Na metade do mês de junho os ipês-rosa começam a florir. Como disse algum o jornalista Marcelo Leite, citando por sua vez um cientista de cujo nome não me lembro, o Ipê deveria ser considerado a árvore símbolo do Brasil. Ipês nascem do Acre até ao Rio Grande Sul, possuem uma capacidade adaptativa a terrenos e variações climáticas enorme, são duros, como o José que não morre. Parece-me serem cerca de nove as espécies de árvores que abrangem a categoria, sendo que não há sítio do país em que não se possa encontrar alguma delas. Os ipês florescem em amarelo, rosa, roxo e branco (até onde sei) e proporcionam um espetáculo tão bonito de se ver, que não é necessário ser muito mais sensível do que um besouro para quedar-se ao pé dum. Ouvi dizer que a madeira é das boas, mas, cara-de-pau-de-ipê que sou, nunca pesquisei.
Normalmente quando gostamos de algo, procuramos ler sobre, conhecer-lhe os meandros, os sinônimos onomásticos (se é que essa construção existe) e por aí adiante. Mas o ipê me traz um prazer visual e táctil tão profundos que não perdi tempo pesquisando sobre ele. Já está lá no manual prático de olhar e ver que eles são lindos e farfalham como poucas árvores. No mesmo manual percebe-se no pé da página da rua tal esquina com tal e qual que eles variam muito de tamanho, não sendo raro encontrar troncos enormes que resultam em copas enormes, e ali adiante, na porteira do fim da estrada de terra, um miúdo. Ocorreu-me agora que a variação de tamanho pode ser por conta da idade, e não somente pela espécie. Mas não ligo. Como disse, jamais estudei.
Exceto o Tabebuia avellanedae, que não é senão o ipê-rosa do início, flos desta história. Aqui na minha cidade há ipês para todos os lados. Desconfio de que os amarelos sejam mais numerosos em relação aos outros, mas o que ocorre com o rosa é uma apropriação das prerrogativas dos planetas e estrelas: quando floresce, o ipê-rosa eclipsa as demais árvores. E arrisco dizer, o que mais houver ao redor. Mania de aparecer, talvez; essas árvores resolvem dar as cores à luz num momento translacional em que a própria luz é tímida e, por isso mesmo, as matizes ficam escondidinhas, a ver no que dá. Dá no inverno árvores cor-de-rosa surgindo para acariciar com beleza um frio que tanto faz se é frio.
A cidade tem muitos ipês-rosa, e eu os coleciono. Coleciono o cor-de-rosa e não os de pigmentação vária por dois motivos básicos: a) porque no inverno estou mais propenso à introspecção que o tempo (que se não é o frio desejado, ao menos dá mostras) predispõe; b) porque sim. No inverno é bom sair pela rua a observar as coisas com olhos de ver. E as árvores, habitualmente exibidinhas que são à tal introspecção (introspecção só ao desatento parecerá contraditória com o ato de observar), dão em ipê exibidão no meio delas todas opacas. Ocorre também de o olhar ser um pouco mais que introspectivo no inverno, tornando a palavra (ou sua derivação - citada neste parágrafo quatro vezes) num eufemismo. Não sei se a beleza é mais bela quando afaga uma tristeza qualquer, mas a tristeza é sem dúvida mais límpida quando afagada por alguma beleza.
Tal qual a minha coleção de miniaturas de santos católicos, que embora eu já possua, ainda não adquiri o primeiro exemplar, assim se dá a coleção de ipês-rosa. Não só não os catalogo, como não guardo registros fotográficos ou de outra natureza deles (parece óbvio que escaparia às minhas forças resgata-los de onde estivessem e planta-los num ipezário ao pé da janela do meu quarto). No princípio das câmeras digitais, saia a fotografa-los e depois organizava seus endereços, latitudes e longitudes numa pastinha do windows chamada ipês-rosa araraquara que foi deletada. A rentabilidade colecionadora sem dúvida demonstrava enormes ganhos, mas o déficit sentimental logo se mostrou impossível de arcar.
