática momentânea, a comunhão dos lábios com o outro, na demonstração física mais íntima possível, depois do sexo (há algo maravilhoso que é entrelaçar as mãos — embrasse-moi chéri — , que assim como os abraços, é terno, meigo e profundo, mas ainda assim anterior ao beijo). Claro que sexo, beijo, abraço e tudo o mais que o ser humano é capaz de fazer pode ser feito sem sentimento, mas não é essa a discussão.

Então eu mando um beijo no seu coração. Transformo o ato íntimo de encostar minha boca em você numa abstração impossível. Não dá pra beijar o coração (exceto se se for cirurgião cardiovascular ou fizer-se parte de seitas extratoras do órgão ainda pulsando de dentro do peito do sacrificado). Imagina-se que quem manda um beijo no coração quer tocar fundo, ir ao âmago (o coração é sempre considerado o detentor dos sentimentos), mas o incauto não alcança que o beijo não se presta a isso, ou se presta por outro meio que é justamente o tato. E se não dá pra beijar o coração de fato, enviar um beijo no coração se torna algo então muito impessoal.

O beijo é o beijo. Não é voto de paz, expensas de contrição, augúrio de saúde, desejos de felicidade. É beijo. Demonstração de amor que só pode ter sentido na contundência do toque. Se não podemos dar um beijo porque o emeio ou o telefone não permitem, mandá-lo significa dizer que quando nos encontrarmos, vamos nos beijar. Vale até fazer o barulho de smack no telefone, ou som estalado dos lábios comprimidos. Vale ainda desenhar ou mandar boquinhas vermelhas nas cartas. Só não vale mandar beijo no coração. O coração fica dentro do peito e antes dele a nossa pele é que gosta de sentir o quentinho úmido dos lábios de quem amamos, nem que seja só imaginando quando será.

11 Pitacos:

Anônimo disse...

Oi, Ju.
Gostei muito de como começou o texto, mas não apreciei a recomendação no final. Como você, também não me interesso por doces, especialmente se melados, chegam a doer-me numa glândula qualquer abaixo das orelhas (não sei o nome dela). Gosto, e apenas aventualmente, de doce com um acentuado sabor de azedinho, como aqueles à base de maracujá, morango, limão, desde que neles não se despeje duzias de leite condensado. Entretanto, sempre gostei e aceito beijo no coração, como intenção de carinho e aquecimento profundo. Pena que a expressão tenha se transformado nessa banalidade despoetizada. E como todo modismo, nossa tendência (a minha, ao menos) é desqualificar, rejeitar, retirar o simbólico do gesto.
Para além do toque cúmplice e concreto de pousar os lábios na pele do outro e do maravilhoso 'embrasse-moi chéri' tal como nas circunstâncias citadas por você (que coisa boa isso!), há que se considerar o efeito produzido pelo envio do beijo no coração, quando verdadeiramente se quer alcançá-lo. E, finalmente, pensando em seu texto anterior, e considerando que o frio sentido transcende a sensação térmica e que um cobertor (mesmo que elétrico), não esquenta o que é para ser aquecido e que o abraço sim, o beijo (o calor da boca) destinado ao coração, como intenção, ainda que jamais o alcance concretamente, não nos acalentaria? E, sim, concordo com você:
NÃO ao modismo - dizer porque dizem.
SIM, um beijo no seu coração ou na alma, que seja!

Anônimo disse...

Ju, o doce pode ser amargo e até azedo, desde que te proporcione a sensação de prazer, o degustar, o saborear.

Beijo é beijo, no coração era para ser como quem diz com carinho.

Prefiro minhas amigas de longe que me mandam cheiros e sempre me sinto abraçada forte com um longo suspiro conjunto.

Um cheiro para você!

Anônimo disse...

O som do beijo, à exceção de todos os outros sons, faz-se sugando o ar, e não expelindo-o. Há mais sentido nisso do que apenas o funcionamento do aparelho fonador.

Beijo-te.

Anônimo disse...

Um post até interessante, mas que não se desenvolve. Tem umas repetições desnecessárias como os meios pelos quais os beijos chegam, celulares e e-mails.

Eu não entendi o que significa "força constitutiva" do beijo. Constitutiva de que?

Resumindo, abaixo da média. Média que já não empolga.

Juliano Machado disse...

Marlene, concordo que os modismos desqualificam a poesia de expressões, e também concordo que o frio transcende a sensação térmica (ainda que metáfora, há angústia que dá frio de verdade). Mas, mesmo assim, não consigo alcançar muito o beijo no coração, é uma abstração que não me agrada, continuo pensando que o beijo é carnal demais, assim: que haja poesia em dizer algo como 'beijei sua bondade e seu ato ao entregar ao menino a flor', tudo bem. Mas acho que o beijo da despedida, enviado à distância quer mesmo e ser beijo de boca. Mas é só o meu achismo. Obrigado por vir ao blogue e refletir de verdade sobre o que lê (normalmente as reflexões são mais oportunas que os textos).

Juliano Machado disse...

Telma, pode até ser, um cheiro como aquela fungada no cangote, enfim... Vamos testando.

Obrigado por vir ao blogue, ler e comentar.

Juliano Machado disse...

Carolina, não sei se alcancei bem o que você quis dizer, mas chegou-me para acreditar que ainda mais assim fica o beijo sequioso de ser mesmo dado, porque puxa e não repele.

Obrigado por vir ao blogue.

Juliano Machado disse...

Ana, tem mesmo umas repetições tolas dos meios, vi depois, não me apateceu mudar. E tem razão, não sei o que seja força constitutiva do beijo, acho que coloquei porque achei a construção forte, como se houvesse significados teóricos e denotasse conhecimento do escriba. Me pegou no pulo, é na verdade um termo um bocado vazio, concordo.

Obrigado por voltar a ler e comentar o blogue.

Claudia Petlik Fischer disse...

Não sei se gostei.
Concordo com a Marlene.
O que vale na frase é a intenção e a capacidade de abstração. PQ rejeitar um carinho enviado tentando encontrar sentido concreto?
beijo no coração

Tatiana Machado disse...

Não sei se a questão é concordar ou não. Se fosse, diria que concordo, porque não gosto da expressão, sobretudo porque bagatelizada. Mas acho que não é esse o ponto. No texto você faz uma proposta e a desenvolve. Há, penso eu, coerência interna nesse desenvolvimento. E eu gosto dele. Acho meigo, romântico e até doce.

Um beijo!

Naldy disse...

Finalmente alguém escreve algo sobre o assunto. DETESTO esta expressão 'Beijo no coração".

Parabéns! Continue assim.
Abraços