"Ainda existem almas para as quais o amor é o contato de duas poesias, a fusão de dois devaneios".
Gaston Bachelard, "A Poética do Devaneio".
Já agora, aos domingos, vou ler numa praça que se chama Parque Infantil. Um lugar bastante aprazível, bancos de madeira pintados em verde-musgo nada confortáveis, mas com sombras de árvores frondosas tão gostosas que a coluna mal percebe a dureza do assento. Há gente correndo, crianças, cães. Idosos caminhando e alguns casais tomando sorvete. Uns meninos pedalam a bicicleta. Sento-me sempre no mesmo banco, debaixo da copa de uma carnaúba. Levo comigo o jornal do domingo, um e outro livro, às vezes uma revista. Não tenho horário para chegar, e volto normalmente quando a luz natural cessa, mas isso não é uma regra. Não há regras. Sento-me sempre no mesmo banco.Nietzsche dizia que Xantipa, esposa de Sócrates, azucrinou tanto a vida doméstica do ateniense que acabou por empurrá-lo mais e mais à filosofia, ajudando-o também a expandi-la pela cidade. Sócrates não agüentava ficar em casa e saia pelas ruas falando com todo o mundo. Aos domingos, é costume a casa estar vazia. Não há ninguém me impelindo a ganhar a rua para me dar a solidão que muitas vezes, em outros dias da semana, eu desejo. Então junto do Manuel Bandeira tomo o café que eu mesmo preparei e saio para a caminhada, os petrechos de palavrórios debaixo das axilas. São vinte e tantos minutinhos até as árvores e os passarinhos (que muito polidamente, sem algazarra, me presenteiam com sua evacuação que só me faz pensar na tautologia dessa minha vida que é uma merda porque só se faz cagada).
Mas claro, eu vejo os entes vivos que se cruzam (vejo as pessoas que cruzam por mim e não creio que meditem na segunda leia da termodinâmica, Ascher, eu não medito). E ver a gente toda de meu banco solitário é a forma mais sóbria (e justa) de poder ficar só. Sorrio muitas vezes. Sorrio mais nas poucas horas que lá permaneço do que em todas as horas dos dias anteriores da semana que me levaram ao domingo. Sorrio porque vejo a gente correndo, e as crianças e os cães e os idosos. Os casais que tomam sorvete. E sorrio porque sei que nunca serei como eles. E sorrio porque nunca poderei ser feliz como eles. E finalmente sorrio porque isso tudo me leva ao único instante de serenidade quase pacífica que é o “momento de grande reconciliação com a falta de sentido de tudo”, como me disse o Luis, no Natureza do Mal.A luz rareou, posso ir-me embora. Já não faz sombra a fronde da árvore. Não há nada que importe na praça, nada havia que importasse no jornal, não faz diferença o que haverá em casa. Escureceu e amanhã amanhecerá. Virá um tanto coeso de dias e será domingo novamente quando os jornais assim o assinalarem. Então poderei sempre tornar ao Parque. Exceto se chove num outro qualquer domingo. Se chove, fico em casa porque as gotas que invariavelmente as folhas da árvore não poderão conter fazem borrões nas páginas impressas e as notícias não podem ser lidas, assim. E os velhos e os pais das crianças e os donos dos cachorros não gostam de se ensoparem na bátega que cairá num outro próximo domingo.
5 Pitacos:
Lembrei-me das vezes em que este lugar foi o meu refúgio, para chorar, pensar, lamentar e sentir saudades...
Beijos.
Jú, estou te vendo agora - mentalmente, é claro - em um banco verde-bandeira na pracinha mais conhecida da cidade, segurando um jornal úmido... Cada coisa...
Telma, o Parque é mesmo um refúgio, mas pra mim uma espécie de refúgio relativista, ou então, melhor ainda, alienante: anda muito cheio de gente, o que não é mau, mas muda o teor da coisa.
Obrigado por ler sempre o blogue e comentar.
Patrícia, que bom que consegue me ver (lá quem eu seja) sentado no banco, é idéia do texto é criar as imagens. Mas cuidado porque pode ser tudo de mentirinha (por exemplo, talvez não haja uma única carnaúba no Parque Infantil...rs).
Obrigado por vir ao blogue e comentar.
bom comeco
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