segunda-feira, 7 de abril de 2008

Enquête do picolé de limão

(na foto, picolé de limão bastante parecido com o que deu ensejo à peleja verbal)
Foi sábado. Contraí bate boca na rua com uma moça e um rapaz. Quero opiniões sobre o ocorrido. Quero contar o que houve e expor à apreciação meus atos públicos.


Decidi-me por ir ao encontro dos amigos, no bar tradicional, a pé. Tenho caminhado muito. Ocorreu-me numa dessas caminhadas um conto do Isaac Asimov, ou teria sido uma adaptação para tv? Ou seriam os Jetsons? Enfim, nessa história de que mal me lembro, as pessoas ficavam doentes de tão sedentárias, porque os automóveis (ou naves?) as levavam para todos os lugares, e nos lugares escadas rolantes e esteiras as transportavam de aqui para acolá: ninguém caminhava. Eu caminho, mas a saúde que mais se beneficia é de longe a mental. Foi sábado. Resolvi ir ao boteco caminhando. Sustentava, como de praxe, o jornal debaixo da axila. A rua era a de maior movimento do centro da cidade, escolhera-a de propósito, interessava-me, neste dia, ver a gente. Ia lento e as sandálias confortáveis deixavam o vento interceder favoravelmente nas passadas.

A moça e o rapaz vinham ao meu encontro (e o que mais atrapalha é essa sempre mão dupla). Ela, bonita e bastante acima do peso, trajava uma blusa colorida muito agradável, discreta, a despeito das muitas cores. Ele, obeso também, vestia qualquer coisa que de tão parda não retive na memória. Nós três estávamos lentos, e a quando de quase nos cruzarmos a moça (de não mais que seus trinta anos) abriu um picolé (que depois verifiquei ser de limão)atirando para a calçada o papel que o envolvia. Ato contínuo, falei em tom de voz baixo, mas severo:

— Mas que coisa feia, moça, jogando lixo na rua. Ela hesitou só um tiquinho e devolveu:
— E você podia cuidar da sua vida, imbecil.

Não respondi à jovem. Não respondi porque concordo com ela nos dois termos que usou. Eu sou mesmo um imbecil e ando cuidando bastante pouco e mal da minha vida. Mas, imediatamente depois, o rapaz não se conteve (não acredito que tenha sido pela minha atitude de voltar-me para o papel do sorvete e apanhá-lo, amassando-o):

— Isso mesmo seu bosta, pega você o papel. Então eu me virei e redargui:
— Será que sou eu mesmo o bosta dessa história?

Bem, não irei reproduzir a quantidade de xingamentos que me ofereceu o rapaz gordinho. Não foram poucos, mas também não alcançaram nenhum requinte diferente do imbecil e bosta anteriores. Não respondi mais nada a ele. Enfiei o papel do sorvete no bolso da bermuda e dei-lhes as costas. Segui no caminho, ouvindo os insultos se afastarem. Acabrunhei-me.

Serei um imbecil, um bosta que não tem nada de útil a fazer da própria vida e anda a se meter na de outrem? Serei um Norbert Elias em campo zelando pelas mesquinharias da civilidade urbana? Ou sou um hipócrita que comete seus pecados às escuras e arranca fio de barba indignado com as caganitas dos outros?

Tola a enquête. Sou um rematado idiota, não me resta agora dúvida. E minha vida é um bocado sem sentido para que tenha de ficar cuidando da alheia. Além disso, não suporto as patrulhas, tenho bronca dos ambientalistas e abomino o IPCC. Portanto, um hipócrita, de fato. E quase me esquecia; ainda por cima, covarde e subserviente: queria ver fosse um grupo de rapazes voltando da aula de karatê se a minha investida para com a limpeza pública iria ter a espontaneidade soberba com que me dirigi à moça bonita e obesa e ao seu amigo redondo e vociferante. Bom, se numa hipóteses dessa eu me tivesse calado, talvez estivesse, afinal, mesmo e mesmo cuidando finalmente da minha vida.