Não é mais nem menos bonito ver um ipê-rosa quando se está triste, como também não é melhor ou pior vê-lo quando se está feliz. Pegar uma câmera e sair a pé pela cidade fotografando árvores é trabalho gostoso, demorado e sem sentido. Por maior que seja a cidade, e esta não é, os ipês acabam-se e há locais em que não se quererá ir, por isto ou aquilo outro, e então sobram duas soluções: a) pegar a câmera, o carro e ir para as cercanias ou bairros mais afastados caçar a malditas árvores; b) fotografar sempre as mesmas, que estão, por assim dizer, ao alcance das pernas. Como eu já argumentei, do ponto de vista volumétrico o carro serviria excelentemente ao desenvolvimento da coleção, mas, como também já argumentei, a perda sentimental não vale a pena. Isso porque a coleção de ipês tem de ser como a coleção de santos católicos: as possuo, mas não tenho nenhum elemento individual que as possam comprovar. Parece complicado, mas é na verdade muito simples. É triste que gosto de ver ipês. É triste que posso caminhar devagar pelas ruas que me levarão a alguns deles, é triste que os posso colecionar juntinho de mim. E é por isso, sobretudo, que não faz sentido possuir fotografias deles, ou eles próprios, fosse isso possível.
Há o ipê-rosa da Faculdade de Ciências e Letras, ao lado do ponto de ônibus do campus. Há o ipê-rosa das costas do Senai, à rua Alto Garças. Também há, pertinhos, o da esquina da rua Itália com a avenida Portugal, ao lado do coreto da praça Pedro de Toledo, junto ao seu vizinho da mesma avenida Portugal com a rua Carlos Gomes, número 700, fundos. Há o da esquina da rua Padre Duarte com a avenida Duque de Caxias, dentro dos muros do colégio Progresso, e ainda o defronte à Faculdade de Farmácia, que aliás, é o primeiro da cidade a perder as flores todas, vários dias antes dos outros todos. E há, finalmente, porque muitos ainda há, o da avenida Hipólito José da Costa, tão pertinho do colecionador que serve muito bem quando a tristeza é pequenina, pequenina, ou tão grande que só dá pra chegar até a janela.
Hoje fui colecionar o ipê-rosa do colégio Progresso (sito ao endereço acima citado). Fiquei pensando que os ipês-rosa, embora dividam o nome com todos os outros ipês-rosa são sempre únicos, inconfundíveis, porque estão. Estão e de onde estão não podem sair. Por pior que isto seja, jamais serão estrangeiros aqui, como em toda a parte. Demorei-me olhando para o ipê-rosa e me aproximei para ficar bem debaixo de sua fronde: eu não contei a ninguém, mas o farfalhar dos ipês-rosa produz neve cor-de-rosa. As flores caem muito tranquilhas, como se a árvore estivesse chorando de mansinho. Chorando sem soluço um chorinho de criança feito uma poalha. Se a gente se deixa estar em baixo da árvore, recebe de encontro as flores que mal tocam o corpo, e assim parece um abraço mandado à distância, prometido na outra estação e que nunca se chegou a receber. É claro que sempre se pode abaixar, tomar uma flor cor-de-rosa da calçada e, já que se agachou, ficar no rés-do-chão deitado, olhando de outra perspectiva o esboroamento das formas reprodutivas do ipê-rosa. A tristeza então é tão bela, que nem é preciso fechar os olhos para escutar os galhos da árvore executarem em dó menor o adagio cantabile da Sonata número 8, Opus 13 do Beethoven. Pathetique.
(por óbvio, não há foto de um ipê-rosa).
(este texto foi originalmente publicado em 13 de julho de 2007)
3 Pitacos:
Acho que este foi o primeiro texto seu que eu li!!
dei sorte, então, e talvez te tenha ganho como leitora por ele: é uma das raríssimas coisas que escrevi que prestam um pouquinho.
Nem alegre, nem triste já fui à praça do Clube Araraquarense só para fotografar o tapete de flores rosas pelo chão. Um espetáculo!
Parabéns pelo texto. O último parágrafo é muito poético, gosto muito!
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