Subo a alameda perpendicular ao estabelecimento onde quitei a dívida. Faz frio, o dia está escuro, venta. Num primeiro momento imagino que a ruas estejam tanto mais vazias que o comum por conta da feiúra do clima. Me engano. Apenas a travessa em que eu estava é que não tinha movimento. Quando chego ao movimento, há. As pessoas agasalhadas não caminham nem mais nem menos rapidamente do que o usual, mas os gestos, sim, são um tanto contidos, as mãos se retesam ou dormitam nos bolsos, as cabeças pendem um pouco mais para as pedras do passeio, os ombros e as costas acompanham a postura. Optei por não levar uma blusa. Gosto de sentir o vento gelado. Ainda não é inverno, mas já defendi muitas vezes a tese de que o refletir, o penoso refletir é tanto melhor no frio. Levo comigo o recibo e não experimento qualquer sensação de alívio por não ser mais devedor. Há uma dívida inaudita que não me lançará nos mecanismos de proteção ao crédito, francamente conhecidos por siglas. Ainda que rasgue o CPF ou perca o seu número, ainda que fosse possível — e não é, mudar de nome. Dobro o papel e meto-o no bolso (a algibeira da calça soaria pessoano demais), o peso não diminui nem aumenta, apenas a mão está livre para não fazer nada. Não posso destilar minha tristeza, não posso pensar no pedido que ela me fez para não ligar mais, porque os pedestres se atropelam pela calçada com uma pressa que não faz sentido, embora tenha sentido (e o que mais atrapalha é essa sempre mão-dupla). Eu não quereria flanar, o meu olhar tem pouca comoção para algo tão etéreo. E eu podia, sim, como fiz, escolher ruas mais tranqüilas para caminhar; mas para chegar até elas passo por estas e não posso pensar nestas, e não posso não pensar nestas. Com nenhuma fé peço para que chova, mas não chove. As calçadas ficam vazias quando chove. A agitação da rua se engalfinha com a minha resignação. Eu estou lento, e como não tenho horário ou lugar para voltar, é lento que pretendo continuar. Ao menos, por sorte, faz frio (se não fizesse, a dívida já solvível ficaria à espera, pois não me poria à pé na rua). Faz frio e escurece. Não preciso, mas vou voltar para casa. Poderia ficar, a intensidade do tráfego de pedestres por certo diminuiria, poderia destilar com mais paz a minha amargura. Mas não vale a pena. Não vale a pena voltar, não vale a pena ficar. Se escolho o sentido do quarto é porque quando for bastante mais gelado, à noite, sem a blusa que não trouxe, também não poderia mais refletir com tristeza, a energia mal me sobraria para aquecer o corpo. Pela mesma sorte ainda estará frio debaixo de qualquer cobertor.
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7 Pitacos:
Depois de quase ser agredida pelos outros leitores (mais leitoras, convenhamos), acabo resolvendo escrever aqui de novo... Esse texto até que é bom, dá uma sensação de frio mesmo a sua descrição. Pena que o tema seja sempre a repetição de outros, solidão, tristeza, caminhar sozinho pelas ruas em dias frios.
Você me perturba.
Beijokas
Muito bem construído. Na primeira leitura nem consegui comentar este texto, Juliano. Li, reli, em dias diferentes, e concordo com Ana quanto à sensação causada. À medida que a leitura avançava, me sentia, e assim o é no momento, invadida por um sentimento de desamparo... dolorido!
Ana, seja bem vinda novamente. Quanto às pendengas com outros leitores, aqui é território livre para a discussão civilizada.
Quanto ao texto, obrigado, também acho que eu me repito demais no tema e na forma de trata-lo, mas ainda sou novo e não tenho muito mais sobre o que falar. Se você sentiu frio, já fico feliz.
Telma, que bom. O texto que não causa nada é desprezível. Se este perturbou, alcançou algo que eu pretendia.
Beijokas.
Marlene, desamparo é uma boa palavra, porque quando a gente sente frio e está sozinho, acho que é desamparado que se sente porquanto imaginamos que se não estivéssemos só, o alguém poderia alcançar qualquer abraço pra nos aquecer. Abraço, porque cobertor não esquenta realmente.
Veriadiana, são essas mesmas as palavras que mal ajambradas forma a sínese do texto.
Obrigado pelo muito bom.
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